Opinião

A irrelevância do gênero da vítima na medida protetiva de não aproximação

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25 de maio de 2021, 12h08

Notícia publicada na ConJur no último dia 20 informa que os desembargadores da 10ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo não acataram, por maioria de votos (dois a um), recurso impetrado por uma mulher transexual que pedia uma medida de não aproximação para manter distante seu pai, na tentativa de evitar agressões físicas.  

Entendeu a maioria daquele colegiado que a Lei Maria da Penha protege apenas as mulheres no sentido biológico do vocábulo, o que excluiria pessoas que nasceram homens e fizeram sua transição para o gênero mulher.

Trata-se de uma falsa discussão, uma vez que, segundo venho defendendo desde o longínquo ano de 2009, a medida de não aproximação é ferramenta de proteção à disposição de qualquer ser humano, independentemente de idade, sexo ou gênero, pois extrai seu fundamento de validade do artigo 1º, III, c/c artigo 5º, caput, da CF, e artigo 12 do Código Civil [1].

Embora no Brasil o direito à segurança, previsto no referido caput, tenha sido estudado apenas sob a ótica de sua aplicação vertical, isto é, como uma pretensão do indivíduo a ser satisfeita pelo Estado, figurando os entes estatais como os sujeitos passivos obrigados a proporcionar um aparato policial para proteger o cidadão, é certo afirmar que a palavra segurança prevista na Carta abrange também um interesse do indivíduo contra um outro indivíduo ou empresa; vale dizer, é um direito que se aplica também de forma horizontal, isto é, no âmbito das relações privadas.  

Essa conclusão decorre, primeiramente, da simples constatação de que não existe nenhuma norma no ordenamento jurídico nacional afastando dos relacionamentos intersubjetivos particulares o direito à segurança; demais disso, o artigo 12 do Código Civil traz uma cláusula geral de proteção da dignidade humana, ínsita na qual há o direito à incolumidade física, haja vista que não se admite privar o ser humano do direito de se manter vivo, de repelir agressões ao seu corpo, uma vez que a autopreservação, a defesa da própria vida e de seu corpo, despontam como alguns dos mais primários instintos da espécie.

Essa evidência permite concluir que o artigo 12 do Código Civil contém, como elemento integrante do rol não exaustivo dos direitos da personalidade, a faculdade de uma pessoa manter um potencial agressor privado longe de si, bem como o de não ser por ele assediado mediante telefonemas, mensagens, e-mails, postagens, cartas, recados e outros meios que sirvam para causar medo e desassossego na vítima.

Deveras, considerando que a jurisprudência e a doutrina admitem que o indivíduo é titular do poder jurídico de fazer cessar agressões à sua honra e imagem, seria absurdamente irrazoável concluir que ele não teria o direito de defender seu corpo e sua vida, fazendo cessar ou prevenindo ataques físicos.

Com efeito, se o ordenamento legal assegura, com base no artigo 12 do Código Civil, a cessação dos ataques a direitos menos importantes que a vida e a incolumidade física (ou seja, a honra e a imagem), é seguro afirmar que deve garantir também proteção a essas, dada a sua maior importância.

A segunda sustentação dogmática para a tese de que o direito à segurança incide sobre as relações privadas parte do pressuposto de que esse direito, por configurar um dos direitos da personalidade, é a de que a sua existência e proteção encontram amparo não apenas artigo 12 do código civil, mas também no fundamento dogmático-constitucional da dignidade da pessoa humana, segundo estabelecido no artigo 1º, III, da Constituição Federal. Trata-se de conclusão cujo alicerce não se situa no universo zetético ou no "panprincipialístico", mas, sim, no plano técnico-dogmático textual: artigo 12 do Código Civil, artigo 1º, III, e artigo 5º, caput, da Constituição Federal.

Pois bem, construída essa base jurídico-normativa do direito material à segurança, cabe agora avaliar se haveria uma ferramenta adequada no campo processual para a sua satisfação, quando a vítima não estiver amparada pela Lei Maria da Penha.

Entendo que, mesmo naquelas situações em que não há a incidência dessa a lei especial, pode-se concluir que a vítima, para defesa de seu direito material à segurança (vida e integridade físico-psíquica), possui a faculdade de ajuizar uma ação inibitória inominada, com fundamento, de acordo com o mencionado acima, no artigo 12 do Código Civil e no artigo 1º, III e caput do artigo 5º, da Constituição.

Trata-se de medida que possui semelhança com a restraining order ou protective order tão comum no direito norte-americano, que é solicitada por meio de formulário disponível na internet [2]. Uma de suas espécies é justamente a stay-away orders, a medida de não aproximação objeto deste artigo e que foi denegada pelo TJ-SP.

Retornando à realidade brasileira e consignando que é cabível a tutela inibitória, entendo que os pedidos de não aproximação e de cessação do assédio devem constar expressamente da inicial como requerimentos situados no campo da obrigação de não fazer (artigo 250 do código civil e artigo 497 c/c artigo 536, do CPC) [3]; proposta a ação, adotar-se-á o rito comum (artigo 318 do CPC).

Naturalmente, em razão da urgência que invariavelmente a medida reclama, deve ser requerida, com alicerce no artigo 303 do CPC, a concessão da tutela provisória sem audiência do requerido, devendo o autor instruir a inicial com pelo menos indícios da agressão e da possibilidade de nova ocorrência.

Importante destacar, ainda, que a decisão judicial que impuser a não aproximação (stay-way order) pode estabelecer astreintes em caso de seu descumprimento pelo réu, tendo em vista a previsão do artigo 526, §1º, do CPC.

O demandando em ação dessa natureza será qualquer indivíduo que está agredindo, agrediu ou ameaça agredir a vítima, inclusive amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou de escola; assim, é completamente irrelevante que ele tenha relação de parentesco, companheirismo ou vínculo conjugal com a o autor da ação, o qual, de seu lado, poderá ser um homem, uma mulher ou uma criança, sendo irrelevante seu gênero, orientação sexual ou nacionalidade.

Diante desse cenário e com alicerce na argumentação acima, conseguiremos, se adotada a tese aqui externada, escapar da falsa discussão sobre a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha em favor de homens e de mulheres transgênero, pois o relevante é perceber que o ordenamento jurídico-dogmático contempla instituto de direito material e ferramenta processual adequadas a garantir o direito de todos os seres humanos à segurança.

 


[1] LIMA NETO, Francisco Vieira. ENSAIO SOBRE O DIREITO À SEGURANÇA E A MEDIDA DE NÃO-APROXIMAÇÃO. Revista Novos Estudos Jurídicos. v. 14, n. 3 (2009). Itajaí: Univali, SC. disponível em https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/1933. No mesmo sentido, a partir de Dissertação que tive o prazer de orientar no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFES, entende Andreza Lage Raimundo, conforme se verifica em ENSAIO SOBRE A TUTELA JURISDICIONAL INIBITÓRIA COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO DIREITO À SEGURANÇA NAS RELAÇÕES PRIVADAS, Anais do XXV Encontro Nacional do CONPEDI, Brasília – DF, 2016, disponível em http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/y0ii48h0/kvg8f9o7/x0EA68wuD3cKN525.pdf.

[2] É o caso, por exemplo, da Califórnia: https://www.courts.ca.gov/documents/ch100.pdf

[3] O juiz deverá expedir ordem determinando que o réu mantenha durante certo tempo uma determinada distância, calculada em metros, do autor da ação. É preferível que o decisum seja bem específico no sentido de esclarecer que o réu não se aproxime de um local em que o autor já esteja, pois o correto não seria uma ordem para ele se afastar sempre que o autor chegue perto do réu, pois pode ser que este tenha chegado primeiro ao lugar, de sorte que o acertado é determinar que ele não se aproxime do local onde o autor já esteja.

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