Tribuna da defensoria

Posse de chip de celular e falta grave: seguindo o viés decisório do STJ

Autores

  • Daniel Diamantaras de Figueiredo

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro titular do 3º Tribunal do Júri-RJ coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública-RJ (Nuspen) mestre em ciências criminais pela Universidade de Lisboa membro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Processual Penal.

  • João Gustavo Fernandes Dias

    é defensor Público do Estado do Rio de Janeiro subcoordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUSPEN).

  • Leonardo Rosa Melo da Cunha

    é doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa defensor Público do Estado do Rio de Janeiro e subcoordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUSPEN).

25 de maio de 2021, 12h31

O Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente que a introdução de chip de celular não configura crime do artigo 349-A do Código Penal.

No julgamento realizado nos autos do Habeas Corpus 619.776/DF, em 20 de abril de 2021 (DJe 26/04/2021), a 5° Turma entendeu que a conduta de ingressar em estabelecimento prisional com chip de celular é atípica. Tratava-se de réu que, após retornar de saída temporária e passar mal, foi submetido a uma cirurgia para a retirada de três chips de celulares de seu estômago.

O artigo 349-A do referido diploma legal preconiza que é crime "ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional".

Como se percebe, o legislador entendeu por bem criminalizar a conduta daquele que ingressa (ou auxilia) com aparelho telefônico ou similiar em estabelecimento prisional, não havendo no tipo penal qualquer referência a outro componente ou acessório utilizado para o devido funcionamento do aparelho.

Diante disso, o Superior Tribunal de Justiça, fundamentando-se na ausência de lei prévia que defina o ingresso de chip em unidade prisional como atípico (nullum crimen sine lege)  princípio da legalidade penal , absolveu o réu da acusação do crime descrito no artigo 349-A do Código Penal.

A questão atual é: configura falta grave a posse de chip de aparelho celular pela pessoa privada de liberdade dentro da unidade prisional?

Cabe salientar inicialmente que o reconhecimento da falta grave enseja diversos percalços na execução da pena do indivíduo, que vão desde regressão de regime (artigo 118, Lei de Execução Penal ou LEP) e perda dos dias remidos (artigo 127, LEP) até a revogação de saídas temporárias (artigo 48, parágrafo único, c/c artigo 125, LEP), conversão de pena restritiva de direito em privativa de liberdade (artigo 48, parágrafo único, c/c artigo 181, §1, alínea "d", e §2, LEP) e alteração da data-base para concessão de progressão de regime prisional.

Registre-se que, com o advento da Lei 11.466/2007, houve a inclusão do inciso VI ao artigo 50 da Lei de Execuções Penais (LEP), prevendo que configura falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que"tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo".

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça possuem entendimento, aparentemente pacífico, no sentido de que é falta grave a posse de chip de celular, sob o argumento de que a Lei 11.466/07 objetivou proibir a comunicação à distância intra e extramuros, pelo que a posse de qualquer artefato que viabilize a comunicação faz incidir a norma.

Ademais, reconheceu-se que se evita uma divisão das peças do aparelho celular entre as pessoas privadas de liberdade, sendo agrupadas apenas quando efetivamente for utilizar o telefone celular (STF, HC 105973/RS, relator ministro Ayres Brito, 2ª Turma, j. 30/11/2010, DJe 26/05/2011 e STJ, AgRg no REsp 1708448/RJ, ministro relator Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, j. 07/06/2018, DJe 15/06/2018; HC 395878/PR, ministro relator Felix Fischer, 5ª Turma, j. 27/06/2017, DJe 01/08/2017; HC 354035/RS, ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 24/05/2016, DJe 31/05/2016; AgRg no HC 376643 / PR, ministro relator Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 04/05/2017, DJe 09/05/2017; HC 260122/RS, relator ministro Marco Aurélio Belizze, 5ª Turma, j. 21/03/2013, DJe 02/04/2013, informativo 517).

Veja a ementa do seguinte julgado do STF:

"EMENTA: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. FALTA DISCIPLINAR DE NATUREZA GRAVE. POSSE DE DOIS CHIPS DE APARELHO DE TELEFONE CELULAR. CARACTERIZAÇÃO. TELEOLOGIA DA NORMA. PROIBIÇÃO DA POSSE DO TELEFONE E SEUS COMPONENTES. ORDEM DENEGADA. 1 — A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) institui um amplo sistema de deveres, direitos e disciplina carcerários. O tema que subjaz a este habeas corpus diz com tal sistema, especialmente com as disposições normativas atinentes à disciplina penitenciária. Disciplina que o legislador entende ofendida sempre que o condenado 'tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo' (inciso VII do artigo 50 da LEP). 2  Em rigor de interpretação jurídica, o que se extrai da Lei de Execução Penal é a compreensão de que o controle estatal tem de incidir sobre o aparelho telefônico, mas na perspectiva dos seus componentes. É dizer: a Lei 11.466/2007 encampou a lógica finalística de proibir a comunicação a distância intra e extramuros. Pelo que a posse de qualquer artefato viabilizador de tal comunicação faz a norma incidir de pleno direito. 3  Tal maneira de orientar a discussão não implica um indevido alargamento da norma proibitiva. Norma que faz menção expressa à posse, ao uso e ao fornecimento de 'aparelho telefônico, de rádio ou similar'. E o fato é que o chip faz parte da compostura operacional do telefone celular. Não tem outra serventia senão a de se acoplar ao aparelho físico em si para com ele compor uma unidade funcional. Donde se concluir que o referido artefato nem sequer é de ser tratado como mero acessório do aparelho telefônico, sabido que acessório é aquilo 'que se junta ao principal, sem lhe ser essencial; detalhe, complemento, achega'. Ele se constitui em componente do aparelho e com ele forma um todo operacional pró-indiviso. 4  Ordem denegada, cassada a liminar" (STF, HC 105973/RS, relator ministro Ayres Brito, 2ª Turma, j. 30/11/2010, DJe 26/05/2011).

Ocorre que não se pode concordar com tal visão. Isso porque a própria LEP, no artigo 45, prevê o princípio da legalidade e anterioridade em sede do cumprimento da pena, sujeitando-se, pois, ao brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege. Por sua vez, o artigo 49 da LEP determina que as faltas graves só poderão ser previstas por lei federal, diferentemente das faltas leves e médias que poderão ser especificadas por leis estaduais.

"Artigo 45  Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar" (grifo dos autores).

Veja que, antes da entrada em vigor da Lei 11.466/2007, havia uma Portaria do Departamento Penitenciário Nacional n° 22, de 28 de fevereiro de 2007, em que se previa no artigo 1º o seguinte:

"Artigo 1º — Fica proibida a entrada, permanência ou uso de aparelho de telefonia móvel celular, bem como seus acessórios, e de qualquer outro equipamento ou dispositivo eletrônico de comunicação, capaz de transmitir ou receber sinais eletromagnéticos, no interior das penitenciárias federais" (grifo dos autores).

Sem embargo da natureza infralegal da referida portaria, fato é que o legislador, guiando-se por essa norma e a necessidade de proibir o uso no interior de unidades prisionais de equipamentos que permitam a comunicação interna ou externa, incluiu na LEP a previsão da prática de falta grave para quem "tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo" (artigo 50, VI, LEP).

Como se verifica pelo texto legal, houve um silêncio eloquente por parte do legislador quanto ao termo "acessórios" (uma omissão proposital), tendo em vista que tinha um regulamento anterior prevendo tal possibilidade e, ao alterar a LEP, deixou de prever a posse de "acessórios" de um aparelho telefônico como falta disciplinar, de modo que não há que se fazer uma interpretação ampliativa com relação a uma norma que limita direitos.

Com efeito, no campo penal ou disciplinar sancionador, mormente quando as liberdades públicas estão em jogo e merecem uma atenção e tutela estatal, a lei sancionadora deve ser prévia, certa, escrita e estrita, como decorrência dos ditames nullum crimen, nulla poena sine lege. Daí que é vedada a analogia in malam partem, tampouco a criação de faltas graves quando o legislador assim não o fez.

Nesse sentido, Rodrigo Roig entende que não se trata de falta grave a posse de acessórios (chip, bateria ou carregadores) sem o aparelho celular, eis que não há tal previsão na norma do artigo 50, VII, da LEP. Além disso, tais elementos por si sós não possuem capacidade de permitir a comunicação, não havendo, assim, potencialidade lesiva quando desacompanhados do aparelho celular [1].

E se alguém sustentar sobre a independência de instâncias (criminal e administrativa) para afastar a o entendimento recente do STJ acima aludido, estará indo por um caminho tortuoso, uma vez que o fio condutor deve seguir, na verdade, o princípio da legalidade, também aplicado na seara do Direito Administrativo sancionador.

Portanto, aproveitando-se dessa guinada do STJ rumo à proteção da legalidade na questão da atipicidade da conduta daquele que ingressa com chip de aparelho celular em estabelecimento prisional, cabe-nos defender a imprescindibilidade de estender o entendimento do tribunal superior ao regime das faltas graves previstas na LEP, especialmente no tocante à conduta de posse de chip ou outros acessórios de aparelho telefônico. Afinal, o princípio da legalidade deve ser aplicado também às sanções disciplinares na seara da execução penal.


[1] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica, 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 174.

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