Tribunal do júri

O jury nullification (Parte 2)

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

29 de maio de 2021, 8h04

No artigo da semana passada iniciamos a discussão sobre o jury nullification, ou seja, a possibilidade de os jurados não acatarem leis severas e/ou frustrarem acusações abusivas, especialmente quando elas possam levar a injustiças. Agora, antes de avançarmos um pouco mais a respeito do tema, faz-se importante refletir se existe uma discrepância na forma como os jurados e os juízes profissionais decidem. Para tanto, é de extrema importância resgatarmos uma pesquisa feita em 1966 por Harry Kalven e Hans Zeisel, ambos professores da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Trata-se da (ainda) mais importante análise conduzida objetivando aferir se, a partir do mesmo caso concreto e do seu conjunto probatório, jurados e togados decidiriam diferentemente. Para tanto, enquanto os jurados deliberavam a respeito do veredicto, juízes profissionais eram instruídos para que preenchessem um questionário avaliando a natureza do caso, a qualidade da prova e o grau com que as elas favoreceriam as partes. Após, sem serem influenciados pelo resultado alcançado pelo Conselho de Sentença, os magistrados deveriam indicar como decidiriam o caso. Participaram da pesquisa mais de 500 juízes de várias partes dos Estados Unidos, os quais responderam 3.576 questionários em matéria criminal e mais de 4 mil relacionados a casos cíveis [1].

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O resultado da pesquisa revelou que em 78% dos casos juízes e jurados chegariam ao mesmo resultado. E quanto aos 22% restantes? Caso os processos fossem julgados por magistrados togados, teríamos mais condenações do que absolvições. Em 19% dos casos restantes, enquanto os jurados decidiriam pela absolvição, os togados profeririam condenações. Apenas em 3% ocorreria o inverso, isto é, os jurados condenariam e os togados absolveriam. Em conclusão, Vidmar e Hans advertem que, em cada cinco casos julgados, juízes e jurados alcançariam o mesmo resultado em quatro deles e, nos casos restantes, os jurados seriam mais do que seis vezes mais complacentes com a absolvição em comparação com os juízes profissionais. Ademais, revelou-se que a discordância entre juízes e jurados não seria uma consequência direta da dificuldade do caso, eis que a cizânia ocorreria igualmente nos casos considerados simples. Por último, os autores concluíram que a diminuta divergência entre eles não poderia ser atribuída ao desconhecimento ou relutância em deixar de seguir a lei.

O que levariam os jurados a serem, em tese, um pouco mais complacentes com decisões absolutórias é um tema que merece a nossa reflexão. Segundo o professor Darryl Brown [2], existem quatro tipos de jury nullification: 1) quando os jurados absolvem o acusado por considerarem a lei injusta; 2) quando uma lei justa acarretaria uma punição desproporcional, como, por exemplo, a prisão perpétua; 3) quando os jurados identificam que a ação estatal se deu a partir de um mau comportamento de um agente estatal e desejam absolver o acusado como uma forma de penalizar o próprio Estado, mesmo tendo ciência de que a lei é justa e que teria sido aplicada da maneira correta; 4) quando os jurados absolvem motivados por preconceitos e vieses contra a acusação ou a favor do acusado, hipótese que geraria um claro excesso e não poderia ser tolerada, apesar da clara dificuldade em se exercer uma forma de controle efetivo.

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Chama a atenção o fato de que as decisões benéficas ao acusado são muitas vezes proferidas mesmo após o magistrado ter instruído os jurados em sentido diverso e técnico. Em 1973, em Nova Jersey, Lester Zygmaniak foi levado a julgamento pela acusação de ter assassinado George, seu irmão mais velho, no leito hospitalar, no caso que ficou conhecido como "mercy killing". A vítima sofrera um sério acidente de motocicleta que ocasionou tetraplegia e havia solicitado que seu irmão tirasse a sua vida, eis que em decorrência das lesões não conseguiria praticar o suicídio ("You're my brother, I want you to promise to kill me. I want you to swear to God" [3]). Lester se armou, foi até o hospital e atirou contra o seu irmão. Quando do seu interrogatório, declarou: "Eu estou aqui para acabar com a sua dor, George. Você concorda com isso? Ele acenou com a cabeça que sim a próxima coisa que eu me recordo é de ter atirado nele". Ao final do sexto dia de julgamento, o magistrado M. Raymond McGowan instruiu o Conselho de Sentença que eles deveriam rejeitar qualquer argumento de ordem sentimental, piedade ou clemência e que sua incumbência seria a de julgar unicamente com base nas evidências. Os jurados (sete homens e cinco mulheres), após 2h35 de deliberação, absolveram Lester da acusação de homicídio sob o fundamento de que ele estaria temporarily insane quando desferiu os disparos de mataram seu irmão, mas que atualmente já teria recobrado a sanidade. "A mensagem transmitida pelo veredicto foi clara: nesse caso, ao menos, o compromisso de cuidar de um ente querido foi mais importante do que seguir a letra da lei" [4].

Os casos citados no artigo da semana passada devem ser vistos com cautela, especialmente diante da (reduzida) competência do Tribunal do Júri no Brasil, mas nos fazem considerar a hipótese de os jurados exercerem uma jurisdição mais empática quando comparada com a justiça togada.

Parte da doutrina atribui ao chamado "calo profissional" ou "vincos do hábito" [5][6], um dos mecanismos que importaria numa maior tendência condenatória pelos togados, a qual se somaria a renúncia ou inércia quanto a uma reflexão mais aprofundada da substância fática que permeia o caso penal [7]. Em consonância com Calamandrei: "Há, entre os advogados e os magistrados, certa tendência a considerar material descartável as questões de fato e dar à qualificação de 'fatista' um significado depreciativo. (…) O fatista, magistrado ou advogado, é um homem de valor, modesto mas honesto, para quem importa mais encontrar a solução justa que melhor corresponda à realidade concreta do que fazer bela figura como colaborador de revistas jurídicas; e que, pensando mais no bem dos réus do que no seu próprio, consagra-se, por eles, ao longo estudo dos autos, que requer abnegação e não dá glória" [8].

Os jurados, por sua vez, talvez pela efemeridade com a qual exercem a jurisdição, têm uma tendência natural a dedicar uma maior atenção a cada elemento probatório trazido aos autos e trabalhado pelas partes em suas sustentações orais. Quiçá, por não conhecerem — como regra  o caso e por não terem atuado nas fases anteriores, especialmente na fase investigativa, os jurados não adentram ao plenário previamente convencidos da hipótese acusatória. Além disso, conseguem superar mais facilmente a barreira epistemológica para acessar o conhecimento do acusado e da vítima e, reconhecendo a alteridade que permeias nossas relações sociais e os pontos de contato entre aqueles que partilham da mesma localidade física e temporal, identificam no outro aquilo que está dentro de si.

O cidadão-jurado nunca será ou sentirá exatamente como o outro (acusado e vítima), mas pode mais facilmente buscar "estar junto", resgatando as suas próprias experiências vivenciadas em situações similares (nunca as mesmas) no intento de melhor compreender o outro e se aproximar da justiça no caso concreto. Tal compreensão, grandemente estimulada pelos debates e pelo exercício de deixar a mente aberta, edificam uma jurisdição mais empática quando comparada com os juízes profissionais.

Considerando os casos que já atuamos, percebemos que os jurados, por vezes, conferem uma interpretação mais alargada das excludentes de ilicitude e de culpabilidade, ministrando uma maior proteção que não seria proporcionada pelo tecnicismo do magistrado. Em outros casos, reconhecem com maior facilidade o privilégio, vislumbrando a contribuição da vítima para a eclosão dos fatos.

A preocupação com a justiça no caso concreto também é um objetivo presente na nossa legislação. Para tanto, por exemplo, basta atentarmos para a possibilidade do reconhecimento da chamada "atenuante inominada" (CP, artigo 66). Por outro lado, nas hipóteses de homicídio culposo (CP, artigo 121, §5º), o magistrado pode deixar de aplicar a pena "se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção se torne desnecessária". Porém, os critérios diferenciadores entre a culpa consciente e o dolo eventual nem sempre são de fácil visualização, principalmente para os jurados. Atua com dolo eventual um pai que, após ter ingerido moderadamente bebidas alcoólicas e, trafegando com o seu veículo em velocidade superior ao máximo permitido para a via, vem a causar a morte de seus próprios filhos colidindo com o seu veículo contra um poste? Seria exigível do jurado saber sopesar a dor "no dolo" e a dor "na culpa" no eventual pedido de desclassificação?

Relembrando as palavras de John Wigmore (1863-1943), Hans e Vidmar retratam que, por vezes, a lei e a justiça no caso concreto entrarão em conflito. Assim, uma vez que a lei não pode abranger todas as circunstâncias, seria dever dos jurados ajustar a regra geral às especificidades do caso concreto. Por isso, para Wigmore, seria essencial que o júri mantivesse esse poder de "nulificar a lei" [9].

A Suprema Corte dos Estados Unidos possui precedentes descrevendo que o júri exerce uma função política expressando o sentimento popular contra leis injustas e práticas opressivas. Citam-se, entre outros, os casos Duncan v. Louisiana (1968) e Taylor v. Louisiana (1975). Nesse último, a Suprema Corte descreveu o propósito do júri como "a proteção contra o exercício arbitrário do poder  tornando válido o senso comum da comunidade como uma barreira contra o excesso de zelo acusatório e sua predileção profissional ou talvez supercondicionada ou tendenciosa do juiz".

Nos estados de Indiana e Maryland  apesar de não ser a regra para os demais estados , ao final do julgamento os jurados são instruídos a respeito do jury nullification. Em Maryland, por exemplo, os juízes pontuam algo como:

"Membros do júri: esse é um caso criminal e por força das constituição e leis do estado de Maryland, em um julgamento criminal os jurados são os juízes tanto da (correta aplicação da) lei como dos fatos. Assim, seja o que for que eu disser a respeito da lei, enquanto se destina a ser útil para que vocês alcancem uma justa decisão para o caso, isso não deve ser considerado vinculativo para os membros do júri e vocês podem concordar ou discordar. E, vocês devem aplicar a lei como apreendem ser para o caso" [10].

O júri canaliza as opiniões sócio-políticas de uma dada comunidade circundada num espaço temporal e legal. E, no aspecto acima tratado, o júri tem o poder de "nulificar" uma lei devidamente aprovada pelo legislativo e interpretada pelo judiciário, mesmo que sua aplicação ocorra em apenas um único caso. Assim, o jury nullification é caracterizado pelo veredicto absolutório, mesmo quando os jurados entendam que o acusado é culpado de acordo com a lei e com os fatos.

No Brasil, a questão ganha uma dimensão especial diante da atual discussão no STF (ARE 1225185) a respeito da possibilidade do manejo de recurso em situações de decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. Diante da soberania dos veredictos (CR, artigo 5º, XXXVIII), seria possível ao jurado absolver com fundamento genérico (CPP, artigo 483, III)  como a clemência  mesmo em um sentido manifestamente contrário à prova dos autos? Seria possível a uma corte togada cassar a decisão quando restar demonstrada a total discrepância com as provas dos autos? [11]

A decisão que se avizinha será um divisor de águas e os argumentos contrários e favoráveis serão melhor analisados na terceira e última parte sobre jury nullification na coluna Tribunal do Júri.

 


[1] VIDMAR, Neil; HANS, Valerie P. American juries. The verdict. Amherst-NY: Prometheus Books, 2007, p. 148.

[2] BROWN, Darryl. Jury Nullification within the Rule of Law, 81 Minnesota Law Review 1149 (1997), apud… VIDMAR, Neil; HAN, Valerie P. American Juris…, p. 227.

[4] KASSIN, Saul M; WRIGHTSMAN, Lawrence S. The American Jury on Trial. Psychological Perspectives. US: Taylor & Francis, 1988, p. 157.

[5] TORNAGHI, Hélio, Curso de Processo Penal, 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, vol. 2, p. 11.

[6] LYRA, Roberto. Introdução à obra O Júri sob todos os aspectos. BARBOSA, Rui. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1950, p. 20. De acordo com Roberto Lyra: "A justiça do Júri depende mais de inspiração, sensibilidade, equilíbrio do que de cultura pretenciosa ou vincada, do que de inteligência impulsiva ou extravagante. (…). É preferível o jurado atento, cauteloso, refletido, pela sábia intuição de sua insuficiência, de sua fraqueza, de sua falibilidade, do que o improvisador audacioso, original e brilhante, ao flutuar das superfícies e das aparências". (Ibidem, p. 25).

[7] Para uma visão crítica a respeito da justiça profissional: BINDER, Alberto M. Crítica a la justicia profesional. Revista Derecho Penal. Ano I, n. 3, p. 61-67.

[8] CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 165.

[9] HANS, Valeria P.; VIDMAR, Neil. Judging the Jury. Cambridge: Perseus Publishing, 1986, p. 155.

[10] KASSIN, Saul M; WRIGHTSMAN, Lawrence S. The American Jury on Trial. Psychological Perspectives. US: Taylor & Francis, 1988, p. 160.

[11] A divergência também resta estampada no STJ, 3ª. Seção, HC n. 313.251/RJ, Rel. Min. Joel Paciornik, j. 28.02.2018.

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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