Opinião

Dados equivocados embasam a portaria do 'duplo teto'

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24 de maio de 2021, 6h05

"Canetada eleva salário de Bolsonaro e ministros em até 69% e estoura teto do funcionalismo" foi o título de reportagem de Bernardo Caram publicada na Folha de S.Paulo no último dia 12 [1]. Segundo o jornalista, uma portaria da Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério da Economia estabeleceu que "o limite remuneratório incidirá separadamente para cada um dos vínculos no caso de aposentados e militares inativos que retornaram à atividade no serviço público". Criou-se, na prática, um "duplo teto".

A título de justificativa, o Ministério da Economia teria dito que a medida visaria a adequar "o cálculo do teto a decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TCU (Tribunal de Contas da União)", conforme entendimento firmado pela Advocacia-Geral da União em dezembro de 2020. A matéria registra o seguinte pronunciamento do ministro Paulo Guedes:

"Foi falado muito sobre a decisão dos supersalários, dinheiro para presidente e vice-presidente. Estamos simplesmente cumprindo uma decisão do Supremo. Sou obrigado a cumprir uma decisão do Supremo. A lei a gente obedece".

Estamos tratando da Portaria SGP/SEDGG/ME nº 4.975, de 29 de abril de 2021, em cujo artigo 4º consta a previsão de que o limite remuneratório incidirá isoladamente em relação a cada um dos vínculo nas situações de acúmulo da remuneração decorrente de vínculo de aposentado ou militar na inatividade com a remuneração devida em função do exercício de cargo em comissão, cargo eletivo, e cargo ou emprego público "admitido constitucionalmente".

Além de representar grave contradição com o discurso político de que é preciso cortar gastos do funcionalismo público, a Portaria SGP/SEDGG/ME nº 975/2021, baseia-se em dados equivocados da realidade nesse particular.

Em primeiro lugar, deve-se deixar bem claro que, na redação dada pela Emenda Constitucional (EC) nº 41, de 19 de dezembro de 2003, inciso XI do artigo 37 da Constituição, consta regra no sentido de aplicar o teto sobre a remunerações pelo exercício de cargo público, proventos de aposentadoria e pensões "percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra espécie".

Por ocasião dos debates legislativos durante a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 40, de 2003, que viria a se tornar a EC nº 41, de 2003, a expressão "percebidos cumulativamente ou não" foi objeto de debate específico durante a apreciação do Requerimento de DVS nº 2 da Bancada do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), na sessão extraordinária de 13 de agosto de 2003. Na ocasião, quatro parlamentares encaminharam a matéria, sendo o primeiro deles o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), que se manifestou pela exclusão da expressão nos seguintes termos:

"Senhor presidente, senhoras e senhores deputados, na verdade, toda essa discussão que está sendo travada agora poderia ter sido evitada, porque, quando da votação em primeiro turno, avisei que essas expressões poderiam trazer graves prejuízos para o exercício da atividade parlamentar.
(…)
As questões da cumulatividade e das verbas de qualquer natureza seriam objeto de emenda aglutinativa, que, se viesse a ser votada, poderia, no seu bojo, prejudicar o DVS.

Como não houve acordo, tem de se votar tanto a questão da cumulatividade quanto a das verbas de qualquer natureza, porque, quando foi votado o texto no primeiro turno, ficou um buraco. Essas duas expressões não foram votadas. Os DVSs não podem ser declarados prejudicados. Se o Governo conseguir os 308 votos, volta para o texto a emenda da cumulatividade. No outro DVS, a seguir, voltam para o texto das verbas de qualquer natureza. Se o governo não conseguir os 308 votos, essas 2 expressões não voltarão para o texto original. ()".

O próximo a se manifestar, o deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP), encaminhou a votação no sentido da manutenção da expressão "percebidos cumulativamente ou não" com as seguintes palavras:

"(…) O artigo que vai modificar o disposto no inciso XI do artigo 37 prevê toda uma margem de segurança para que ninguém neste país recebe dos cofres públicos mais do que R$ 17 mil a título de remuneração. Se eventualmente for aprovada a retirada do texto da expressão 'cumulativamente ou não', estará sendo rompido o teto e ruirá uma das principais conquistas que teríamos neste momento. Todos aqueles que lutam pela moralização dos pagamentos, vencimentos, proventos e pensões públicas obviamente não aceitarão.
Trata-se de uma questão decisiva para este Parlamento. Será que podemos compactuar com pessoas que ganham R$ 30 mil ou R$ 40 mil dos cofres públicos, somando cargos, vantagens e aposentadorias? Será que nos podemos curvar diante dessa situação, retirando do texto algo que já está previsto pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998?
(…)
Então, não é possível usar esse argumento para burlar uma regra que é moral, ética e que a sociedade brasileira exige que nós, Parlamentares, afirmemos com toda a segurança. E é pela defesa da ética e da moral na remuneração do serviço público, pela defesa daqueles que ganham salários miseráveis trabalhando diuturnamente que solicitamos às senhoras e senhores deputados que mantenhamos o texto original (…)"
.

Pela exclusão da expressão "cumulativamente ou não" encaminhou o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), nos seguintes termos:

"Senhor presidente, senhoras e senhores deputados, não estou advogando em causa própria, mas esta Casa, de tempos em tempos, vota contra ela própria, e o que é pior, contra a democracia, contra o país.
Não entendo como o Brasil pode impedir que especialistas de vários segmentos participem da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Por que queremos colocar essa barreira? Para que a esta Casa não venham grandes nomes defender a democracia?
Já se tentou três vezes
 na Constituinte, em 1997 e agora. Com as mesmas palavras, foram incluídas no texto duas expressões: 'cumulativamente ou não', 'ou de qualquer natureza'.
De acordo com o artigo 40, §11, da Constituição Federal, se for aprovado, nenhum empresário, nenhum aposentado poderá exercer mandato eletivo. Terá de escolher entre sua aposentadoria e seu salário como deputado; entre trabalhar de graça ou abrir mão de sua aposentadoria.

Nossos colegas da Constituinte as retiraram. Em 1997, o deputado Arnaldo Faria de Sá, aqui presente, e o ex-deputado Adylson Motta conseguiram retirá-las. Agora trazem novamente o mesmo texto, com as mesmas palavras e no mesmo sentido; ou seja, nem esta Casa nem o Senado Federal terão mais ex-governadores, ex-prefeitos, juízes, desembargadores, militares, diretores de empresas, pessoas da iniciativa privada, enfim, porque pessoas que tiverem rendimento não poderão exercer mandato de deputado ou senador (…)".

Por sua vez, favoravelmente à manutenção da expressão "percebidos cumulativamente ou não" encaminhou o deputado Alberto Goldman (PSDB-SP), da seguinte forma:

"(…) Durante todos estes anos, criamos uma série de instrumentos legais que permitiram que se avançassem sobre vários tipos de carreiras e se fossem acumulando, nessas várias carreiras, salários, aposentadorias e pensões. Ninguém neste país se aposenta com valor acima de R$ 17 mil, que será o teto estabelecido para os ministros do Supremo Tribunal Federal; ninguém imagina que no serviço público é possível se ganhar além disso. Na iniciativa privada, sim, o trabalhador pode ganhar qualquer salário, a empresa pode pagar à vontade, mas no setor público isso só pode acontecer pela junção de diversas iniquidades.
(…)
Porque aposentadoria não é instrumento de enriquecimento. Aposentadoria é instrumento de garantia a qualquer trabalhador brasileiro de ter, num certo momento da vida, por razões físicas ou mantais, uma retribuição por seu trabalho, de acordo com sua vida pregressa, para que possa ter garantia de sobrevivência.

Aposentadoria não foi feita para enriquecimento de ninguém, muito menos a aposentadoria pública.
(…)
Aposentadorias cujas somas estão acima desse teto foram conquistadas legalmente, mas não são legítimas. São o resultado de uma iniquidade de muitas leis, situação que estamos corrigindo hoje.

Portanto, não tenho dúvida de que não devemos retirar do texto essa proibição da cumulatividade (…)".

Ao final, o Requerimento de DVS nº 2 da bancada do PTB foi rejeitado. No final, a PEC nº 40/2003 foi aprovada pela Câmara dos Deputados, em segundo turno, ressalvados os destaques, na sessão de 27 de agosto de 2003, por 357 votos favoráveis, 123 contrários, e seis abstenções [2]. Os destaques foram apreciados em globo e rejeitados na mesma sessão [3]. No Senado Federal, a PEC nº 67/2003 foi aprovada na sessão de 12 de dezembro de 2003, por 51 votos favoráveis e 24 contrários. As emendas de Plenário pendentes foram votadas em globo e rejeitadas por 48 votos contra 27.

Em suma, o Congresso deliberou conscientemente pela aplicação do "teto remuneratório" sobre a soma de eventuais remunerações, proventos ou pensões percebidos cumulativamente.

Assim, o argumento literal ou legalista não socorre à Portaria SGP/SEDGG/ME nº 4.975, de 2021. Não faz sentido proclamar  como proclamou o ministro Paulo Guedes  que se trataria de norma que visa a cumprir a lei se, em rigor, o que se faz é coisa bem diversa daquela que está escrita no inciso XI do artigo 37 da Constituição. Ninguém pode ler o inciso XI do artigo 37 da Constituição e chegar validamente à interpretação de que o teto deve ser contado isoladamente sobre cada tipo de remuneração nos casos de acúmulo de aposentadoria com remuneração pelo exercício de cargo público. A interpretação jurídica tem limites. Não é possível ler "não A" onde está escrito "A".

Além disso, não é verdade que o STF haja decidido pela contagem isolada do teto para os casos de acumulação de aposentadoria e exercício de cargo público. Na Sessão Plenária de 27 de março de 2017, ao apreciar os Recursos Extraordinários (RE) nºs 602.043 e 612.975, julgados sob o rito da repercussão geral, o tribunal afastou o teto remuneratório apenas e exclusivamente quanto ao somatório dos ganhos do agente público nos casos em que a própria Constituição autoriza o exercício cumulado de cargos, empregos e funções. Na ocasião, o STF julgou contra a letra expressa do inciso XI do artigo 37 da Constituição porque entendeu  bem ou mal  que a expressão "percebidos cumulativamente ou não" seria inconstitucional se aplicada aos casos de acumulação autorizada de cargos públicos.

O Plenário do STF fez controle incidental de constitucionalidade das EC nºs 19, de 1998, e 41, de 2003. Com efeito, na ocasião, vencido o ministro Edson Fachin, o STF reconheceu, na esteira do dispositivo do voto do relator, a "inconstitucionalidade da expressão 'percebidos cumulativamente ou não' contida no artigo 1º da Emenda Constitucional nº 41/2003, no que deu nova redação ao artigo 37, inciso XI, da Carta da República, considerada interpretação que englobe situações jurídicas a revelarem acumulação de cargos autorizada constitucionalmente". O relator considerou basicamente que a expressão "percebidos cumulativamente ou não" esvaziaria de sentido a regra que autoriza a acumulação de cargos; ensejaria enriquecimento sem causa do poder público; e potencializaria situações contrárias à isonomia, na medida em que possibilitaria "tratamento desigual entre servidores públicos que exerçam idênticas funções".

Como se nota do dispositivo do voto do relator, a expressão "percebidos cumulativamente ou não" não foi linearmente rechaçada pelo tribunal para todos os casos de "junções remuneratórias". Apenas foi tida como imprestável para submeter ao teto a soma das remunerações decorrentes do exercício concomitante de cargos públicos. E isso fica mais claro na fundamentação do voto do ministro Marco Aurélio, particularmente na parte que se segue:

"A cláusula contida no inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal  'percebidos cumulativamente ou não' diz respeito a junções remuneratórias fora das autorizadas no inciso que se segue, ou seja, o XVI, a viabilizar a simultaneidade do exercício de dois cargos de professor, a de um cargo de professor com outro técnico ou científico e a de dois cargos privativos de profissionais da saúde".

Note-se que no trecho acima o ministro Marco Aurélio admitiu, sim, a incidência da fórmula "percebidos cumulativamente ou não" para glosar outros tipos de junções remuneratórias, diferentes daquelas tratadas pelo inciso XVI do artigo 37 da Constituição. E o certo é que, ao final, aprovou-se uma "tese" que só afasta a literalidade da expressão no contexto das cumulações de cargos.

Esse julgamento, por força do artigo 932, IV, "a", V, "b", do Código de Processo Civil (CPC), tem eficácia vinculante apenas com relação a órgãos do Judiciário quando da apreciação de recursos. Não existe norma positivada no Brasil que atribua às decisões do STF em sede de RE efeito vinculante geral. Para que haja esse efeito é preciso que o Senado suspenda por resolução os efeitos da norma declarada inconstitucional pelo STF, nos termos do artigo 52, X, da Constituição, o que não aconteceu quanto ao tema em discussão.

Bem por isso, diversamente do que disse o ministro Paulo Guedes, a Administração não estava obrigada a seguir nem mesmo o que foi decidido estritamente pelo STF quando do julgamento dos REs nºs 602.043 e 612.975. E, por óbvio, não devia a Administração — que está submetida ao princípio da legalidade — esvaziar ainda mais o sentido do inciso XI do artigo 37 da Constituição para situações não expressamente ressalvadas pelo STF.

Importante: provavelmente a Portaria SGP/SEDGG/ME nº 4.975 não terá efeitos meramente prospectivos. Essa norma levará servidores a postular administrativa e judicialmente o pagamento de diferenças retroativas decorrentes da aplicação do chamado abate-teto. Considerando que existe entendimento jurisprudencial de que a Administração pode renunciar tacitamente à prescrição por ato administrativo [4], a Portaria SGP/SEDGG/ME nº 4.975 causará um desfalque aos cofres públicos sem precedentes na história.

 


[4] "Configura-se renúncia tácita da prescrição o reconhecimento do direito pleiteado pelo servidor pela Administração Pública" (Superior Tribunal de Justiça, Sexta Turma, Rel. Nefi Cordeiro, AgRg no Recurso Especial nº 1.132.148/PR).

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