Toga em crise

Para desembargador, aposentadoria e salário explicam fuga da magistratura

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30 de maio de 2021, 7h53

Observadores mais atentos certamente notaram que a magistratura brasileira vive uma onda de pedidos de exoneração — Nefi Cordeiro, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, e Fernando Mendes, ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), são ilustres exemplos desse fenômeno. Que não é uma mera obra do acaso, de acordo com o desembargador Marcelo Buhatem, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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Na condição de presidente da Associação Nacional de Desembargadores (Andes), Buhatem fez um diagnóstico para explicar a debandada: os magistrados têm atualmente salários que não estão à altura de suas responsabilidades e ainda perdem parte de seus vencimentos na aposentadoria. Segundo ele, muitos já perceberam que podem obter ganhos mais polpudos fora do Judiciário e, por isso, não têm hesitado em abandonar a toga.

"A minha grande bandeira na Andes é a aposentadoria, porque atualmente o magistrado, quando se aposenta, já no dia seguinte ele perde 38% dos ganhos. Isso porque ele deixa de receber as acumulações, ele deixa de ganhar as verbas de caráter indenizatório…", afirmou o desembargador.

Em entrevista à ConJur, Marcelo Buhatem falou sobre o que a Andes pode fazer para ajudar a interromper essa debandada da magistratura. Ele contou que tem conversado com autoridades políticas de Brasília, como os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, para tentar resolver — ou pelo menos reduzir — o problema.

Durante a conversa, o presidente da associação dos desembargadores, que não esconde seu desapreço por algumas novidades experimentadas pelo Judiciário durante a pandemia da Covid-19, como as audiências virtuais, disse que não vê a hora de a Justiça voltar ao "velho normal" e falou sobre os estragos causados pelo lavajatismo no Direito brasileiro.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur – Qual é o papel da Andes no Direito brasileiro? Que contribuição ela pode dar para um melhor funcionamento do Judiciário?
Marcelo Buhatem – A Andes é uma associação criada em 2006 por vários desembargadores preocupados com a falta de representatividade específica para o segundo grau. Essa associação congrega desembargadores dos três tribunais da federação, que são os TRTs, os TJs e os TRFs, aproximadamente 2,5 mil desembargadores. No entanto, a gente obviamente não tem a unanimidade dos desembargadores, temos por volta de 500 associados. Eu assumi (a presidência) no meio da pandemia e estou querendo levar a mil associados.

A associação foi criada para fazer uma defesa mais específica do segundo grau. Isso porque os juízes demoram mais para se aposentar, são mais novos, e nós temos esse problema da aposentadoria, uma defasagem muito grande quando o magistrado se aposenta. Há outras questões cirúrgicas com as quais a Andes se preocupa. Por exemplo, tivemos a bandeira da PEC da Bengala. A Andes lutou muito por essa PEC dos 75 anos, que acabou sendo aprovada, e com isso a associação ganhou respeitabilidade e conhecimento adquirido no Legislativo.

ConJur – O segundo grau do Poder Judiciário tem conseguido cumprir satisfatoriamente a sua missão nesse quadro tão dramático e excepcional da pandemia da Covid-19?
Marcelo Buhatem – A magistratura tem se desdobrado para continuar a cumprir a sua missão constitucional. É óbvio que eu sou um crítico do chamado novo normal. Para mim, o melhor novo normal é o antigo normal. Eu venho dizendo em todos os locais em que eu posso falar que é inadmissível um poder com P maiúsculo se omitir, se esconder atrás da tela de um computador enquanto a população e o povo clamam por justiça.

Eu tenho sido um crítico do afastamento do magistrado, principalmente nas comarcas médias e pequenas. Um segundo ponto é que, por conta da pandemia, por essa opção de fechar os tribunais por causa dos lockdowns, que na verdade são estados de sítio, mas isso é uma outra história, esses tribunais acabaram fechados, e isso desarticulou toda uma economia daquele setor, daquele bairro, daquela região. Eu costumo dar sempre o exemplo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por onde passavam de 30 mil a 50 mil pessoas, isso só no fórum central do Rio. E isso acabou minguando, todo aquele comércio que vivia dos fóruns, da atividade jurisdicional, foi prejudicado.

Outra coisa que a gente não pode esquecer é que nós somos um país pobre ainda, e isso inclui os advogados também, com exceção dos grandes escritórios. Os advogados que acabaram de sair das suas faculdades, com suas pastas a tiracolo para fazer a advocacia no varejo, eles não têm poder aquisitivo suficiente para ter bons telefones, boa internet e bom equipamento de TI. Acho que a pandemia prejudicou muito os advogados pequenos, e a OAB se mostrou muito tímida nesse enfrentamento da Covid-19.

Eu também entendo, e esse é um quarto fator que destaco aqui, que, diferentemente do primeiro grau, em que o juiz tem de estar perto da prova, tem de estar próximo das partes, no segundo grau não se mexe com as provas, pois recebe-se o processo no estado em que ele se encontra e julga-se dentro das provas que já foram coletadas. Mesmo assim acho que é fundamental o desembargador estar no seu gabinete para receber os advogados e os interessados nas causas, acho que é fundamental receber para conversar, apresentar memoriais, aliás, está na lei, no Estatuto da OAB essa possibilidade, na verdade uma obrigação do magistrado.

ConJur – Quando a pandemia acabar, a atuação do Judiciário voltará a ser exatamente como era antes ou o senhor acredita que alguma coisa implantada nesse período vai se tornar definitiva?
Marcelo Buhatem – Essa é a pergunta que vale um milhão de dólares. O meu receio, o meu medo é exatamente não voltarmos ao que éramos antes, não voltarmos ao antigo normal. Achar que isso é o novo normal, achar que isso vai ser eterno. Eu me preocupo muito com isso. Eu acho que, a partir do momento em que estivermos todos vacinados, e rogo que todo mundo se vacine rapidamente, a gente deveria voltar ao antigo normal. Mas posso dizer que eu vejo, principalmente no segundo grau, certa resistência a voltar ao que era antes por conta de várias situações, tais como economia de luz, economia de água, de espaço etc. E, portanto, isso poderia de alguma maneira justificar esse novo normal. Eu discordo em parte.

Primeiro, porque o Judiciário é poder arrecadador, tem orçamento próprio. Segundo, porque prestar jurisdição, como eu disse, não é só proferir sentenças, é estar com as partes, estar com os advogados nas audiências, olhar nos olhos… É em uma ação de divórcio, uma separação terrível, olhar para as crianças, ver com quem essas crianças vão ficar… Existem atos que eu acho que jamais poderão ser (virtuais), principalmente no crime, na oitiva das testemunhas no interrogatório do réu. Na audiência de custódia, o bem maior é ver o réu, é estar com ele. Então eu estou preocupado que a gente não volte ao que era antes.

ConJur – Mas o senhor não vê nenhuma iniciativa surgida durante a pandemia que seja capaz de trazer um ganho no futuro?
Marcelo Buhatem – A inovação positiva do Judiciário é prestar jurisdição rápida, célere, não permitindo que os processos se eternizem ou eventualmente pereçam por prescrição ou decadência. Existem algumas boas novidades, sim. O cumprimento de uma precatória demorava três, quatro meses, e agora se faz um cumprimento de precatória pelo WhatsApp. Isso é muito bom, serviu para acelerar o processo.

Mas não gosto da audiência virtual, acho que o magistrado perde o elã, não consegue ver a fibra do advogado, a presença de espírito. A possibilidade de ouvir a parte em qualquer lugar é algo que acho que veio para ficar, mas o problema é que essas testemunhas estão sendo ouvidas por videoconferência e a gente sabe que pode haver fraude, porque eventualmente alguém pode estar passando uma cola para essa pessoa, para essa testemunha. Eu me preocupo com isso.

ConJur – Por que o fenômeno do lavajatismo afetou mais a Justiça federal do que a estadual?
Marcelo Buhatem – Eu acho que a Justiça federal acabou sempre sendo mais especializada nos crimes de colarinho branco, de lavagem de dinheiro. O DNA dela é muito ligado a isso. A Justiça estadual, historicamente, é muito ligada aos crimes tradicionais, aos crimes de roubo, de furto, de latrocínio. Até a década de 2010, pelo menos, não víamos esses processos mais intrincados de lavagem de dinheiro nas Justiças estaduais, talvez porque os Ministérios Públicos estaduais não tivessem expertise para isso.

Há pessoas que dizem que na Justiça estadual você está mais próximo das pressões políticas, mas o certo é que todas as vezes em que o Ministério Público enfrentou esses problemas, eu acho que ele não se omitiu, não, mas talvez não tenha tido a repercussão que o lavajatismo teve. E nós não podemos nos esquecer de uma lei que mudou todo o sistema brasileiro de investigação, que efetivamente virou o estopim de um novo processo penal, que foi a lei da delação premiada. Uma coisa era a Justiça investigativa antes dessa lei, e outra coisa depois.

Como essa lei é nova, talvez as críticas do passado não sejam verdadeiras, pois era muito difícil investigar, já que corrupção não deixa lastro, não pede recibo. Então eu acho que essa lei foi a grande mudança na investigação brasileira, tornou-se um paradigma.

ConJur – Quais lições os abusos do lavajatismo deixaram para o sistema judicial brasileiro? O que se aprendeu com esse processo todo?
Marcelo Buhatem – Não usar o WhatsApp para nada.

ConJur – Nem o Telegram…
Marcelo Buhatem – Não usar o Telegram, nem WhatsApp… Agora respondendo definitivamente: obviamente, o sistema judicial brasileiro tem de obedecer aquele que pode acertar e pode errar por último, que é o Supremo Tribunal Federal. Então, se o Supremo disse, nós vamos seguir, nós vamos acatar. Não vou entrar no mérito de que demorou a julgar, de que não demorou… Não vou entrar. Então vou dizer o seguinte: o Supremo disse e, portanto, vai fazer jurisprudência, e todos nós, do sistema judicial, temos, a cada dia que passa, de nos preocuparmos com o regime das garantias dos réus.

ConJur – Mais de 80% dos litígios judiciais no Brasil são da área cível. Portanto, os casos criminais são minoria e os relacionados a corrupção não chegam a 1%. No entanto, são esses os litígios que dominam o noticiário, até mesmo o imaginário da população. O senhor acredita que essa superexposição da Justiça criminal causa uma distorção na maneira como o Judiciário é visto pela população?
Marcelo Buhatem – Eu concordo que há uma superexposição da área criminal, mas eu acho que isso acontece porque o sistema de improbidade no Brasil, comparado ao sistema jurídico penal, é muito pequeno. Ele é uma criança, ou um adolescente. A gente tem agora um projeto de lei, que está quase para sair, para mudar a Lei de Improbidade. E essa lei acabou sendo de alguma maneira excluída dos bancos das faculdades. Eu acredito que houve um defeito na formação do jovem de 20 anos atrás. Esse jovem, que se formou 20 anos atrás e hoje deve ter 36, 37 anos, não teve a cadeira de improbidade, que é uma lei extravagante. E quase não teve Direito do Consumidor, ele quase não teve Direito Ambiental. Então pode ser que essa prevalência do Direito criminal ocorra pelo tempo em que o Direito criminal brasileiro tem uma lei. O Código Penal é da década de 30, se não me falha a memória (na verdade, é de 1940), e a Lei de Improbidade é da época o Collor (1992). É uma disparidade muito grande.

ConJur – Essa falta de atualização dos cursos de Direito no Brasil é, então, responsável pelo excesso de atenção dado à Justiça criminal?
Marcelo Buhatem – Sim. Você tem (nos cursos) Direito processual de improbidade, você tem Direito de improbidade? Não tem. Você vai aprender esparsamente, e depois que já se formou. Esse pode ser o embrião desse disparate entre o criminal e o cível no Brasil. Mas agora nós temos visto que os grupos do Ministério Público especializados em Direito de improbidade administrativa, ação civil pública, estão crescendo muito. E as ações estão explodindo. Então eu acredito que, com o tempo, as pessoas vão mais para a improbidade. As pessoas estão ouvindo falar muito em improbidade nos últimos quatro, cinco anos, mas a própria imprensa brasileira não sabe muito bem o que é improbidade, o papel da improbidade, qual a diferença entre ação penal e ação administrativa.

ConJur – Há, então, um sinal de mudança nesse cenário?
Marcelo Buhatem – Já vejo um viés de mudança por causa dos grupos especializados do Ministério Público, por conta da especialização dos promotores e por conta dos estudos extracurriculares de juízes e demais operadores do Direito. Porque já é muito farto o material sobre o tema, há muitos escritores, como Fábio Medina Osório e Emerson Garcia, se dedicando a isso. Agora, é uma lei intricada, uma lei complicada, de uma subjetividade muito grande. A jurisprudência está tentando tirar essa subjetividade absurda que há na lei. Mas eu acho que o cenário está mudando, sim.

ConJur – Têm chamado a atenção recentemente as muitas notícias de magistrados pedindo exoneração, deixando a carreira, até mesmo em tribunais superiores e de segunda instância. Isso é uma tendência? A profissão está em crise?
Marcelo Buhatem – Eu não acho que isso seja uma coincidência. Eu acho que a crise ocorre porque hoje existe uma baixa remuneração para os padrões de uma atividade intelectual, então as pessoas podem ganhar mais fora do sistema de Justiça. Então acho que é uma questão de querer uma renda maior, além das pressões por alta produtividade vindas de um órgão externo, que é o CNJ, e o aumento vertiginoso dos processos, a distribuição aumentou muito, principalmente na pandemia. E também há as questões familiares.

ConJur – Esse cenário é uma grande preocupação para a Andes?
Marcelo Buhatem – Ah, eu esqueci de dizer que um outro motivo para a crise é a falta de uma aposentadoria digna. Desculpe-me, é a razão mais forte de todas.

O fato é que, com o tempo, a magistratura foi perdendo muito dos direitos. Hoje você tem dois tipos de magistratura: a dos juízes que entraram antes da Emenda Constitucional 45 e a dos que entraram depois dela. Os regimes de previdência se diferenciaram demais. Demais. Em um você tem paridade, no outro não tem, o que afastou muito a possibilidade de o juiz receber a integralidade. Paridade é ter os mesmos aumentos e integralidade é receber o último salário quando se aposentar. Isso acabou, não existe mais. E aí a carreira ficou cansativa porque o que atraía era uma boa aposentadoria, era a paridade, e isso acabou para os novos.

A minha grande bandeira na Andes é a aposentadoria, porque atualmente o magistrado, quando se aposenta, já no dia seguinte ele perde 38% dos ganhos. Isso porque ele deixa de receber as acumulações, ele deixa de ganhar as verbas de caráter indenizatório… Então esses são, para mim, os grandes motivos para esse problema.

ConJur – E o que a Andes pode fazer para ajudar a mudar essa situação?
Marcelo Buhatem – Eu trago uma ideia para minimizar esse problema, que é levar para a aposentadoria uma verba que a gente já recebe, chamada abono de permanência. Você recebe o abono tão logo tenha o tempo necessário para se aposentar, e aí recebe essa verba por dez, 15 anos, durante o exercício. Só que, quando se aposenta, você perde essa verba, que já estava incorporada ao seu patrimônio. Então é muito duro, entendeu? Isso é um regime que a gente precisa alterar, entendeu? A gente precisa alterar. Há um projeto em andamento, a PEC do Teto, que quer cortar tudo. Isso é uma coisa que preocupa muito a gente. Estive falando com o presidente da Câmara e com o do Senado sobre isso. É uma coisa muito desagregadora, uma derrota para a magistratura. Vai ser uma loucura isso.

ConJur – Se essa PEC for aprovada, a debandada da magistratura vai ficar pior?
Marcelo Buhatem – Ah, vai triplicar.

ConJur – O senhor considera que o Direito brasileiro hoje está melhor ou pior do que quando o senhor ingressou na carreira?
Marcelo Buhatem – O Direito é mutável, ele vai se adaptando com o tempo, vai mudando conforme as exigências da sociedade. O feminicídio, hoje é o tema do dia. Essa construção de ativismo judicial é a construção do dia, isso vai evoluindo. Agora, pode haver involução em alguns temas. É óbvio que todo mundo se preocupa com a possibilidade de um magistrado de primeiro grau exercer um ativismo que pode acabar sendo deletério para a própria visão do Judiciário, por conta de uma coisa crucial na magistratura, que é a segurança jurídica. Então essa é a minha maior preocupação, de que o eventual ativismo acabe matando o princípio da segurança jurídica.

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