A culpa é do Cabral

Advogados cobram mais alinhamento entre Polícia e Ministério Público

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27 de maio de 2021, 22h02

A necessidade de alinhamento com o Ministério Público é o ponto mais citado por constitucionalistas e criminalistas, ouvidos pela ConJur, quanto à decisão encaminhada pelo Supremo Tribunal Federal nesta quinta-feira (27/5). A corte formou maioria para anular a homologação do acordo de colaboração premiada firmado entre a Polícia Federal e o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral (MDB-RJ).

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Acordo de delação de Sérgio Cabral foi firmado com a PF sem aprovação do MPReprodução

O relator Edson Fachin e o ministro Luiz Fux consideraram que o acordo deveria ter sido submetido à aprovação do Ministério Público. Outros cinco ministros, porém, votaram pela anulação com base em ilegalidades no acordo. Eles se abstiveram de estabelecer uma tese que valesse para outros casos além de Cabral, já que a corte decidiu em 2018 que delegados de polícia podem conduzir acordos de delação.

"A delação de Cabral 'foi sem nunca ter sido'. Uma delação que desmoraliza o que resta do instituto da delação. Simples assim. O incrível é que essa jabuticaba tenha se 'criado'.  Ainda bem que o STF dá o tiro de misericórdia nisso!", comenta o jurista e professor de Direito Constitucional Lenio Streck, colunista da ConJur.

Em coluna publicada na ConJur nesta semana, o advogado e professor de Direito Penal Pierpaolo Cruz Bottini já apontava a necessidade de se definir o que fazer com acordos firmados pela polícia aos quais o MP se opõe de saída, como no caso de Cabral. Ele lembra que em acordos de colaboração o Estado se compromete a conceder benefícios ao réu caso a cooperação seja útil:

"Nesse quadro, não parece concebível que alguém firme um acordo de colaboração com um representante do Estado (o delegado de polícia), que essa avença seja homologada por outro representante do Estado (juiz), e ao final do processo não obtenha qualquer benefício, porque um terceiro representante do Estado (o Ministério Público) entende descabido o acordo desde o início", indica.

Tese semelhante foi trazida pelo também criminalista e professor de Direito Penal André Callegari em artigo desta quinta-feira: "Recusada motivadamente a proposta pelo órgão ministerial, como parece ser o caso da PET 8.482/STF, não há outro caminho que não a devolução do material entregue sem o devido uso pelo Estado acusador".

Caso contrário, segundo ele, haveria uma insegurança jurídica, já que o colaborador poderia simplesmente buscar o órgão que não lhe recusasse o acordo. Assim, "ainda que exista a possibilidade concorrente entre as instituições, a palavra final do órgão ministerial parece dirimir a questão, uma vez que é o titular da ação penal".

Fellipe Sampaio /SCO/STF
Voto de Fux proferido nesta quinta garantiu maioria para anulação do acordo

"O colaborador praticou reserva mental. Não apresentou todos os elementos de interesse do Estado. Cito como exemplo a destinação de recursos públicos desviados. Também não trouxe elementos comprobatórios que incriminam agentes públicos", aponta Valdir Simão, sócio do escritório Warde Advogados e ex-ministro-chefe da Controladoria-Geral da União.

Para ele, a colaboração não poderia ter sido aceita sem uma avaliação mais criteriosa: "Não houve critério de elegibilidade. A PF entendeu diferente. Isso só reforça a necessidade de um melhor relacionamento institucional, o que não acontece no presente momento. A gente não pode transformar delação em diversos guichês onde o colaborador avança para se proteger. Uma colaboração precisa ser aceita por todos os órgãos legitimados para obter o benefício previsto na legislação", enfatiza.

Corrente contrária
"No meu entendimento, ainda que o Ministério Público seja efetivamente o titular da ação penal, a polícia judiciária é o órgão incumbido de proceder à investigação, razão pela qual deve ter autonomia para firmar acordo de colaboração premiada que, como se sabe, é um meio de obtenção de prova", opina o criminalista Sérgio Rosenthal. Segundo ele, ao final do processo cabe exclusivamente ao juiz decidir se o delator cumpriu suas obrigações e eventualmente lhe conceder os benefícios acordados.

A advogada constitucionalista Vera Chemim segue essa linha. Ela cita o julgamento da ADI 5.508, que reconheceu a legitimidade do delegado de polícia para celebrar acordos de colaboração premiada em fase de inquérito policial sem a necessidade de anuência do MP. Assim, o acordo de Cabral deveria ser validado, "independentemente da suposta presença de ilegalidades que somente poderiam ser examinadas quando da abertura de uma ação penal".

Carlos Humberto/SCO/STF
Fachin, relator da ação, votou contra o acordo devido à falta de anuência do MP 
Carlos Humberto/SCO/STF

Ela ressalta, porém, que o entendimento estabelecido nesta quinta-feira deve servir como precedente e estimular o ajuizamento de demandas similares. "O que se estranha é o fato de o STF mudar aquele entendimento em curto espaço de tempo (a referida ADI foi decidida em 2018), mesmo que aquela mudança remeta a um caso concreto (subjetivo) ao invés de se dar em um processo objetivo, isto é, em controle abstrato de constitucionalidade", destaca. Para ela, a decisão de hoje não segue o artigo 926 do CPC, que prevê que a jurisprudência seja íntegra, coerente e estável.

O criminalista Claudio Bidino, sócio do Bidino & Tórtima Advogados, toca no mesmo ponto dos efeitos para além do caso de Cabral: "A decisão seguramente repercutirá para além do caso concreto, pois contraria a impressão que ficou após o julgamento da ADI 5.508 de que a polícia judiciária teria uma ampla autonomia e liberdade na negociação de acordos de colaboração premiada. Ainda não estão claras, porém, as balizas da sua atuação".

Henrique Hoffmann, professor, delegado da Polícia Civil do Paraná e colunista da ConJur também entende que existe autonomia da polícia judiciária na negociação da colaboração premiada. "Como o próprio STF havia afirmado na ADI 5.508, o delegado de polícia, enquanto presidente do inquérito policial, tem autonomia para usar os instrumentos investigativos mais aptos a descobrir a verdade, inclusive a colaboração premiada, independentemente de anuência do MP. Vincular a utilização dessa técnica especial de investigação pela autoridade policial à concordância da parte acusadora cria um obstáculo indevido (e por isso mesmo não previsto na legislação)", diz.

"Toda recusa ou aceitação do MP ou Polícia Civil ou Federal para pactuar o negócio deve ser devidamente fundamentada e informada ao outro legitimado, sujeitando-se a controle judicial, impedindo assim que o imputado consiga ludibriar o Estado. Ademais, a concessão do beneficio é competência do Judiciário, e não o Ministério Público", conclui.

PET 8.482

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