Opinião

Amazônia 451, uma distopia ambiental brasileira

Autor

  • Fernando Procópio Palazzo

    é advogado mestrando em criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal.

28 de maio de 2021, 6h05

Em 1953, o escritor americano Ray Bradbury escreveu um dos grandes clássicos da literatura século 20 intitulado "Fahrenheit 451". O aclamado autor escreveu seu texto em um período pós-guerras no qual o mundo buscava a superação das experiências com regimes totalitários e adentrava nas densas e obscuras nuvens da Guerra Fria.

Em sua obra, Bradbury apresenta uma distopia protagonizada pelo bombeiro Guy Montag. Em um cenário distorcido, a narrativa explicita um mundo onde as casas eram à prova de fogo e o papel dos bombeiros era, paradoxalmente, instigar o fogo, especificamente queimando livros. Tamanha era a relevância deste trabalho que os bombeiros possuíam bordado em suas vestes os números "451", os quais significavam a temperatura em que os livros entravam em combustão. A história prossegue em um curioso enredo em que os livros representavam um perigo para a sociedade e todo o conhecimento era controlado. Montag inicialmente suporta a narrativa oficial e combate a difusão de ideias subversivas que ocorria por intermédio dos livros. No entanto, com o passar do tempo e após contato com a jovem Clarisse, emergem dúvidas no coração do protagonista, o qual passa a questionar se os bombeiros teriam sido sempre responsáveis por incendiar livros e se estes seriam tão nocivos como era difundido.

Em meio a esse cenário piromaníaco, diversas questões sobre o sistema e liberdade são abordadas e propiciam relevantes reflexões que se perpetuam e gozam de aplicação até os dias de hoje. Todavia, a genialidade da referida obra se estende as mais diversas áreas da sociedade e pode ser perfeitamente utilizada como referência crítica para a compreensão de inúmeros processos de deturpação, manipulação e controle social.

Nessa linha de raciocínio, é possível encontrar um ponto de convergência entre a presente obra e questões ambientais atuais. A Floresta Amazônica é notoriamente conhecida por sua imensurável importância, possuindo, pois, a maior biodiversidade do planeta. A floresta tropical ocupa vastas áreas da América do Sul e a sua maior parte está localizada no Brasil. Ao longo da sua história, o Brasil sempre se confrontou com sérios problemas ambientais e procurou, ainda que de forma deficitária, combater o desmatamento e a destruição, o qual, com o passar dos anos, apenas se agravou. Ainda assim, o país, anfitrião da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), se destacava com a sua postura em prol da proteção e recuperação do meio ambiente.

No entanto, os números de desmatamentos e crimes ambientais que decresciam voltaram a ascender em 2013, sendo que dispararam nos anos de 2019 e 2020, conforme dados coletados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Diferentemente de anos anteriores, em que se visualizava uma postura corretiva e restaurativa, o governo federal, sob o comando do presidente Jair Bolsonaro e do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, passou a adotar uma postura refratária e negacionista do desmatamento que estava sendo perpetrado.

Não bastassem os alertas de diversos ambientalistas, cientistas e pesquisadores, o governo federal concentrou-se em negar os dados e relativizar o quadro caótico que estava ocorrendo.

Aliado à desinformação sobre o tema, reduções orçamentárias, desaparelhamento institucional, avanço da extração ilegal de madeira, impunidade, deformações estatísticas, perdão de multas e ceticismo consubstanciaram a tônica ambiental do país nos últimos anos. O ministro do Supremo Tribunal Federal Roberto Barroso resumiu o cenário da seguinte forma: "Declarações públicas de altas autoridades que sinalizaram desinteresse pela questão ambiental, associadas a atos concretos que implicaram em uma substancial alteração das políticas públicas necessárias à prevenção e ao controle do desmatamento".

À semelhança do cenário narrado por Ray Bradbury, o Brasil passou a viver um paradoxal cenário em que o papel da administração pública deixou de ser o de "apagar o fogo", mas, sim, de fomentá-lo. No dia 10/8/2019, uma série de queimadas criminosas foram perpetradas sem resposta institucional adequada, naquilo que ficou conhecido como o Dia do Fogo. Mesmo sofrendo severas críticas internacionais, o governo insistiu na retórica negacionista, a qual só veio a ser amenizada na Cúpula do Clima realizada em 22 de abril deste ano. Todavia, pouco tempo após a conferência, o governo federal prosseguiu na flexibilização da repressão ambiental e postura agressiva quanto à proteção ambiental.

Nesse cenário, ainda que inexista o bordado "451" (ou a temperatura correta para a combustão da floresta), observa-se trajar o governo brasileiro uma veste contraditória que busca salvaguardar criminosos ambientais, apaziguar ilícitos e estimular a destruição da Floresta Amazônica, sob um obscuro discurso progressistas. Aqueles que deveriam apagar o fogo parecem, ao revés, buscar incendiar.

A piromania que assola a Floresta Amazônica precisa ser interrompida. Na atualidade, a ignorância e a omissão estatal têm se apresentado como os grandes adversários da preservação. Tal qual sucedeu na obra de Bradbury, faz-se necessária uma redenção intelectual, informativa e operacional a fim de se assegurar condições para um meio ambiente equilibrado, sem o qual inexistirão condições sadias para o bem mais precioso que é a vida.

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