Opinião

Nova Lei de Licitações: pode uma lei ter diferentes artigos com idêntica redação?

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26 de maio de 2021, 17h06

Muito tem se falado sobre a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, o novo marco regulatório de licitações e contratos administrativos, e, a teor de suas disposições, não faltará assunto por um bom tempo [1].

Se a Lei nº 8.666/1993, mesmo após 28 anos, ainda suscita debates, gerando, inclusive, divergências jurisprudenciais e doutrinárias, o que dizer do novel diploma, que não só alterou regras, mas incrementou, por assim dizer, consideravelmente o texto que o antecedeu, superando-o em quase 70 artigos, em sua grande maioria bem mais alentados do que os previstos na norma precedente.

A despeito de algumas elogiáveis simplificações que introduziu, tal como a inversão de fases (enquanto regra geral) e a extinção de modalidades que pouco agregavam (convite e tomada de preços), o recente estatuto também tem sido alvo de críticas.

Diversas são as censuras que podem ser tecidas sobre aspectos substanciais da norma, conforme já se anotou acerca das invasões de competências dos demais entes federados, como é o caso, por exemplo, da provável inconstitucionalidade do artigo 10, ao dispor de forma ampla e irrestrita sobre a advocacia pública, alcançando, indistintamente, outros entes que não a União [2].

A presumível ofensa ao pacto federativo transparece, inclusive, no artigo 42, quando se alude a "órgão ou entidade de nível federativo equivalente ou superior", como se a União fosse ente de nível mais elevado em relação aos estados, e estes superiores aos municípios, numa potencial inobservância a princípio alçado à condição de cláusula pétrea pela Carta Maior, conduta essa, aliás, motivadora de boa parte dos 26 dispositivos objeto de vetos presidenciais.

De qualquer modo, sem embargo desse relevante olhar a partir do conteúdo da norma, outra espécie de crítica que se tem observado é quanto à prolixidade de que se valeu o legislador, característica que causou, inclusive, certa surpresa na comunidade jurídica, sobretudo naqueles que acompanharam os debates e audiências públicas que subsidiaram a tramitação do correspondente projeto de lei, já que as principais justificativas para deflagração do processo legislativo voltado à atualização do regulamento licitatório nacional eram a necessidade de simplificação e desburocratização dos certames, o que uma breve passada d'olhos no novo texto revela tratar-se de intento não plenamente alcançado.

Sob esse viés textual, o enfoque nesta oportunidade recai sobre situação no mínimo inusitada, qual seja, a repetição ipsis literis de algumas disposições presentes na nova lei.

Exemplo dessa ocorrência se verifica na redação do artigo 6º, inciso XIX:

"XIX  notória especialização: qualidade de profissional ou de empresa cujo conceito, no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permite inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato".

Conforme se verifica, o dispositivo traz o conceito de "notória especialização", uma das 60 definições elencadas no robusto rol presente no artigo 6º do novo estatuto licitatório.

Não bastasse, entretanto, essa expressa conceituação, o legislador tratou de enfatizá-la no artigo 74, §3º, nos seguintes termos:

"§3º. Para fins do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se de notória especialização o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato".

Por mais relevante que seja o assunto, é discutível a necessidade de, ao tratar das hipóteses de inexigibilidade de licitação, a norma repetir conceito que explicitamente nela já constou em capítulo que cuida justamente "Das Definições".

Se o leitor achou estranho esse bis in idem, imagine-se tal prática sendo reiterada, agora no que tange aos serviços contínuos, conforme se vê, inicialmente, na redação do artigo 25, §8º, I e II:

"Artigo 25  […]
§8º Nas licitações de serviços contínuos, observado o interregno mínimo de um ano, o critério de reajustamento será por:
I
 reajustamento em sentido estrito, quando não houver regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão de obra, mediante previsão de índices específicos ou setoriais;
II
 repactuação, quando houver regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão de obra, mediante demonstração analítica da variação dos custos".

Para deixar bem claro o que se deve entender por "reajustamento em sentido estrito" e "repactuação", o artigo 92, §4º, I e II, reproduz integralmente o mesmo teor dos dois incisos acima transcritos:

"Artigo 92  […]
§4º Nos contratos de serviços contínuos, observado o interregno mínimo de 1 (um) ano, o critério de reajustamento de preços será por:
I
 reajustamento em sentido estrito, quando não houver regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão de obra, mediante previsão de índices específicos ou setoriais;
II
 repactuação, quando houver regime de dedicação exclusiva de mão de obra ou predominância de mão de obra, mediante demonstração analítica da variação dos custos".

É bem verdade que o artigo 25 está a tratar da licitação, enquanto o artigo 92 das cláusulas contratuais, todavia, a prevalecer a lógica da repetição, toda e qualquer disposição atinente ao edital que também fosse aplicável ao termo contratual haveria de ser reiterada no texto da lei, o que, felizmente, não ocorreu. À evidência, tal prática não seria razoável, revelando-se melhor solução tão somente referenciar o artigo onde consta a disposição inicial acerca do assunto, conforme, aliás, procedeu-se em diversas outras passagens da norma.

Talvez aqui, caso estivéssemos diante de um lapso, coubesse a velha máxima de que "quem muito escreve mais chances tem de errar". Preferível, todavia, acreditar que se tata de opção deliberada do legislador e, assim, respondendo ao questionamento que intitula o presente artigo, ainda que não pareça ser a melhor técnica legislativa, afinal, contribuiu para um texto menos enxuto, as disposições repetidas estão aí, postas na lei, e, como tais, devem ser observadas, de modo que caberá aos intérpretes admiti-las como tão relevantes que o legislador achou por bem duplicá-las.

 


[1] Sobre o tema, vide: CASTRO JR., Sergio de. "A Nova Lei de Licitações – Primeiras impressões sobre alguns dispositivos da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021", disponível em http://www.mpc.sp.gov.br/a-nova-lei-de-licitacoes-primeiras-impressoes-sobre-alguns-dispositivos-da-lei-no-14-133-de-1o-de-abril-de-2021/ e "A questão do alcance de penas na nova Lei de Licitações", disponível em https://www.conjur.com.br/2021-mai-10/castro-jr-alcance-penas-lei-licitacoes.

[2] Acerca dessa e outras possíveis inconstitucionalidades, cita-se Edite Hupsel, in "Inconstitucionalidades na Nova Lei de Licitações e Contratações: desrespeito a competências constitucionais dos entes federados", disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/edite-hupsel/inconstitucionalidades-na-nova-lei-de-licitacoes-e-contratacoes-desrespeito-a-competencias-constitucionais-dos-entes-federados, bem assim Luís Manoel Borges do Vale e Rafael Carvalho Rezende de Oliveira, in "A inconstitucionalidade do artigo 10 da nova Lei de Licitações", disponível em https://www.conjur.com.br/2021-abr-23/opiniao-inconstitucionalidade-artigo-lei-licitacoes.

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