Opinião

O negativismo: eis que se anuncia uma nova era da Justiça

Autor

  • Lucas Sachsida Junqueira Carneiro

    é promotor de Justiça coordenador do Núcleo de Defesa da Educação do Ministério Público do Estado de Alagoas e secretário da Comissão Permanente de Educação do Grupo Nacional de Direitos Humanos.

26 de maio de 2021, 15h08

A Justiça de uma nação era, nos tempos idos, a voz de um só homem, o rei ou governante absolutista. A era absolutista, séculos depois, fruto de revolução e conquistas humanitárias, deu lugar à era da completude das leis, afiada com o tempo e denominada como positivismo jurídico. A lei e a Justiça, então, passaram a ser a voz do povo, falada através de seus representantes no Parlamento. Parecia, até porque ainda sob a sombra de um passado longo e obscuro, um sistema satisfatório, imaculado.

A humanidade, então, criativa por natureza, mostrou durante a segunda grande guerra horrores que até mesmo a crueldade desconhecia. Quando do seu fim, com a haste da bandeira dos vencedores cravada no solo da humanidade derrotada, diante do julgamento dos adversários pelos aliados no Tribunal de Nuremberg, entre 1945 e 1946, a Justiça se deparou com um impasse: aquelas atrocidades cometidas pelos réus eram, muitas delas, abarcadas pela lei. A Alemanha nazista, por exemplo, tinha leis que garantiam a retirada do status de cidadão dos judeus (Lei de 14/07/33 e Lei da Cidadania), proibiam o casamento de judeus com "não judeus" (Lei da Proteção da Honra e Sangue Alemão) e por aí vai. Ora, mas a lei, a voz do povo, não deveria ser a expressão da Justiça? E então, como condenar réus que, mesmo criminosos aos olhos humanitários, agiam sob o manto da lei?

Assim, nasceu uma nova fase da Justiça, a era conhecida como pós-positivismo. Procurou-se, ao se reconhecer as fraquezas da lei, algo superior a ela e, assim, talvez em busca do divino, o homem encontrou os direitos humanos. As conquistas de direitos humanos/direitos fundamentais, geralmente previstos nas Constituições, passam a guiar e condicionar a eficácia da lei. A evolução trouxe o reconhecimento da força normativa das Constituições, a criação de tribunais constitucionais, órgãos e instrumentos para que a lei pudesse ser, por um juiz ou tribunal, colocada à prova diante dos princípios fundantes de uma sociedade, dos direitos humanos já conquistados que iluminavam toda a existência da Justiça em determinada nação.

Novamente, desta vez até mesmo com uma certeza mais reconfortante, parecíamos ter chegado à era de ouro da Justiça. As leis, sob o arrimo firme dos direitos fundamentais, órgãos e instrumentos para sua efetivação, se robusteceram, fazendo da Justiça, assim como no pós-dilúvio da mitologia grega, o vislumbre promissor de uma humanidade melhor. Eis o problema: a Justiça, com a evolução desse sistema, ficou forte demais e sua voz começou a incomodar quem antes não conseguia lhe ouvir. A reação, já inconteste no Brasil e em outros lugares do mundo, anuncia a vontade pujante de enfraquecimento da Justiça. Como disse a Filosofia a Boécio, na clássica "De Consolatione Philosophiae", se queres a cura, é preciso que se mostre a doença: num movimento pendular que conduz toda evolução, numa ação e reação newtoniana do positivo ao negativo, do bem ao mau, mostra suas caras uma nova era da Justiça, o negativismo jurídico.

A agenda legislativa contemporânea é um sintoma já indisfarçável da chegada do negativismo e tem como pauta a modificação dos estatutos processuais com conteúdo normativo escancarado para enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e julgamento, bem como a relativização e burocratização dos instrumentos de efetivação da Justiça. Não é demais dizer que a agenda legislativa do negativismo é, por vezes, criada e apoiada por órgãos cuja composição tem grande número de pessoas em embate com a própria Justiça, em processos de diversas naturezas. Parece ser preciso acrescentar, junto à espada, à balança e à venda nos olhos, um outro adereço à imagem da deusa Themis, uma coleira.

No Brasil, são muitos os exemplos: de nome sapeca, o pacote "anticrime" dificulta a aplicação da pena; o projeto de uma nova Lei de Improbidade Administrativa parece querer extirpar a punição de vários tipos de atos de improbidade previstos na lei atual além de reduzir sanções, fazendo-se sugerir que o Brasil está curado do mal da corrupção; o projeto do novo Código de Processo Penal, como se não vivêssemos num dos países que mais matam no mundo, limita os poderes de investigação, enche de pormenores que dificultam a utilização de provas oficiais nos julgamentos dos crimes contra a vida, valoriza sem ponderação prazos/formas a resultados (indo de encontro à evolução científico-jurídica da priorização do julgamento do mérito), retira instrumentos de revisão de soltura, entre outros. Além desses exemplos contemporâneos, que são novas tentativas de vontades de passados próximos, lembramos da proporção massiva nacional, pouco antes vista, da "manifestação de junho de 2013", ou "jornadas de junho", em que o povo brasileiro impediu o prosseguimento da PEC 37, que pretendia proibir investigações feitas pelo Ministério Público, justamente um dos principais órgãos escolhidos pela Constituição para a defesa dos direitos fundamentais, dos direitos humanos mais caros reconhecidos e, principalmente, órgão incumbido do combate à corrupção.

Outra consequência marcante do negativismo jurídico é o esquecimento da máxima latina satare decisis et non quieta movere, num movimento de retirada do caráter científico das construções jurídicas, tornando a voz da Justiça confusa, contraditória. É o esquizofrênico "até tu brutos decisório" decorrente da modificação cotidiana de posicionamentos. Iluminados numa premissa que se confunde com o próprio conceito de Justiça, todos nós, juristas ou não, defendemos, como argumento natural desde os embates da infância, que as decisões devem ser universais no sentido de que devem ser aplicadas a todos que se encontrem envolvidos em casos semelhantes (igualdade). Esse pilar de segurança e estabilidade pode ser notado, por exemplo, na House of Lords, que nos seus 43 anos de existência (1966/2009) modificou apenas 21 vezes seus posicionamentos [1]. O Tribunal Constitucional Federal Alemão [2], em 50 anos de recorte para análise, proferiu apenas 3%, aproximadamente, de decisões contrárias a seus próprios precedentes. Em nosso país, carente de uma eficaz teoria de precedentes, de institutos como a vinculação vertical e horizontal de decisões, a realidade é oposta. São muitos e muitos os exemplos, notícias e artigos sobre o tema que mostram que uma mesma norma, nas belas terras tupiniquins, pode variar entre extremos, do sim ao não, do azul ao vermelho, do "prende ou não prede após segunda instância" em questão de dias e, porque não lembrar, em questão de horas, como no recente caso do "solta e prende" de ex-presidente. Presenciamos até mesmo a possibilidade, em julgamento apertadíssimo, de a palavra "vedada", prevista em nossa Constituição, quase se transformar em "permitida", no caso de recondução nas mesas do Congresso Nacional. Se deixar os dizeres da Justiça confusos não bastasse para a comprovação do negativismo, convido o leitor a pesquisar os índices nacionais de prescrição [3] [4], o emudecer da Justiça pelo longo decurso de tempo sem decisão definitiva.

O negativismo jurídico tem tido sucesso, como se vê, pois ganha terreno sorrateiramente, camuflado e despersonalizado, como grande parte dos movimentos nascidos do inconsciente das tensões de poder da humanidade. Tenta se tornar invisível sob o manto do paradigma da simplicidade e da inversão ideológica de direitos humanos: disfarça inocência/culpa com a demonização dos órgãos de controle e dos instrumentos de aplicação da lei para querer fazer crer que o silêncio da Justiça é a "palavra certa pra doutor não reclamar".

Não percam as esperanças, entretanto, pois nem todos se amainam diante do negativismo jurídico que se amostra. Estão aí, todos os dias, bons homens e mulheres, servidores e servidoras, parlamentares, advogados e advogadas, professores e professoras, juízes e juízas, promotoras e promotores de Justiça abnegados, lutando ao lado dos direitos humanos arduamente conquistados. E você, de que lado está?

 


[1] BLOM-COOPER, Louis, 1966 and All That The Story of the Practice Statement. In: BLOM -COOPER, Louis B. Dickson: G. Drewry (coords.). The Judicial House of Lords 1876-2009. OXFORD: Oxford University Press, 2009, p. 143-144 apud ANDREWS. Neil. A Suprema Corte do Reino Unido: reflexões sobre o papel da mais alta Corte Britanica. RePro 186/6, São Paulo, ago. 2010 (versão on-line), apud KREBS, Hélio Ricardo Diniz. Sistemas de precedentes e direitos fundamentais, p. 101 – São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015

[2] FUNKEN, Katja. The Besto of Bouth Worlds – The Trend Towards Convergence of the Civil Law and the Commom Law System, University of Munich School of Law, p. 11, jul 2013. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id-476461 – acesso em 22/05/2021.

[3] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1832077-prescricao-atinge-um-terco-de-acoes-contra-politicos-no-supremo.shtml

[4] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/60017-justica-condena-205-por-corrupcao-lavagem-eimprobidadeem-2012

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