Garantias do Consumo

O direito à revisão do contrato bancário de idoso em condição de miserabilidade

Autor

  • Fabiana Rodrigues Barletta

    é doutora em Direito Civil pela PUC-RJ mestre em Direito Civil pela UERJ com estágio pós-doutoral pela UFRGS professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro diretora fundadora do IBERC e membro do BRASILCON e IBDCivil.

26 de maio de 2021, 8h01

O direito à revisão do contrato bancário de pessoa idosa em condição de miserabilidade foi extraído do recente Recurso Especial nº 1.834.231-MG (2019/0254568-0), que limitou em 30% o valor da cobrança direta em conta corrente do consumidor idoso, que recebia verba assistencial. Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, afastou-se a cobrança sobre o benefício de assistência social de idoso em condição de miserabilidade, para preservar seu mínimo existencial. O princípio da autonomia da vontade contratual foi reduzido para permitir o pedido de limitação de cobrança, haja vista o Superior Tribunal de Justiça ter julgado pela revogação da autorização para o débito automático em conta corrente superior a 30% do valor recebido a título de verba assistenciária dada pelo Estado ao hipervulnerável. Houve respaldo na teoria do mínimo existencial.

Em suma, no Recurso Especial nº 1.834.231-MG (2019/0254568-0), G.A.G., pessoa idosa e miserável, que recebia o benefício assistencial de prestação continuada de assistência social ao idoso, tomou empréstimos do Banco Mercantil do Brasil (BMB)/SA, instituição financeira fornecedora de crédito. BMB/SA passou a fazer descontos na folha de pagamento da mutuária, exatamente sobre a verba de assistência social granjeada. G.A.G., ajuizou ação solicitando limitação do percentual descontado diretamente de sua conta corrente a 30% do valor do benefício assistencial de prestação continuada de assistência social ao idoso.

O STJ decidiu por limitar em 30% do valor recebido a título de benefício para que o BMB/SA pudesse retirar diretamente da conta do devedor. Igualmente, o propósito recursal do consumidor era um pedido de limitação em 30% dos descontos efetuados pela instituição financeira BMB/SA, diretamente na sua conta bancária, onde depositado benefício de prestação continuada de assistência social ao idoso. Até então, o valor cobrado pelo BMB/SA como parcelas para quitação do contrato de mútuo, do qual constava-se credor, ultrapassava 30% do benéfico assistencial recebido pelo idoso para desconto direito em sua folha de pagamento.

Tratava-se de ajuste contratual que comportava vício do consentimento a ferir o princípio do equilíbrio contratual tão salvaguardado pelo do Código de Defesa do Consumidor conhecido como lesão.

Sobre a lesão pode-se dizer que se trata da desproporção entre as prestações aferida no momento da formação do contrato. Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a lesão foi abertamente positivada no Brasil.

A lesão está contida na primeira parte do inciso V do artigo 6º do Código do Consumidor, como direito básico desse agente, razão pela qual a referida lei concede ao consumidor lesado o "direito de modificar as cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais"[2].

Uma vez provada a abusividade da quantia retirada da conta corrente de G.A.G., lhe foi conferido, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que leva em consideração a condição do mutuário de idoso, recebedor de um benefício assistencial de apenas um salário-mínimo, que o Estado confere às pessoas em condição de miserabilidade, ou seja, um consumidor reconhecidamente hipervulnerável [3]; o direito de rever seu contrato, limitando a cobrança extorsiva da prestação obrigacional.

Nas palavras do STJ, o benefício de prestação continuada de assistência social ao idoso, "tem por objetivo suprir as necessidades básicas de sobrevivência do beneficiário, dando-lhe condições de enfrentamento à miséria, mediante a concessão de renda mensal equivalente a apenas um salário-mínimo".

Observa-se, no caso, interseção de vulnerabilidades (pessoa consumidora, idosa, extremamente pobre), agravadora da abusividade da conduta do fornecedor, que configura lesão, excessiva onerosidade para o consumidor, pactuada no momento da contratação.

Cláusulas abusivas são passíveis de serem revistas pelo Poder Judiciário no intuito de tutelar a pessoa consumidora, especialmente a idosa e em condições de miséria, pois, como dispõe o artigo 39, inciso IV, "é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: prevalecer-se da fraqueza ou da ignorância do consumidor tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços".

Verifica-se, contudo, que a existência de uma cláusula lesiva não há de, por si, invalidar o contrato. É que o Código de Defesa do Consumidor preconiza a conservação dos contratos na medida das justas expectativas de ambas as partes contraentes. Na forma em que dispõe o artigo 51, §2º, da legislação consumerista: "A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes".

O princípio do equilíbrio contratual funciona como expressão dos princípios constitucionais fundamentais da igualdade substancial e da solidariedade social. Este último marca forte presença nas relações privadas de mútuo feneratício ou, numa linguagem coloquial, de contratos de concessão de crédito ao consumidor e é, nos dizeres do STJ neste julgado, fruto da "ponderação entre o princípio da autonomia da vontade privada e o princípio da dignidade da pessoa humana".

Além disso, autonomia privada nasceu do individualismo do Estado liberal burguês, que tinha no indivíduo a causa de todo o direito. Entendia-se que o indivíduo era livre para se autodeterminar segundo a sua vontade e com a mínima intervenção estatal nos negócios pactuados. Garantia-se a liberdade do ato de contratar para consolidar o comércio e as trocas que surgiam com força após o período do feudal, expurgado pela revolução dos franceses e pela ascensão do capitalismo [4].

Tal autonomia manifesta-se quanto à liberdade de contratar propriamente dita, quanto à liberdade de estipular o contrato e quanto à liberdade de determinar o conteúdo do contrato [6].

Afirma-se, portanto, que um contrato realizado com um idoso, em estado de miserabilidade, não se encontra baseado apenas na autonomia privada. Já é de amplo conhecimento que a relação contratual contemporânea possui fontes outras além do contrato: a lei, os usos, a equidade [7].

Isso posto, não há mais espaço para uma liberdade absoluta e os institutos de Direito Privado não devem apenas arcar com as restrições provindas da ordem pública. Além disso, eles devem ser restabelecidos conforme a legalidade constitucional [8]. Assim "serão legítimas quaisquer medidas interventoras no âmbito da iniciativa económica privada que tenham por objecto ou finalidade a salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos" [9].

Outra questão apontada pelo STJ era a de que a hipótese dos autos não tratava simplesmente do recebimento de verbas salariais pelo idoso. Ele era beneficiário de um fundo de assistência social.

A pessoa idosa necessita de certas condições para a vida em dignidade dadas pelo direito fundamental social da assistência aos desamparados, conferido pelo Estado. Observe-se que o direito à assistência social, representa uma das metas do sistema da seguridade social no Brasil, consoante artigo 194 da Constituição da República que apregoa: "A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social".

O direito à seguridade social é direito prioritário da pessoa idosa posto que relacionado às condições mais elementares de vida na terceira idade e por se afigurarem como pressupostos para que sejam exercitados outros direitos [10].

A proteção do idoso por intermédio da assistência social tem sede na Constituição da República, em seu artigo 203.: "A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I  a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; (…) V  garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei" (grifos da autora).

Não se faz necessária contribuição prévia do idoso para gozar do benefício da assistência, já que o requisito exigido é a carência comprovada do idoso e de sua família em termos econômico-financeiros, conforme disposto na lei.

Por fim, "a assistência social aos idosos será prestada, de forma articulada, conforme os princípios e diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social", "na Política Nacional do Idoso, no Sistema Único de Saúde e demais normas pertinentes", nos termos do artigo 33 do Estatuto do Idoso [11].

O STJ argumentou, com base no caso concreto, sobre a necessidade do distinguishing para acolher o pedido de limitação dos descontos na conta bancária onde recebido o benefício assistencial em 30% do valor recebido. Essa decisão visou a não privar o idoso de grande parcela do que, já de início, era integralmente destinado à satisfação do seu mínimo existencial.

No Brasil, desenvolveu-se a teoria do "mínimo existencial" pela qual os jurisconsultos têm tratado de questões no sentido do quanto se pode assegurar aos indivíduos em matéria de direitos sociais, entre os quais se destaca a assistência social, direito de natureza prioritária, já que pressuposto para o gozo de qualquer outro direito fundamental.

O "mínimo existencial" é construção teórica que não possui presciência na Constituição, mas se encontra relacionada ao conceito de liberdade, aos princípios constitucionais que preveem a igualdade, às imunidades e privilégios dos cidadãos que dele necessitam e aos desideratos da Declaração Universal dos Direitos dos Homens, possuindo, portanto, status constitucional [12]. Tal construção relaciona-se também com o problema da pobreza, especialmente da pobreza absoluta, mediante a qual não há possibilidade de inércia do Estado, pois, sem um mínimo indispensável à própria existência, não há sequer como falar de sobrevida dos homens e se cessam as "condições iniciais de liberdade".

O "mínimo existencial" tem força de direito, pois está implícito no princípio da dignidade da pessoa humana e na ideia de um Estado Social de Direito [13]. Como os direitos sociais podem ser apreciados quão implementadores da justiça social, ligados ao dever comunitário de promoção da pessoa humana, infere-se que esses direitos positivos são expressão direta do Estado social de Direito, que, além de abarcar os direitos de defesa e liberdade do Estado liberal clássico  na medida em que a relação entre as duas dimensões de direitos fundamentais é complementar e não excludente  provoca uma distribuição justa e adequada dos bens aos mais necessitados [14]. Nesse termos, o Estado coloca o "mínimo existencial" em prática quando, por exemplo, realiza assistência social [15].

A liberdade de contratar atribuída às partes supõe também a igualdade delas para deliberar acerca de com quem se contrata e do conteúdo contratual. Fala-se em suposição porque, na prática, nem sempre há liberdade genuína de pactuar, visto não haver igualdade substancial entre os pactuantes. Isso ocorre nos contratos de adesão firmados entre entidades financeiras e pessoas idosas, que possuem necessidade de ajustar tais contratos da maneira que lhes são oferecidos. Não se quer dizer, entretanto, que não exista autonomia privada por parte do consumidor e instituição fornecedora de crédito, mas ela é mitigada especialmente quando a vontade é emitida pela pessoa idosa, em condições de miserabilidade, notadamente hipervulnerável em termos jurídicos. No caso concreto, o consumidor idoso admitira cobrança diretamente em sua conta corrente acima de 30% do valor recebido mensalmente a título de assistência social.

A pessoa idosa necessita de certas condições para a vida em dignidade, dadas pelo direito fundamental social da assistência aos desamparados, conferido pelo Estado. Observe-se que o direito à assistência social, representa uma das metas do sistema da seguridade social no Brasil, consoante artigo 194 da Constituição da República

Especialmente no que concerne ao direito à assistência social, pode-se afirmar que ele constitui não só direito de defesa, no sentido de respeito à integridade psicofísica do ser humano e de afastamento dos atos degradantes e desumanos, como também direito às prestações por parte do Estado, em prol dos titulares de um direito subjetivo público. O "mínimo existencial" em matéria de assistência, por se referir a condições básicas para a subsistência, permanece ínsito no princípio maior da dignidade da pessoa humana.

 


[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos, 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 211.

[2] BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. 2 ed. Indaiatuba: Foco, 2020, passim.

[3] MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2012, p. 178- 184

[4] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos Tradução de: COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 32.

[5] PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, Coimbra: Almedina, 1982, p. 8 e 9.

[6] GOMES, Orlando. Contratos. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 22.

[7] PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalitá constitucionale, Napoli: Scientifiche Italiane, 1984, p. 141-142.

[8] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 21.

[9] PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada, Coimbra: Almedina, 1982. p. 208.

[10] BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito à saúde da pessoa idosa. São Paulo, Saraiva, 2010, p. 62

[11] BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito à saúde da pessoa idosa. São Paulo, Saraiva, 2010, p. 67.

[12] TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. In: Revista de Direito Administrativo. Vol. 177. Julho/Setembro, 1989, p. 29 e 42.

[13] TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais, In: Revista de Direito Administrativo. Vol. 177. Julho/Setembro, 1989, p. 30-32.

[14] SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais na constituição de 1988, In: Revista Diálogo Jurídico. Ano 1. Vol. 1. Abril/2001, p. 19.

[15] TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: Teoria dos Direitos Fundamentais. 2 ed. Organizador: TORRES, Ricardo Lobo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 268.

Autores

  • é doutora em Direito Civil pela PUC-RJ, mestre em Direito Civil pela UERJ, com estágio pós-doutoral pela UFRGS, professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, diretora fundadora do IBERC e membro do BRASILCON e IBDCivil.

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