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Tenho a bênção de trabalhar no que gosto e no que acredito, diz Humberto Martins

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28 de maio de 2021, 21h06

Atual presidente do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Humberto Martins, em entrevista exclusiva à ConJur, narra sua trajetória desde a formação em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, nos anos 1970, seu período nos Estados Unidos, o tempo em que esteve à frente da OAB alagoana, seu período na advocacia, no Ministério Público, suas influências, seus mestres e o que pensa.

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No STJ desde 2006 (na magistratura desde 2002), Martins também falou dos principais julgados no seu tempo de 2ª Turma, da Corte Especial e depois à frente da Corregedoria Nacional de Justiça, ao lado do ministro Dias Toffoli, então presidente do STF e do CNJ.

Leia abaixo a primeira parte da entrevista  

ConJur — O senhor graduou-se em Direito pela Universidade Federal de Alagoas em Administração de Empresas pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (Cesmac). Quais são suas lembranças do período de faculdade? Que professores marcaram sua formação?
Humberto Martins —
O que me marcou foi a convivência com os amigos e colegas e a reflexão sobre o futuro profissional. A dúvida entre advogar ou seguir carreiras na magistratura ou no Ministério Público. Vivíamos a transição da década de 1970 para os anos 1980. Havia uma crise econômica em formação no Brasil, que se estenderia pelos anos 1980, mas também existia esperança no país e no futuro de nossa geração. Muitos de nós acreditávamos em uma sociedade mais ética, solidária e fraterna. Alguns desses valores terminaram por se incorporar na Constituição de 1988.

Participei da vida estudantil como integrante do centro acadêmico e das representações estudantis nos órgãos universitários na Ufal. O engajamento, naquela época, era para a melhoria do curso, das condições de ensino e aprendizagem. Paralelamente aos estudos na Faculdade de Direito, fui estagiário no Tribunal de Justiça de Alagoas, onde tomei contato com uma outra realidade, com o sofrimento do jurisdicionado, a falta de condições de trabalho da magistratura e o heroísmo da advocacia.

Fui abençoado com grandes mestres na Faculdade de Direito. Todos, cada um a seu modo, contribuíram para minha formação. Sou devedor de todos eles. Cito, apenas a título de exemplo, alguns nomes de mestres inesquecíveis. José Fernandes de Lima Souza, o Tourinho, era o titular de Direito Processual Penal. Uma pessoa que moldou minha visão sobre o Direito e foi modelo para minha futura atuação como magistrado no Tribunal de Alagoas e no Superior Tribunal de Justiça. Cito também Marcos Bernardes de Mello, grande professor de Direito Civil, divulgador e discípulo maior de Pontes de Miranda, autor dos célebres livros sobre os planos da existência, da validade e da eficácia, todos eles ainda hoje editados e com grande sucesso. Alfredo Gaspar de Mendonça, que foi procurador-geral da Justiça, e Antonio Aleixo, professor de Direito Penal. Silvio de Macedo, que foi diretor da Faculdade de Direito da Ufal, outro nome que está em meu coração. Ele era um homem culto, formado em Direito, Pedagogia e Economia. Foi um dos últimos catedráticos da Ufal. Lecionou Direito Civil, Introdução à Ciência do Direito, Economia, além de dominar grego e latim.

Alagoas sempre foi berço de grandes juristas. Pontes de Miranda, que é provavelmente o mais lembrado, está nesse panteão. Mas ao lado dele há nomes também relevantes, como os professores com quem tive o privilégio de conviver nos meus anos como estudante na Ufal.

Além de Direito, eu me formei na Cesmac em Administração de Empresas. Na época, fiz um estágio na então Salgema e fiz um curso de extensão na Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos, do qual também participou o hoje desembargador Fernando Norberto, atual presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco, embora seja alagoano.

Nunca imaginei quanto seria importante para minha trajetória profissional como futuro presidente da OAB de Alagoas e do STJ. Os conhecimentos de gestão foram fundamentais. Hoje em dia é cada vez mais necessário ao magistrado aliar a formação jurídica com conhecimentos de gestão. A eficiência da prestação jurisdicional depende da otimização de recursos, da alocação ótima de meios e do uso parcimonioso do dinheiro público.

ConJur — Antes de ingressar no Judiciário, o senhor foi aprovado em concursos públicos e exerceu cargos no Ministério Público (1979-1982) e como procurador do Estado de Alagoas (1982-2002). Como foi esse período?
Martins — Fui aprovado em primeiro lugar no concurso público de provas e títulos para o Ministério Público do Estado de Alagoas. Fui promotor e procurador do Estado. Exerci a docência superior na Faculdade de Direito da Ufal, na cátedra de Direito Penal, depois de aprovado, em primeiro lugar, em outro concurso de provas e títulos. Permaneci na docência entre 1992 e 2006. Fui integrante de bancas de concurso para professor da Ufal. Infelizmente, tive de dispensar atividades formais, como docente universitário por conta das exigências da magistratura. Mas nunca me afastei totalmente da sala-de-aula. Sou convidado para dar aulas, conferências e palestras. Aceito esses convites como uma forma de manter vínculo com a universidade. Mas, acima de tudo, para continuar aprendendo. Quando se leciona, o maior ganho que temos é aquilo que aprendemos com os alunos, que nos estimulam com seus questionamentos. Um intercâmbio enriquecedor.

Não me limitei a essas atividades. Pela generosidade dos colegas, que me convidam como membro honorário ou efetivo, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), da Associação de Magistrados de Alagoas, além de redes de pesquisa da OAB-AL.

Todas essas atividades serviram para forjar uma visão sobre os sistemas de justiça, em seus diferentes aspectos e com os problemas que afligem seus diversos atores. Aprendi, contudo, graças ao ensinamento bíblico, que é ilusão pensar que o conhecimento é algo que vem apenas de nós mesmos. Deus é fonte de toda a sabedoria, como disse o profeta Isaías (5:21). O apóstolo Mateus (11:25) lembra-nos que o Senhor escondeu a verdadeira sabedoria dos cultos e eruditos e a revelou aos pequeninos. Não há sabedoria onde não há humildade.

ConJur — O senhor advogou por 23 anos. Em que a experiência como advogado contribuiu para sua visão do Direito e da Justiça?
Martins — O advogado é indispensável à administração da Justiça. Esta é uma lição que todos aprendemos na vida prática e que a Constituição de 1988 transformou em seu artigo 133. Fui advogado e militei na OAB. Exerci todos os cargos de relevo na seccional de Alagoas e alguns cargos essenciais no Conselho Federal, como a presidência do colégio de presidentes seccionais. Convivi com grandes nomes da advocacia de hoje e de sempre.

A advocacia tem como função primordial a defesa do Estado democrático de Direito, dos direitos fundamentais e dos princípios da Constituição. Ser advogado é defender o ser humano e a sociedade; é agir como um instrumento de pacificação social. O advogado, a advogada não podem pleitear contra o Direito; é seu dever buscar, acima de tudo, a verdadeira Justiça.

Aprendi que é muito importante receber as partes, ouvir os advogados, apreender os fatos da vida por meio daqueles que são os verdadeiros instrumentos do único poder real no país, que são os cidadãos. Somos inquilinos do poder. O verdadeiro dono do poder no Estado é o povo. Como advogado eu entendi o que é o sofrimento, a sede por justiça. Essas experiências auxiliaram-me a ser um juiz melhor.

ConJur — Em 2002, o senhor foi escolhido pelo quinto constitucional para desembargador do TJ alagoano e, em 2006, o senhor foi nomeado para o STJ, tendo atuado na 2ª Turma.  Nesse período o senhor levou teses ao colegiado ainda hoje paradigmáticas. E manteve um elevado nível de produção com um número de cerca de 15.609 acórdãos e 238.415 decisões monocráticas. Esse ritmo não é massacrante?
Martins — Não. Em todas as áreas, penso que o sucesso está em fazer aquilo que se gosta e acredita. Esse propósito deve estar aliado à disciplina, à constância e ao aperfeiçoamento.

Tenho a bênção de trabalhar no que gosto e acredito, seja em sentido estrito, como julgador de casos concretos, seja em sentido amplo, como cidadão que está à disposição da Justiça e do jurisdicionado.

Julgar não é uma tarefa simples, mas fazer um trabalho cristalino e eficiente é um compromisso de cada julgador. Não é sem razão que a atuação jurisdicional contínua, transparente e afinada com o direito atualizado é um dos maiores objetivos das cortes brasileiras e de cada magistrado singularmente considerado. E eu, espero que com algum êxito, tenho procurado fazê-lo ao longo desses anos.

ConJur — Que teses de sua relatoria o senhor considera mais relevantes?
Martins — Foram milhares de casos. Mesmo assumindo cargos no tribunal, não abdiquei da jurisdição.

Posso citar como exemplos relevantes, na 2ª Turma do STJ, o REsp 1.364.915/MG, no qual uma conhecida empresa, sem informar claramente o consumidor, reduziu o volume de refrigerantes de garrafa PET de 600 ml para 500 ml. Meu voto reconheceu a prática de "maquiagem de produto" ou "aumento disfarçado de preços". No REsp 1.558.086/SP, de que fui relator, a Turma reconheceu a existência de publicidade abusiva dirigida a hipervulneráveis nos casos em que o fornecedor incita crianças a consumir alimentos industrializados para trocar embalagens por supostos brindes.

Na Corte Especial, fui relator do voto vencedor no EREsp 1.515.895/MS, que examinou o caso da informação presente na rotulagem de alimentos com glúten. O julgado, com eficácia erga omnes, firmou a tese no sentido de que não basta o rótulo ou a embalagem trazer a informação "contém glúten" ou "não contém glúten", sendo necessária também a advertência quanto aos malefícios do glúten aos doentes celíacos e afins.

Esses julgados acabaram sendo comentados em revistas especializadas, com grande impacto na doutrina.

ConJur — Como relator de importantes votos, sobretudo em matéria consumerista, como o senhor avalia o Direito do Consumidor no Brasil?
Martins — O advento da Lei nº 8.078/ 1990, o Código de Defesa do Consumidor, um diploma festejado no mundo, por sua completude, representou uma extraordinária inovação, pois os cidadãos brasileiros foram reconhecidos efetivamente como "consumidores". E isso não teve somente importância jurídica, mas também uma grande importância prática: o consumidor brasileiro está muito mais informado e exigente em relação a seus direitos.

Toda essa engrenagem incita os profissionais do direito a acompanharem a matéria consumerista. Interpretar e estudar matéria tão dinâmica, interdisciplinar e de imensa importância social é, sem dúvida, um desafio constante para todos nós.

Não apenas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, mas em toda a comunidade jurídica, pode-se afirmar que o direito do consumidor tem contribuído, ao longo desses mais de 30 anos, para a formação de um arcabouço muito relevante para a jurisprudência pátria e para a sociedade brasileira.

ConJur — O senhor ocupou a Corregedoria Nacional da Justiça, ao lado do ministro Dias Toffoli, que presidiu o CNJ. Quais as principais marcas de sua gestão?
Martins — Seguindo a linha dos anteriores presidentes do CNJ, o ministro Dias Toffoli não poupou esforços para aperfeiçoar o trabalho do Judiciário, em especial no tocante à transparência administrativa e processual, objetivando a efetividade e unidade do Judiciário brasileiro e, sobretudo, a preservação dos valores da justiça e da paz social.

O CNJ tem como missão constitucional zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, e seu Corregedor Nacional tem a competência específica de receber reclamações e denúncias contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro.

O trabalho como Corregedor Nacional de Justiça foi um dos mais importantes que desempenhei. Os magistrados devem se aproximar da sociedade, para que o cidadão possa conhecer o seu juiz e para que a recíproca ocorra. É preciso constantemente prestar contas à sociedade sobre o funcionamento do Poder Judiciário. Sem transparência não há como permitir que o cidadão, destinatário dos serviços judiciários, exponha suas necessidades e apresente seus reclamos e demandas. A transparência é condição necessária para aprimorar as instituições.

Adotei uma visão ampla do papel da Corregedoria, a qual não tem apenas o caráter punitivo, mas, principalmente, é um órgão que examina as situações, detecta eventuais falhas ou deficiências na atuação dos órgãos e propõe soluções e boas práticas para a melhoria e a modernização das atividades administrativas e jurisdicionais.

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