Observatório constitucional

'Ideologia! Queremos uma para viver'. E temos?

Autores

  • Daniel Falcão

    é controlador geral do município e encarregado pela proteção de dados da Prefeitura de São Paulo advogado cientista social professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor mestre e graduado pela Faculdade de Direito da USP pós-graduado em Marketing Político e propaganda Eleitoral pela ECA/USP e graduado em Ciências Sociais pela FFLCH/USP.

  • Camilo Jreige

    é graduando em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).

29 de maio de 2021, 8h03

"Ideologia! Eu quero uma pra viver. Ideologia! Eu quero uma pra viver". Essa frase, eternizada em solo pátrio por Cazuza e musicada por Frejat, nos permite adentrar em uma discussão filosófica, política e jurídica muito mais profunda. A estrofe, em verdade, revela um problema que há muito perdura no Brasil: a ideologia (ou falta de) como verdadeira miscelânea para a organização partidária.

O próprio cantor, em entrevista concedida no ano de 1988 para a TVE-RS, revelou seus pensamentos imiscuídos na música que marcou e marca gerações. Para o artista, a sua intenção era a de demonstrar que "faltam valores nos quais a gente possa confiar. (…) As pessoas estão precisando acreditar em alguém, que a gente tenha uma corrente de pensamento, porque ideologia é uma corrente de pensamento. (…) Os partidos políticos aqui no Brasil… é tudo muito misturado" [1].

As reflexões trazidas por Cazuza, por certo, não ficam adstritas apenas ao âmbito artístico, fazendo com que certas indagações não somente sejam possíveis, como necessárias no âmbito político. Uma delas, indubitavelmente, gira em torno do processo de alistamento de candidatos e a sua relação com os partidos, perpassando, inegavelmente, pelas noções de ideologia e representatividade [2].

Ora, nos ditames atuais do ordenamento jurídico brasileiro, para que um indivíduo consiga participar do processo eleitoral, é necessário que se preencha o que ficou conhecido como condições de elegibilidade. Essa previsão recebeu atenção tão especial que foi positivada no texto constitucional.

Nos termos do artigo 14, § 3º, constituem-se como condições de elegibilidade: 1) a nacionalidade brasileira; 2) o pleno exercício dos direitos políticos; 3) o alistamento eleitoral; 4) o domicílio eleitoral na circunscrição; 5) a filiação partidária; e 6) a idade mínima para determinados cargos. No mesmo sentido, especificamente sobre a filiação partidária, há também previsão infraconstitucional, consoante os ditames do artigo 11, §14º, da Lei das Eleições.

E, ciente de que a filiação partidária é requisito tanto constitucional quanto infraconstitucional para a elegibilidade, o presente artigo se dedica a analisar os contornos dessa temática, levantando um debate que já é antigo, mas cada vez mais atual, da possibilidade ou não de que indivíduos se candidatem por meio do que se conhece como candidatura avulsa, que é, de maneira direta, uma candidatura que não exige a filiação do candidato a nenhum partido.

O debate, por certo, é interessante. Apesar de ser cláusula constitucionalmente prevista, o ministro Luís Roberto Barroso bem apontou, quando da abertura da audiência pública no recurso extraordinário nº 1.238.853/RJ, realizada pelo Supremo Tribunal com vistas a discutir precisamente as candidaturas avulsas, que "como, na democracia, nenhum tema é tabu, também está aberto à discussão. (…) saber se é indispensável para o país a filiação partidária para fins de candidaturas, se isso é bom e fortalece a democracia, ou se isso significa uma reserva de mercado para partidos que não têm uma democracia interna" [3].

Nesse diapasão, atualmente o Supremo Tribunal Federal, por meio do recurso extraordinário supramencionado, se dedica a analisar a matéria e, potencialmente, realizar o judicial review, abrindo como caminho viável a candidatura avulsa.

E a discussão surge, precipuamente, em decorrência de um certo descolamento entre a classe política e a população, seja por ausência de representatividade, seja por conta da imensa celeuma ideológica existente nos 33 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral [4].

Sobre a temática, de um lado estão aqueles que vislumbram dois principais problemas acerca da candidatura avulsa e a revisão judicial por parte do STF. A uma, apontam que não se trata de matéria passível de análise da corte, uma vez que eventual mudança constitucional nesse sentido deveria ser praticada pelo Congresso Nacional.

A duas, apontam possíveis déficits na estruturação do próprio sistema eleitoral. A dinâmica do sistema, por exemplo, seria impactada de pronto por conta das celeumas envolvendo as eleições proporcionais, ao mesmo passo que também seria prejudicada a organização do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha — que, por seus turnos, são pautados a partir da votação dada ao partido na Câmara dos Deputados, bem como pelo seu resultado de representatividade obtido no Senado Federal. Não se poderia, ainda, para os adeptos dessa linha, descartar a distribuição do tempo de propaganda gratuita, que utiliza critérios partidários. Caso houvesse uma candidatura, como ficariam essas questões de ordem prática?

Representante emblemático desta linha é Carlos Eduardo Frazão [5], que, inclusive, vai além. Ele aduz, pautado nas proposições de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que há também um problema de ordem teórica: o fato de que, em sua visão, os partidos se constituem como centrais para o fortalecimento das instituições democráticas [6].

Para os defensores dessa linha, também há o entendimento de que estabelecer a filiação partidária como condição de elegibilidade não viola supostos requisitos estabelecidos pelo Pacto de San José da Costa Rica. É que já se foi levantado que o texto da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, por meio de seu artigo 23, representaria óbice para a criação de critérios que dificultassem ou tornasse a participação no processo eleitoral algo extremamente oneroso.

Essa discussão foi levantada a partir do caso Castañeda Gutman versus México, cujo objeto era a tentativa de Castañeda, cidadão mexicano, de concorrer ao cargo de presidente do México, nas eleições que foram realizadas em 2006, independentemente de filiação partidária.

A corte, todavia, entendeu em sentido contrário ao que pretendido por Castañeda. Após ter se manifestado no ano de 2008 sobre o caso, ela assentou que não é incompatível a exigência de filiação partidária com o que prevê o Pacto de San José da Costa Rica, notadamente porque, apesar de o artigo 23 do mencionado texto colocar certas cláusulas exclusivas que poderão regulamentar o exercício e o alcance dos direitos políticos, eventual norma que, dada a proporcionalidade e razoabilidade, imponha certas restrições como condição de elegibilidade, não constitui violação a direitos individuais, mas sim uma escolha de sistema eleitoral.

Por outro lado, defendendo a candidatura avulsa estão os que argumentam que esse sistema contribui para um fortalecimento da oligarquia, em sua acepção mais clássica, revelando a concentração do poder na mão de poucos — ou, na realidade partidária, na mão de poucos partidos, assim como, dentro destes partidos, na mão de poucos representantes.

A representatividade, assim como a volatilidade de ideologia se constituem como importantes argumentos aventados pelos receptores da candidatura avulsa. Essa volatilidade de ideologia, inclusive, já foi objeto de muito estudo ao longo da história brasileira. E a literatura rema no sentido de apontar que até mesmo os partidos que possuem uma base ideológica mais forte na época de sua fundação, acabam tomando outros rumos diferentes com o passar dos anos [7]; e essa situação fica ainda mais prejudicada por conta do sistema de coligação.

Há, também, uma preocupação com o que pode ser chamado de enraizamento dos partidos políticos, especialmente por conta de que serão estes os responsáveis por legislar. E, segundo argumentam, as leis jamais serão criadas no sentido de prejudicar os partidos. Ao revés: serão criadas para aumentar os seus benefícios e proteger a própria classe [8], faltando com transparência e compromisso com os recursos públicos.

Deve ser destacada, ainda, uma argumentação de natureza mais abstrata, mas que, de fato, pode apresentar certas consequências práticas. Na lógica partidária atual, não há um crivo e critérios teóricos e ideológicos muito bem estabelecidos envolvendo quem pode ou não se filiar. E mesmo o crivo dentro do partido para decidir quem se lançara candidato não é demasiadamente criterioso, apresentando largas divergências pelo território nacional.

Ainda segundo essa linha de pensadores, isso gera um efeito perverso para a ideologia, colocando no mesmo barco diversos indivíduos que possuem pensamentos opostos — ainda que sejam do mesmo partido. E isso não é raro de acontecer, como pôde ser observado a partir do emblemático caso da deputada federal Tabata Amaral (SP), que, filiada ao PDT, objetivou se desfiliar por conta das discordâncias de natureza ideológica (nesse caso, o posicionamento do partido na reforma da Previdência em 2019). Ela teve de recorrer ao TSE para buscar uma justa causa para sua desfiliação e obteve sucesso em seu pleito na última terça-feira.

Por certo, ambos os lados possuem argumentos plausíveis e que devem ser observados, ao mesmo passo que tanto o sistema de filiação partidária, quanto o sistema que potencialmente permite uma candidatura avulsa apresenta pontos negativos.

O cerne do debate, invariavelmente, exige uma observância de diversos elementos. É bem verdade que ambas as visões possuem pontos de melhorias, assim como vantagens e desvantagens inatas ao modelo.

No entanto, para que se consiga entender o ponto nodal da discussão, é preciso apontar, preliminarmente, que a questão da candidatura avulsa gira em torno de uma indagação: a impossibilidade de candidatura avulsa se constitui como uma restrição de direitos e garantias individuais ou como possibilidade do sistema político escolhido?

A resposta, é verdade, já foi dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não se considera como uma violação da liberdade individual constituir a filiação partidária como condição de elegibilidade. É uma opção válida do sistema eleitoral, se assim os legisladores optarem.

E, se essa premissa é verdade, então, por conseguinte, a discussão deve girar em torno da análise dos pontos fortes e fracos para adotar esse ou aquele modelo. E vários pontos de ambos os lados já foram suscitados, mas existem alguns que merecem especial atenção.

A candidatura avulsa pode, a partir de um primeiro olhar, de fato gerar uma sensação de maior pertencimento entre o eleitor e o candidato. Todavia, apesar de um candidato avulso ser independente fora do Congresso, se eleito ele acabará entrando em um outro mundo, com regras de jogo diferentes, fazendo com que, para ter alguma relevância interna, eles se somatizem aos partidos políticos [9].

Ou seja, seria apenas uma candidatura avulsa, mas uma legislatura vinculada.

Desse modo, talvez seja mais interessante levar o debate para alterações no próprio sistema partidário, com vistas a aprimorar o modelo, do que pensar que um ou outro modelo será salvador para o processo eleitoral. Em vez de cingir a discussão ao artigo 14, §3º, parece ser mais razoável e eficaz voltar a discussão para o artigo 17 da Constituição Federal, assim como para as legislações infraconstitucionais que tratam de elementos práticos da eleição e dos partidos.

Ao fim e ao cabo, entendemos que a frase imperativa dita por Cazuza está longe de encontrar uma resposta objetiva. A ideologia, é verdade, continuará gerando uma verdadeira confusão, ainda mais quando se fala em representatividade. Todavia, pensamos que a condição de filiação partidária não é uma solução que irá resolver todos os problemas — pode, ao revés, contribuir para gerar novos.

 


[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dzwyF7i0_rA. Acesso em 19 de maio de 2021.

[2] Ver: CARREIRÃO, Yan de Souza. O sistema partidário brasileiro: Um debate com a literatura recente. Brasília: Revista Brasileira de Ciência Política. nº 14, maio-agosto, pp. 255-295, 2014, p. 256.

[3] STF. Audiência pública – Candidaturas avulsas (1/2). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rFadh3mJ23M. Acesso em 20 de maio de 2021.

[4] Disponível em: https://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos. Acesso em 20 de maio de 2021.

[5] Ver: STF. Audiência pública. Op. Cit.

[6] Ver: LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[7] Ver: CARREIRÃO, Yan de Souza. O sistema partidário brasileiro: Um debate com a literatura recente. Brasília: Revista Brasileira de Ciência Política. nº 14. Maio-agosto, pp. 255-295, 2014.

[8] Foi nesse sentido a argumentação de Janaína Paschoal (deputada estadual – PSL/SP).

[9] Marilda Silveira, que também participou da audiência pública, disserta no norte de que isso aumenta a própria barganha dos partidos políticos. Ver: STF. Audiência pública. Op. Cit.

Autores

  • Brave

    é advogado, cientista social, doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Atualmente, exerce o cargo de Controlador Geral do Município de São Paulo.

  • Brave

    é membro do grupo de pesquisa Aditus Iure do IDP.

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