Opinião

Nacionalização e federalização da Defensoria: uma promessa constitucional

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

29 de maio de 2021, 7h13

Com a Constituição Federal de 1988, a dignidade humana passou a ser elemento constitutivo do Estado democrático de Direito e a fundamentar a própria República, exprimindo a busca pelo exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.

A preocupação com a promoção dos direitos humanos, proteção dos direitos e garantias fundamentais, levou o constituinte originário à construção de instrumentos efetivos para a sua realização, em especial o modelo público de assistência jurídica gratuita como meio e recurso para o acesso à ordem jurídica e social justa.

Não obstante a escolha tenha sido efetivada pela Assembleia Nacional Constituinte de 87/88, a opção brasileira pelo modelo de assistência jurídica ofertada obrigatoriamente pelo poder público começou a se desenhar, e a se fortalecer, com a Constituição de 1934, que cometeu à União e aos estados o dever de criar órgãos especiais para assegurá-la.

O constituinte, em 87/88, se deparou com quatro opções de modelo público de assistência jurídica gratuita: 1) "advogados de ofício" como membros da estrutura da Justiça Militar, com provimento do citado cargo através de concurso público; 2) a assistência jurídica prestada por um "setor" da Procuradoria do estado, normalmente chamada de Procuradoria de Assistência Judiciária; 3) Coordenadorias de Assistência Judiciária, normalmente ligadas às Secretarias de Justiça, com cargo de "advogados de ofício" providos por concurso público; e 4) Defensoria Pública, como instituição advinda da Procuradoria-Geral de Justiça, irmã do Ministério Público, em que seus membros eram detentores de prerrogativas, garantias, vedações e deveres muito semelhantes aos dos promotores de justiça.

A Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988 com a escolha desse último modelo, em que os defensores públicos tinham como atribuição, por exemplo, exercer a função de curador especial, de defensor do vínculo matrimonial e a defesa dos direitos dos consumidores, com clara vocação pro hominem, dissociada do critério único de hipossuficiência econômica; vocação interventiva exercida sem representação de parte e a vocação coletiva imanente aos processos que envolvem relação de consumo.

A Constituição pretendia concretizar a promessa de acesso aos direitos fundamentais de milhões de cidadãos brasileiros, citando a essencialidade da Defensoria Pública diretamente nos artigos 21, XIII; 22, XVII; 24, XIII; 33, §3º; 48, IX;61, §1º, II, d; 134; 35, VII; e no Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, no artigo 22. Portanto, foi a Defensoria Pública o modelo nacionalizado (a ser implantado em todos os estados) e federalizado (a ser implantado na União, no Distrito Federal e nos territórios) de assistência jurídica gratuita.

Inúmeras emendas constitucionais se sucederam, e muitas delas alteraram ou aperfeiçoaram a feição da instituição e da carreira. Colhe-se especificamente a Emenda Constitucional 80/2014 que, entre inúmeras disposições, determina, no artigo 98, do Ato das Disposições Constitucional Transitórias, que a União, os estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, no prazo de oito anos.

E já se passaram sete anos dessa promessa constitucional e os números trazidos pela Pesquisa Nacional da Defensoria Pública do Brasil não são nada alvissareiros. Publicada no último dia 21, a pesquisa decorre de uma parceria do Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais, do Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais e da Defensoria Pública da União.

A pesquisa mostra que as Defensorias Públicas estaduais estão presentes somente em somente 44,5% do total de 2.585 comarcas, ou seja, menos da metade destas unidades judiciárias contam com atendimento de um defensor público. Se levarmos em consideração a população com renda de até três salários mínimos, reduzindo o cenário para análise utilizando somente a hipossuficiência econômica como critério de atendimento pela instituição, do total de 186 milhões de pessoas que são potencialmente assistidas, 71,2% se encontram em comarcas atendidas.

Logicamente esse quadro muda drasticamente quando são analisadas as unidades da federação isoladamente. Em alguns estados temos situações mais dramáticas. No estado do Ceará, por exemplo, somente 36,4% do total de comarcas são atendidas, e a população que pode contar com os serviços de assistência jurídica gira em torno de 44,7% do total da população do estado.

Relativamente à Defensoria Pública da União, conta-se no Brasil um total de 279 sessões judiciárias, contudo apenas 28,67% dessas sessões têm a atuação de um defensor público federal.

Um duro golpe sofrido pelas Defensorias Públicas e pelo próprio acesso à Justiça nacionalizado e federalizado ocorreu com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, que estabelece o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, a serem corrigidos apenas pela inflação. A EC nº 95/2016 é, sem dúvida, uma das razões dessa lentidão ou suspensão de implementação da Defensoria Pública em todo o Brasil, tendo em vista que materializou uma verdadeira ruptura constitucional, impedindo a concretização dos instrumentos hábeis a garantir o exercício dos direitos sociais e individuais, comprometendo, assim, todo o núcleo essencial da Constituição de 1988.

Com a advento da EC nº 95/2016, a implementação desses direitos sociais foi suspensa, como saúde e educação e a implementação da dimensão organizacional do acesso à Justiça pela Defensoria Pública, restando o comando inserido pela Emenda Constitucional nº 80/2014 completamente inviabilizado.

Além de paralisar a efetivação de novas unidades de atendimento das Defensorias Públicas e de praticamente estagnar o crescimento do número de defensores públicos, corre-se o sério risco de retrocessos, como o fechamento de unidades em todo o Brasil e o esvaziamento da carreira com profissionais migrando para outros cargos, sem sequer se dar a devida reposição dos quadros.

Em todo o Brasil, as unidades de atendimento da Defensoria Pública se concentram nas capitais, regiões metropolitanas e cidades de maior densidade, por isso alcançam um grande contingente populacional, e a ausência de realização do comando inserto na EC nº 80/2014 atinge exatamente as pessoas que residem nos pequenos centros urbanos e nas zonas rurais, em que todos os outros direitos também ficam carentes de implementação.

A Defensoria Pública, além da orientação e defesa jurídica das pessoas vulnerabilizadas em questões judiciais e extrajudiciais, também tem o dever de promoção dos direitos humanos e de atuar como player democrático  amicus democratiae —, promovendo a ampliação multifacetada e pluralizada dos debates da República quanto à formulação de normas jurídicas, políticas públicas, projetos e programas em prol dos vulnerabilizados, buscando dotar de recursos financeiros e estruturais para assegurar o pleno exercício da cidadania e da dignidade às pessoas que compõe a tessitura social historicamente esgarçada e excluída.

O acesso à Justiça pela Defensoria Pública integra o núcleo duro dos direitos sociais trazidos pela Constituição de 1988, e a instituição deve também ser considerada como cláusula pétrea que inadmite retrocesso, mitigação ou abolição pelo constituinte revisor ou reformador.

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  • Brave

    é doutorando em Direito Constitucional (UNIFOR), mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal, com estágio na Georg-August-Universität Göttingen, Alemanha, pós-graduado em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará, sócio fundador do Instituto Latino-Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia – ILAEDPD, membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo – ANNEP e da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro, defensor público do Estado do Ceará, professor de Direito Penal e Processo Penal e Civil da Graduação e Pós-Graduação. professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará – ESMEC, membro do Conselho Editorial da Boulesis e da Emais Editora.

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