A lei é clara

PGJ recorre de decisão que negou medida protetiva a mulher por ser trans

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25 de maio de 2021, 11h23

Ao declarar que a Lei Maria da Penha não se aplica a pessoa transexual, a 10ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo acabou negando a vigência do artigo 5º da própria lei (11.340, de 2006), que deixa claro que a norma abrange as hipóteses de violência cometida com base no gênero, e não no sexo biológico.

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Com base nesse fundamento, a Procuradoria-Geral de Justiça do estado de São Paulo recorreu ao Superior Tribunal de Justiça para anular o julgamento do colegiado do TJ-SP e conceder, com urgência, medida protetiva à mulher trans que fez o pedido.

Conforme noticiado pela ConJur, a mulher alegou ter sofrido agressões do próprio pai e buscou o Judiciário para obter uma medida protetiva. O TJ-SP, no entanto, julgou se ela podia ou não ser considerada mulher para ter direito à proteção — decidindo que não.

O artigo 5º da Lei Maria da Penha explica que a violência doméstica ou familiar contra a mulher é "qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial", segundo destaca a PGJ.

Mas o TJ-SP "encapsulou-se em um universo bastante restrito" quando disse que a expressão "gênero" faz referência apenas ao sexo biológico feminino. "Nisso reside o equívoco, diante do afastamento da proteção integral e eficiente, sempre e incansavelmente buscada pela Lei Maria da Penha."

O recurso diferencia, em poucas palavras, o sexo biológico (que se refere apenas às características do aparelho reprodutor) do gênero, que é um conceito cultural e social advindo da atribuição de diferentes papéis aos homens e às mulheres.

O artigo 5º foi redigido de modo a não deixar dúvidas de que a lei se aplica à violência baseada em gênero, não em sexo. Assim, ao afirmar que "a equiparação do interessado a mulher (e a esta está vinculado o pedido) ofende o princípio da tipicidade estrita e o da proibição da analogia in malam partem", o TJ-SP negou a vigência da própria lei. Não se tratava de fazer analogia, defende a PGJ, e, sim, apenas de aplicar o texto da lei, que é claro.

A amplitude dos direitos das pessoas trans é garantida, inclusive, em diversos precedentes das cortes superiores, conforme narra o recurso apresentado ao STJ. 

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, permitiu a mudança de nome e gênero no registro civil independente da comprovação de cirurgia de redesignação de sexo (ADI 4.275 e RE 670.422); o próprio STJ tinha concluído, antes mesmo do STF, que a identidade psicossocial deveria prevalecer em relação à identidade biológica; e o Tribunal Superior Eleitoral ainda definiu que cotas de candidatos das agremiações políticas seriam definidas pelo gênero, e não pelo sexo.

Por fim, a petição, assinada pelo promotor Luis Marcelo Mileo Theodoro, ainda lembra que a Câmara Especial do TJ-SP, diante de conflito de competência suscitado em caso de mulher trans agredida pelo companheiro, decidiu que o processo deveria tramitar na Vara do Foro Central de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital.

Entenda o caso
Os desembargadores da 10ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo negaram, por maioria de votos, recurso impetrado por uma mulher transexual que pedia uma medida protetiva contra o seu pai.

No caso, a mulher alega que sofreu agressões que deixaram marcas visíveis, constatadas por autoridade policial. Ela narra que o agressor chegou em casa alterado e, ao tentar sair de casa, foi imobilizada e jogada na parede. Após ser empurrada, ela bateu a cabeça. Além disso, foi ameaçada com um pedaço de madeira, mas conseguiu fugir.

O pai, por sua vez, disse que estava seguindo a filha para ver com quem ela saía e que, quando ela percebeu, se atirou na frente de uma viatura que passava e começou a acusá-lo.

Na manifestação do MP, o procurador Marco Antônio Ferreira Lima sustentou ao TJ-SP que "a  Lei Maria da Penha (11.340/06) não visa apenas a proteção à mulher, mas, sim, à mulher que sofre violência de gênero, e é como gênero feminino que a impetrante se apresenta social e psicologicamente".

Ao analisar o caso, o relator, desembargador Francisco Bruno, entendeu de modo diverso. Ele alegou que os Princípios de Yogyakarta (vinculantes, como já deixou claro o STF) estabeleceram vários direitos considerados de nível constitucional e inalienáveis.

"Todos esses direitos e obrigações são devidos; e, repito, ninguém (de bom senso, é claro) discordará disso. Porém, nenhum deles dá ao transgênero masculino o direito de ser considerado mulher; nenhum, para colocar de outra forma, autoriza a afirmativa de que 'transgênero feminino = mulher' e 'transgênero masculino = homem'", escreveu em seu voto.

Vencida, a única mulher a compor o colegiado, desembargadora Maria de Lourdes Rachid Vaz de Almeida, proferiu voto divergente determinando a aplicação das medidas protetivas. Ela explicou que "não se pode uniformizar os conceitos de sexo, orientação sexual e gênero, sendo necessário realizar a distinção quanto à abrangência da assinalada proteção específica".

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Processo 1500028-93.2021.8.26.0312

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