Opinião

PL 827/2020 é um incentivo à invasão de áreas públicas e privadas

Autor

  • Gabriel Mazarin Mendonça

    é advogado do Barreto Dolabella Advogados membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliario pós-graduado em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (EPD) e pós-graduando em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.

27 de maio de 2021, 17h08

O Projeto de Lei 827/2020, aprovado pela Câmara dos Deputados e encaminhado para o Senado Federal, esconde por trás da suspensão dos despejos previstos no artigo 59 da Lei 8.245/1991 (Lei de Locações), em razão da estado pandêmico ocasionado pela Covid-19, uma verdadeira carta branca para a invasão de áreas públicas e privadas, urbanas e rurais, pelos transeuntes.

Prevê o artigo 2º do PL 827/2020 a suspensão dos efeitos de ato ou decisão judicial, extrajudicial ou administrativo proferido/editado entre 20/3/2020 e 31/12/2021 que imponha a desocupação ou remoção forçada coletiva de imóvel privado ou público, urbano ou rural, que sirva de moradia ou que represente área produtiva pelo trabalho individual ou familiar.

Para o arrepio desse autor, esse artigo nitidamente incentiva a invasão de áreas públicas e privadas, principalmente rurais, tendo em vista que nesse período nenhuma medida poderia ser adotada para a sua proteção, inclusive a autotutela, consoante parágrafo 1º do artigo supracitado.

O parágrafo 1º prevê que, durante o prazo estipulado no artigo 2º, aplica-se a suspensão nos seguintes casos: 1) execuções de decisões liminares e de sentenças, em ações de natureza possessória e petitória, inclusive quanto a mandados pendentes de cumprimento; 2) despejos coletivos promovidos pelo Poder Judiciário; 3) desocupações e remoções promovidas pelo Poder Público; 4) medidas extrajudiciais; 5) despejos administrativos em locações e arrendamentos em assentamentos; 6) autotutela da posse.

Destaque para os incisos II, III e IV, que diz que, durante o prazo de suspensão estipulado no PL, os Poderes Judiciário e Executivo não poderiam promover despejos coletivos, desocupações e remoções, e pior, no prazo estipulado fica suspenso o exercício da autotutela da posse, o que nitidamente viola o artigo 5º, inciso XXII, da CF/88.

É garantido o direito de propriedade, sendo que, entre os atributos inerentes ao direito do exercício da propriedade, encontra-se justamente o direito de reaver ou buscar a coisa de quem injustamente possua ou detenha, sendo inclusive autorizado pelo permissivo legal manter-se ou restituir-se por sua própria força a posse turbada ou esbulhada.

Vetar qualquer possibilidade, tanto do Poder Judiciário e do Executivo quanto do setor privado, de manter ou restituir a posse do seu bem imóvel é autorizar e incentivar, mesmo que por prazo determinado, a turbação e o esbulho possessório.

O parágrafo 2º do artigo 2º do PL 827/2020 ainda prevê que as medidas decorrentes de atos ou decisões proferidos anteriormente ao prazo estipulado (20/3/2020 até 31/12/2021) não serão efetivadas, o que desvirtua o "objetivo" do projeto de lei, tendo em vista que as causas decorrentes do período anterior ao estado de calamidade pública não possuem conexão com o presente momento.

Com o intuito de consolidar a impossibilidade da autoridade administrativa e judicial de tomar qualquer providência durante esse período de suspensão, o parágrafo 3º prevê que não será adotada qualquer medida preparatória ou negociação com o fim de efetivar eventual remoção, e os processos em curso deverão ficar sobrestados até o encerramento da "suspensão".

Ao final do prazo de suspensão, o Poder Judiciário deverá, condição sine qua non, realizar audiência de mediação entre as partes, com a participação de Ministérios Público e Defensoria Pública, nos processos de despejo, remoção forçada e reintegração de posse coletivos que estão em tramitação e a realização de inspeção judicial nas áreas em litígio.

Vale ressaltar que, após o prazo de suspensão, provavelmente ainda não estaremos com toda a população vacinada e, consequentemente, as atividades não terão retornado em sua totalidade, o que irá ocasionar um enorme transtorno, que pode levar anos, até a efetiva desocupação e remoção dos transeuntes que injustamente esbulharam a posse das propriedades públicas e/ou privadas.

O artigo 4º, que possui uma maior coerência, mas não deixa de causar polêmica, prevê a impossibilidade da concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, nos casos dos incisos I, II, V, VII, VIII e IX [1] do parágrafo primeiro do artigo 59 da Lei 8.245/1991 até 31/12/2021. Desde que, o locatário demonstre a ocorrência de alteração da situação econômico-financeira decorrente de medida de enfrentamento à pandemia, que resulte em incapacidade de pagamento de aluguel e demais encargos sem prejuízo da subsistência familiar.

Além disso, a regra prevista no artigo 4º também só será aplicada nos contratos cujo valor mensal do aluguel não seja superior a R$ 600 no caso de locação de imóvel residencial e R$ 1,2 mil nos casos de locação de imóvel não residencial.

Entendo que nesse caso a iniciativa foi no intuito de ajudar as pessoas com menor poder aquisitivo e o pequeno empreendedor a enfrentarem a crise sanitária, atitude louvável, porém, na prática não funciona de maneira simples. Como ficam as pessoas que dependam dos frutos oriundos das locações para a subsistência da sua família?

Por fim, mesmo o artigo 7º, prevendo que as medidas tratadas no artigo 2º não se aplicam a ocupações ocorridas após 31/3/2021, na prática sabemos que isso não será obstáculo para que os transeuntes eivados de má-fé esbulhem a posse por tempo indeterminado, ou, no melhor cenário, até que cesse o período pandêmico e as atividades tenham retornado ao status quo ante, para que haja uma maior efetividade no cumprimento da reintegração dos seus direitos.

 


[1] "Artigo 59 – Com as modificações constantes deste capítulo, as ações de despejo terão o rito ordinário. § 1º Conceder se á liminar para desocupação em quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por fundamento exclusivo: I – o descumprimento do mútuo acordo (artigo 9º, inciso I), celebrado por escrito e assinado pelas partes e por duas testemunhas, no qual tenha sido ajustado o prazo mínimo de seis meses para desocupação, contado da assinatura do instrumento; II – o disposto no inciso II do artigo 47, havendo prova escrita da rescisão do contrato de trabalho ou sendo ela demonstrada em audiência prévia; V – a permanência do sublocatário no imóvel, extinta a locação, celebrada com o locatário; VII – o término do prazo notificatório previsto no parágrafo único do artigo 40, sem apresentação de nova garantia apta a manter a segurança inaugural do contrato; VIII – o término do prazo da locação não residencial, tendo sido proposta a ação em até 30 (trinta) dias do termo ou do cumprimento de notificação comunicando o intento de retomada; IX – a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no artigo 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo".

Autores

  • é advogado do Barreto Dolabella Advogados, membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliario, pós-graduado em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (EPD) e pós-graduando em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.

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