Opinião

A importância da lei complementar para a proteção dos contribuintes

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29 de maio de 2021, 13h14

O pagamento de impostos sempre foi tema polêmico e sensível no decorrer da evolução das sociedades. Ao longo do tempo, a forma com que se arrecada impostos transformou sociedades, derrubou reinados, construiu nações e, mais recentemente, recheou o Poder Judiciário de discussões intermináveis e com cifras estratosféricas.

Se antes a tributação era motivo de guerra com pólvora, mortes e destruição, hoje a disputa é travada nos tribunais; a ferocidade é bastante parecida, contudo, as armas são os argumentos, memoriais, sustentações orais e audiências e, sem dúvidas, o principal "herói de batalha" dos contribuintes é a Constituição Federal.

Mesmo que pareça exagerada a metáfora feita, é inegável a importância da Constituição Federal na proteção do contribuinte, já que lá estão postos os limites de até onde o Estado pode ir para cobrar impostos e retirar "a sua fatia" das riquezas geradas. Em tempos de crises, como o hoje vivido, esses limites se tornam ainda mais necessários e essenciais.

É certo que a tributação não pode ser reduzida apenas como as garras do Estado sobre o patrimônio de seus cidadãos. O dinheiro arrecadado faz a máquina estatal girar, permite que sejam disponibilizados serviços públicos essenciais, proporciona a redistribuição de renda e cumpre uma função extremamente necessária.

Apesar desse contraponto, não há dúvidas de que devem existir limites. Permitir de maneira aleatória que o Estado estabeleça novos impostos, sem qualquer critério, e retirar todo tipo de proteção dos cidadãos seria arriscar a sua própria estrutura, que, em pouco tempo, seria derrubada pelos próprios contribuintes insatisfeitos. Por isso, as balizas postas pela Constituição Federal funcionam como defesa para os contribuintes, já que traçam limites para a tributação do Estado, e como forma de garantir uma espécie de harmonia e ordem entre as instituições e seus cidadãos.

Nesse sentido, está em nossa Constituição Federal uma das principais defesas do contribuinte contra eventuais abusos do Fisco: as funções da lei complementar para o Direito Tributário.

A lei complementar para o Direito Tributário deve traçar os aspectos gerais da tributação [1], colocar as regras do jogo na mesa, enquanto a lei ordinária e outros instrumentos como decretos, instruções normativas e convênios devem desdobrar as nuanças do que está em lei complementar, sem, por certo, distorcer ou ir além do seu conteúdo.

A delegação dessa função para a legislação complementar protege os contribuintes de autoritarismos que podem existir, criando critérios fortes para que as regras gerais da tributação sejam estabelecidas e criando um dever de obediência ao que ficou determinado.

Nesse sentido, a legislação complementar é verdadeiro escudo ao contribuinte para proteção em face de eventuais excessos do Fisco na cobrança de tributos, seja pelo seu campo de competência para prescrever regras gerais como também pela sua maior dificuldade em aprovação.

Ademais, esse sistema mais rígido criado pela legislação complementar muito se relaciona com a necessária segurança que o contribuinte deve ter na relação com o Fisco. Estando protegido por parâmetros específicos, transcritos seja pela Constituição Federal, seja pela lei complementar, há mais certeza na forma com que os impostos e contribuições serão cobrados e o valor que será pago.

Nesse sentido, todas essas balizas foram colocadas em discussão no julgamento do RE 1.297.019 (Tema nº 1.093 da repercussão geral). A disputa travada envolvia o diferencial de alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pago pelos contribuintes em vendas realizadas entre estados da federação quando o destinatário final da mercadoria não é contribuinte de imposto, tendo como exemplo mais comum desse tipo de operação as vendas realizadas pela internet. Esse tipo de operação se tornou ainda mais comum nos últimos anos, já que o comércio pela internet se popularizou, tornando-se mais difundido entre a população.

Ademais, a própria pandemia da Covid-19 ajudou a disseminar essa forma de as empresas operarem, já que por muito tempo os estabelecimentos comerciais físicos permaneceram fechados. Ou seja, os valores envolvidos na venda pela internet apenas aumentaram nos últimos anos, relatórios feitos nos últimos meses indicaram que são mais de 41 milhões de usuários do e-commerce no Brasil [2].

Nesse cenário, antes da edição da Emenda Constitucional nº 87/2015, a forma de cobrança do ICMS em operações interestaduais variava conforme o fato do consumidor final ser ou não contribuinte de ICMS. O estado de destino apenas recebia parcela do ICMS quando a operação era destinada aos contribuintes de imposto, ou seja, quando a operação tinha como destinatário não contribuinte (e-commerce) o ICMS ficava todo com o estado de origem.

Tal fato concentrava a arrecadação nos estados em que os centros de distribuição das grandes empresas estavam localizados, deixando os estados em que era efetivada a compra (por internet) pelo não contribuinte de ICMS sem nenhuma parcela da arrecadação.

Tendo em vista o aumento das vendas pela internet e essa diferença de arrecadação quando a operação envolve não contribuinte de ICMS no elo final da cadeia, foi editada a Emenda Constitucional nº 87/2015, que alterou essa lógica. Alterou-se, então, o artigo 155 da Constituição Federal, que passou a prever o pagamento da diferença entre a alíquota interna do estado destinatário e a alíquota interestadual ao estado de destino, seja nas operações que envolvessem contribuinte final do imposto ou não contribuintes.

Ocorre que, apesar das mudanças na Constituição Federal para prever o Diferencial de Alíquota do ICMS (Difal) nas operações com não contribuintes do imposto, não foi editada lei complementar nova prevendo esse pagamento e não foi alterada a já existente Lei Complementar nº 86/97, que trata sobre os aspectos base do ICMS.

Apesar da ausência de lei complementar, foi celebrado entre os estados da federação o Convênio ICMS 93/2015, que traçou os aspectos gerais da tributação do Difal para os não contribuintes, estabeleceu a forma de cálculo dos valores e estendeu o Difal para o Simples Nacional com uma série de disposições novas.

Acontece que os convênios são legislações infralegais que estão curvadas ao que dispõe a lei. Ademais, no caso do Difal todas as novas disposições (por mais sintéticas que sejam) estavam previstas apenas pela Constituição Federal, sem terem sido previstas de maneira geral pela lei complementar.

Desse modo, os contribuintes se insurgiram em face da nova tributação posta sob o argumento principal de que inexistiria lei complementar traçando os aspectos gerais da tributação e o Convênio ICMS 93/2015 teria extrapolado em muita a sua função reguladora. Por outro lado, os Fiscos estaduais sustentaram que a própria Constituição Federal já prescreveu os aspectos gerais para a tributação, sendo desnecessária a edição de lei complementar, já que o convênio mencionado guardaria pleno respeito ao disposto pela Carta Magna e estaria apenas esmiuçando seus principais aspectos.

Ante a discussão instaurada, o Supremo Tribunal Federal afetou como Tema nº 1.093 da repercussão geral a seguinte controvérsia: "Necessidade de edição de lei complementar visando a cobrança da Difal nas operações interestaduais envolvendo consumidores finais não contribuintes do imposto, nos termos da Emenda Constitucional nº 87/2015".

Dessa forma, estava em jogo no julgamento o próprio papel da legislação complementar na cobrança do Difal. O adicionado pela Emenda Constitucional nº 87/2015 seria suficiente e o convênio editado teria apenas gravitando dentro das disposições constitucionais ou extrapolou seu campo de atuação e invadiu a competência da legislação complementar?

No início do ano de 2021, o caso foi levado à julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que entendeu por seis votos a cinco pela inconstitucionalidade da cobrança do Difal neste caso, entendendo que seria necessária a edição de lei complementar para regular a cobrança. O ministro relator Marco Aurélio, que votou pela inconstitucionalidade da cobrança, afirmou em seu voto que o constituinte foi incisivo quanto ao ICMS: "Reiterou a exigência de lei complementar versando elementos básicos do tributo, entre os quais contribuinte e local da operação, a teor do artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII".

Desse modo, o Pleno do Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que "a cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais".

Apesar do entendimento empossado, o Supremo Tribunal Federal também modulou a sua decisão tomada, permitindo a fruição de efeitos apenas após o exercício de 2022, ressalvadas as ações em cursos. Tal modulação foi uma forma de conceder um "prazo" para que os estados se articulem para que seja editada a legislação complementar sobre o assunto.

Importante ressaltar que já há em curso no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar 325/16, que tem por fim disciplinar o fato gerador, a definição de contribuinte, a base de cálculo e o local da operação do Difal na LC n° 87/96.

Mesmo com a modulação dos efeitos, o posicionamento firmado pela corte máxima do ordenamento brasileiro reforça bem a importância da lei complementar para o Direito Tributário, que deve trazer os aspectos gerais da tributação e os demais regulamentos devem guardar obediência aos seus comandos.

Reforçou-se, então, que, a legislação complementar tem um campo específico e é responsável por trazer os parâmetros gerais da tributação, não sendo possível que isso esteja previsto por lei ordinária ou por atos infralegais. Dessa forma, a importância da lei complementar, que possui um mecanismo mais rígido de aprovação, fica ainda mais evidente na defesa dos contribuintes e na preservação da legalidade da cobrança de tributos.

Essa importância é historicamente reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, que tende a privilegiar o campo de atuação da lei complementar, protegendo a sua competência. No julgamento do RE 1.287.019 ficou ainda mais claro esse ponto, já que o STF reafirmou a necessidade de edição da lei complementar para a cobrança do Difal em operações interestaduais quando o contribuinte final não é contribuinte do ICMS.

Sendo assim, há de se respeitar as matérias que devem ser prescritas de lei complementar, tanto em nome de uma relação harmoniosa como para respeito das regras do jogo na tributação, que, como se sabe, é essencial para manter o estado em funcionamento e sustentar o sistema criado ao longo dos anos.

 


[1] Prescreve o artigo 146 da Carta Magna que "Cabe à lei complementar: (…); III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários

[2] INGIZZA, Carolina. Vendas online no Brasil crescem 47% no 1º semestre, maior alta em 20 anos. EXAME. Disponível em: https://exame.com/pme/e-commerce-brasil-cresce-47-primeiro-semestre-alta-20-anos/, 2021

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