Opinião

A aplicação do offensive nonmutual collateral estoppel pelo TJ-DFT

Autor

  • Guilherme Veiga Chaves

    é especialista em Direito Constitucional Internacional pela Universitá di Pisa / UNIPI Itália mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco advogado sócio do escritório Gamborgi Bruno & Camisão.

25 de maio de 2021, 19h21

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJ-DFT) aplicou a teoria da coisa julgada sobre questão em benefício de terceiros (artigo 506 do Código de Processo Civil, ou CPC) arguida em petição inicial (offensive nonmutual collateral estoppel) [1], confirmando sentença de mérito que declarou que uma empresa pode se beneficiar da coisa julgada sobre questão prejudicial formada em outra lide (artigo 503, §§1º e 2º, CPC).

Tratou-se de ação regressiva movida por uma companhia de seguros contra uma concessionária de rodovias, alegando, em síntese, que o veículo conduzido por um segurado se envolveu num acidente causado pelo ingresso repentino de um cavalo na BR-060.

A seguradora informou a existência de outro processo já transitado em julgado, movido por outra vítima desse mesmo acidente, em que ficou comprovada a culpa da concessionária da rodovia pelo acidente, e requereu a condenação da ré ao ressarcimento do prejuízo.

A empresa concessionária da rodovia afirmou, em resumo, na contestação que: a) houve culpa exclusiva de terceiro, de forma que a ré não tem legitimidade para compor o polo passivo; b) não há nexo de causalidade entre o acidente e a conduta da ré, até porque estava retirando os animais da pista no momento do ocorrido; c) a responsabilidade da ré pelos danos decorrentes da prestação do serviço público é subjetiva, pois se trata de conduta omissiva; e d) a culpa exclusiva de terceiro exclui a sua responsabilidade pelo acidente.

O juiz de Direito Renato Castro Teixeira Martins, da 19ª Vara Cível de Brasília, proferiu a sentença reconhecendo que não havia mais espaço para discutir a culpa nessa demanda pelo acidente, pois isso já havia sido resolvido em outro processo movido por outra vítima dese mesmo acidente contra a mesma empresa concessionária da rodovia, operando-se a coisa julgada sobre a questão prejudicial referente a responsabilidade da concessionária da rodovia pelo acidente.

Segundo o magistrado, citando a doutrina sobre o tema [2], não faz sentido impedir que a coisa julgada possa ser aplicada em benefício de terceiros, portanto de quem não participou do processo em que foi produzida. Ao contrário, o aproveitamento do que foi decidido, desde que em benefício de alguém, vai ao encontro dos princípios processuais modernos, em especial os da eficiência (CPC, artigo 8°, parte final) e da duração razoável (CF, artigo 5°, LXXVIII e CPC, artigo 4°), sendo que se configure qualquer violação de garantias.

Contra a sentença a concessionária demandada que opera a rodovia interpôs apelação alegando a impossibilidade de extensão da coisa julgada formada em outro processo em seu prejuízo.

Entretanto, a 1ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios negou provimento à apelação, reconhecendo que o artigo 506 do CPC estabelece que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros. Logo, é possível a extensão dos seus efeitos em benefício destes, ante o silêncio eloquente do legislador ao retirar a expressão "não beneficiando" do texto correspondente no antigo Estatuto Processual Civil.

Dessa forma, acordaram os desembargadores, à unanimidade, que evidenciado em processo diverso, em que se discutia a responsabilidade civil acerca do mesmo acidente, que o fato determinante para o desfecho do evento envolvendo o veículo segurado decorreu de conduta omissiva da concessionária da rodovia, ao deixar de sinalizar a retirada de animais da rodovia, a seguradora, em ação regressiva, pode se utilizar da coisa julgada em seu benefício, cabendo-lhe pleitear ressarcimento pelos danos materiais experimentados.

Importante perceber que a seguradora pleiteou o benefício da extensão da coisa julgada formada em outra demanda na sua petição inicial. O offensive nonmutual collateral estoppel é usado por alguém que pretende entrar com ação contra uma parte que já perdeu um caso anterior movido por outro autor e descreve na petição inicial que a responsabilidade do réu é coisa julgada formada em processo antecedente que beneficia o atual autor [3].

O caso Parklane Hosiery Co., Inc. v. Shore, julgado perante a Suprema Corte americana, possibilitou que a coisa julgada fosse alegada como tática ofensiva usada por um autor como "espada" para evitar relitigar questões que o réu havia anteriormente litigado e perdido no processo anterior [4].

A quebra da regra da mutualidade, ou seja, a desnecessidade de identidade de parte para fins da vinculação da coisa julgada, é uma mudança de paradigma da forma como a doutrina e agora o Poder Judiciário tratam da "nova dimensão da coisa julgada" [5].

Em 1942, o juiz Traynor, da corte da Califórnia, foi o primeiro a proferir decisão rejeitando a regra de mutualidade, dizendo que não seria racional limitar a coisa julgada apenas às partes envolvidas na primeira demanda. Em vez disso, concluiu o magistrado, que a coisa julgada poderia ser devidamente aplicada, mesmo que por terceiros, desde que a parte contra a qual é usada fosse parte no processo anterior [6]. Assim, as cortes americanas começaram lentamente a seguir a posição adotada na Califórnia, abandonando a regra da mutualidade, até que a Suprema Corte julgou o caso Blonder-Tongue Laboratories, Inc. v. University of Illinois Foundation em 1971 e depois o caso Parklane Hosiery Co. v. Shore em 1979, firmando precedentes sobre o tema.

Esse processo de construção jurisprudencial no Brasil começa a ser pavimentado por meio da sentença aqui analisada e confirmada pelo acórdão do TJ-DFT.

 


[1] O número desta demanda é NPU 0016983-46.2016.8.07.0001. Sentença e acórdão disponível em www.tjdf.jus.br.

[2] (MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil, volume 2: Tutela dos direitos mediante procedimento comum. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 680-681) Ver ainda (MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão. 2ª ed. ver., atual, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019); (MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão, inclusive em benefício de terceiro. Revista de Processo| vol, v. 259, n. 2016, p. 97-116, 2016); (MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada sobre questão em favor de terceiros e precedentes obrigatórios. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 19, n. 3, 2018.).

[3] DOOLEY, Laura Gaston. The Cult of Finality: Rethinking Collateral Estoppel in the Postmodern Age, 31 Val. U. L. Rev. 43, 1996. Available at: https://scholar.valpo.edu/vulr/vol31/iss1/2. Acesso em: 23 abril, 2020.

[4] "In Parklane Hosiery Co., Inc. v. Shore, the use of non-mutual collateral estoppel was expanded so it could be used as an offensive as well as a defensive tactic. In defensive collateral estoppel, the defendant uses collateral estoppel as a "shield" that would prevent plaintiffs from relitigating issues previously decided in favor of the defendant. As an offensive tactic, collateral estoppel is used by a plaintiff as a "sword" to avoid relitigating issues that the defendant had previously litigated and lost in the earlier lawsuit. Parklane allowed a plaintiff to use collateral estoppel offensively to prevent a defendant from relitigating an issue that the defendant had unsuccessfully litigated in a prior action against another party.' (JOHNSON, Susan R. Civil Procedure: The Use of Collateral Estoppel and the Implications on the Multiple Trials Flowing from a Denial of Class Certification. Dodge v. Cotter Corporation, 32 n.m. L. Rev. 409, 2002. Disponível em: https://digitalrepository.unm.edu/ nmlr/vol32/iss3/5. Acesso em: 03 abril, 2020, p. 413.).

[5] SILVA, Ricardo Alexandre da. A Nova Dimensão da Coisa Julgada. São Paulo. Thompson Reuters Brasil, 2019.

[6] DOOLEY, Laura Gaston. The Cult of Finality: Rethinking Collateral Estoppel in the Postmodern Age. U. L. Rev. v.31, n.43, 1996. Disponível em: https://scholar.valpo.edu/vulr/vol31/iss1/2, Acesso em: 23 de abril de 2020, p. 60. Disponível em: https://scholar.valpo.edu/vulr/vol31/iss1/2. Acesso em: 12 ago. 2020.

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