Opinião

A espetacularização do processo penal

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24 de maio de 2021, 7h12

É evidente que o Direito Penal é o ramo jurídico com maior apelo social, seja pela corriqueira correlação entre Justiça e prisão, seja pela busca de uma resposta estatal ante a realização de um crime. Verdade é que, quanto mais reprovável a conduta, maior a expectativa social para a concretização das consequências penais.

Nesse cenário, é possível notar que, historicamente, a mídia se aproveita de casos emblemáticos para promover uma espécie de "espetacularização" do processo penal. Isso porque, sob o manto da prestação de informações à sociedade — o que deveria ser a finalidade precípua dos veículos midiáticos —, acaba ensejando ainda mais o clamor pela justiça, que é inerente a qualquer coletividade.

Um grande exemplo da espetacularização que será abordada no decorrer deste texto é o uso de algemas. Esse acessório funciona historicamente como um símbolo de justiça, de força e de controle. Ocorre que, desde 2008, com a edição da Súmula Vinculante nº 11, o Supremo Tribunal Federal passou a zelar pela utilização restrita e justificada dessa medida, vejamos:

"Súmula Vinculante 11: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado."

Diante desse verbete sumular, é possível compreender o descabimento do uso desarrazoado e banalizado de algemas. É comum que policiais façam uso desse instrumento em cumprimentos de mandados de busca, nos quais não há qualquer possibilidade de fuga — seja pela falta de mobilidade do acusado, seja pelo cobrimento total de todas as saídas —, o que se mostra completamente contrário ao postulado em análise e, por conseguinte, aos princípios da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência.

O presente artigo busca promover uma reflexão acerca do tratamento dado aos acusados desses delitos. Sob essa ótica, a presente análise parte do pressuposto de que esse sentimento de revolta, que é ínsito ao ser humano, quando atrelado às apelativas narrativas veiculadas pelos canais midiáticos e à sucumbência do Judiciário pelo heroísmo, gera uma interferência extremamente negativa na persecução penal.

O ordenamento jurídico criminal tem como um dos princípios norteadores a dignidade da pessoa humana, que está intimamente relacionada ao princípio da presunção de inocência. A junção desses princípios nos leva à conclusão de que, por mais provável que seja a autoria de um determinado crime, não é possível condenar alguém sem a prova efetiva e irrefutável de sua conduta. Todavia, as exposições exageradas e precipitadas acabam funcionando como um julgamento social antes da apuração concreta.

Diante dessas premissas, é possível observar que a promoção de abordagens sensacionalistas da mídia, atrelada ao rogo condenatório da sociedade, acaba por inviabilizar uma persecução penal nos moldes desenhados no nosso ordenamento. A problemática maior é justamente a relativização dos direitos humanos, que, uma vez feita em um caso, abre margem à reiteração desse tratamento pelos órgãos de repressão estatal. Desse modo, a criação de um verdadeiro espetáculo em torno de casos penais emblemáticos gera uma excitação social que corrobora para a burla de garantias fundamentais.

Embora sentimentalmente seja difícil compreender a aplicação dos direitos humanos ao autor de uma infração extremamente reprovável, é preciso vislumbrar essa perspectiva à luz de outro princípio norteador do direito penal: o princípio da isonomia. Sob essa narrativa, temos que o tratamento dos acusados deve se dar de forma equânime, uniforme, porque é essa garantia que possibilita a redução de erros judiciários — afinal, ninguém concorda que um inocente passe a vida condenado por força de um julgamento equivocado. Diante desse pressuposto principiológico, é preciso compreender que o Brasil, assim como boa parte dos países ao redor do mundo, adotou determinadas diretrizes — como a proibição da prisão perpétua e da pena de morte —, o que é uma opção estabelecida, sendo de todo insustentável o apelo social em torno da relativização dessas premissas.

No tocante à mídia, há algumas nuances a serem debatidas. Inicialmente, é possível verificar a ausência de repertório técnico-jurídico adequado para a profundidade demandada nas notícias. Outro ponto é que a imprensa tem desejo pela manchete bombástica, o que leva ao abandono da checagem efetiva dos fatos. Isso porque a mídia trabalha sob a égide da imediaticidade e da superficialidade, perdemos o efeito de checagem, haja vista o interesse financeiro em ganhar vantagem em seu nicho. Todo esse cenário é agravado pelas redes sociais, que proporcionam a disposição de notícias em tempo real e o alastramento de informações em milésimos de segundos.

Existe por parte da sociedade um clamor por justiça e, por outro lado, institucionalmente, há a dificuldade de promoção da duração razoável do processo. Esses dois pontos, quando em conjunto, reforçam a sensação de impunidade. Há uma falha em demonstrar um início, meio e fim da persecução penal, enquanto o que as pessoas buscam é justamente a condenação imediata. Então, toda essa discussão gira em torno da necessidade de equalizar a prestação midiática, a duração da persecução criminal e o contentamento social.

O tempo da Justiça é infinitamente maior do que o tempo da imprensa. Enquanto a prestação jurisdicional de qualidade demanda tempo — tendo em vista a necessidade de produção de provas, de obtenção de verossimilhança jurídica —, a mídia demanda agilidade, em uma verdadeira corrida contra o tempo. Por termos um processo lento, o fim do processo, com a efetiva punição após o devido processo legal, deixa de ser interessante.

Essa situação dá azo à promoção de medidas cautelares desesperadas, que são aproveitadas pela mídia para obter a "manchete do momento" e pelos juízes, que passam a ser vistos como heróis porque, diferentemente da maioria, conseguem, de fato, concretizar a persecução penal, conseguem satisfazer o desejo social por punição efetiva, o que complica a qualidade e a veracidade da notícia, além de deturpar as expectativas nutridas em torno da máquina judiciária.

Hoje, lidamos com uma agitação social que, quando analisada em conjunto, gera um movimento capaz de interferir nas investigações que estão sob a supervisão clamorosa da sociedade. Essa situação é problemática sob dois aspectos essenciais: o cerceamento do direito de defesa efetivo, tendo em vista que os julgadores acabam se contaminando pelo clamor social, e do desrespeito às garantias constitucionais do acusado.

O prejuízo àquele indivíduo considerado inocente após a persecução penal é evidente por si só, dada dificuldade de inserção ou reinserção no mercado de trabalho, inércia laborativa durante o período de investigação etc. Além disso, nos casos de grande repercussão, há ainda a ruptura total e irrestrita da intimidade do acusado. Essa devassa é irreversível. Por isso, em casos como esse, seria mandatória a imposição de um sigilo externo, ou seja, para a sociedade — buscando resguardar a intimidade e honra do acusado e familiares até, pelo menos, o julgamento.

Sob outra perspectiva, caso o acusado seja, de fato, o autor do crime, temos também outra consequência negativa dessa espetacularização, qual seja, a promoção de um julgamento eivado de clamor social, contaminado pela ânsia da justiça. Especificamente em crimes dolosos contra a vida — ou seja, crimes cuja a intenção do autor do delito é ceifar a vida da vítima, temos a competência de julgamento do Tribunal do Júri.

Nesse tipo de procedimento, o juiz é mero condutor da audiência, enquanto a sociedade é materializada no Conselho de Sentença, formado por sete pessoas leigas escolhidas dentre 25 indicados. Convém destacar que essas pessoas, que deveriam julgar o caso à luz das impressões obtidas no momento do julgamento, chegam ao tribunal já contaminadas pelo clamor social. Recordo que esse clamor é inevitável e é justamente por isso que a investigação deveria ser resguardada até que a condenação fosse, de fato, concretizada.

Sendo condenados ou absolvidos, é inequívoca a violação e relativização dos direitos fundamentais dos acusados. Relativiza-se intimidade, boa fama e honra destes e de seus familiares, além de aniquilarem completamente o estado de inocência, que deveria nortear qualquer investigação. Esses prejuízos ficam evidentes quando há a divulgação, por veículos de imprensa, de nome completo e imagem dos acusados, além do acesso desembaraçado ao local do crime mesmo sem qualquer sentença penal condenatória.

Reiteradamente, as pessoas cujas identidades foram reveladas passam a sofrer ameaças e até agressões, antes mesmo de o Estado — a quem é reservada a repressão penal — finalizar a investigação. Nada obstante às máximas difundidas no senso comum, a presunção de inocência deve vigorar e instruir toda e qualquer persecução penal, de forma que o papel da mídia deveria sempre reiterar a inocência (até que se prove o contrário) e não instigar o ódio coletivo.

Os direitos fundamentais são o que sustentam o Estado democrático de Direito e têm como origem justamente essa necessidade de resguardar as garantias individuais das pessoas em detrimento dos poderes do aparato estatal. Destaca-se, nessa seara, a fundamental separação entre direito e moral, o que se mostra como um corolário da legalidade — não podendo a Justiça se pautar em arbítrio moral.

O maior desafio que essa matéria encontra hoje é como equalizar a liberdade de expressão, que traz consigo o sigilo da fonte, com a oportunidade de um julgamento justo e que preserve a intimidade dos acusados de um crime de grande repercussão. Diante da ausência de repertório jurídico da imprensa, é preciso buscar sempre entregar as informações sob um dialeto compreensível, de forma a evitar notícias equivocadas e que alarmem, erroneamente, a sociedade. Nesse sentido, entende Nicolitt (2018, p. 146):

"Não há dúvida de que a publicidade e a liberdade de expressão são garantias constitucionais que visam a proteção e a dignidade do indivíduo. Portanto, não podem elas se converterem em instrumento de opressão, a ponto de violarem o direito ao julgamento justo (fair trial), pois a cláusula do devido processo legal é um dos componentes da dignidade humana. Assim, não pode a liberdade de expressão ou a publicidade processual se reverterem em violação da própria dignidade, transformando o homem em objeto e aviltando seu direito ao julgamento justo" [1].

As notícias não podem ser vinculadas com a finalidade de dar às pessoas a sensação de que a pretensa Justiça, de fato, funciona. A repressão estatal não pode se basear na punição como um fim em si mesma. Para isso, os juízes devem agir com um certo grau de institucionalismo, de forma a não pautar suas decisões meramente nos anseios sociais. É preciso conscientizar os atores jurídicos de não se valer dessa espetacularização em seu próprio benefício, tendo em vista que a vestimenta de "herói", encampada por muitos, acaba por legitimar a criação desse espetáculo em torno da persecução criminal. Os processos de grande repercussão deveriam ser utilizados como exemplo de máximo respeito aos postulados processuais e não o contrário.

Os institutos policiais, judiciários e midiáticos não devem antecipar decisões, para que as pessoas tenham para si seu desejo de "justiça" satisfeito. A persecução penal deve se pautar na análise e julgamento dos fatos, mas sempre com fulcro exclusivo na lei e no ordenamento jurídico como um todo.

 


[1] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal — 7 ED. — Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.

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