Público & Pragmático

É recomendável aplicar a nova Lei de Licitações na pendência do PNCP?

Autor

  • Gustavo Schiefler

    é doutor em Direito do Estado (USP) advogado (Schiefler Advocacia) e professor (Zênite e IDP) em matéria de licitações públicas e contratos administrativos.

23 de maio de 2021, 8h01

Ultrapassado o mês de euforia que sucedeu à publicação da nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), um fato desconfortante tem atraído a atenção da comunidade jurídica.

O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), sítio eletrônico oficial projetado para servir como centro gravitacional das contratações públicas, que reunirá as informações e as funcionalidades essenciais à operacionalização dos processos licitatórios, ainda não existe no mundo real. Apesar de ter sido literalmente "criado" pelo artigo 174 da nova Lei de Licitações, não há estimativa de data para a sua efetiva implementação.

Em razão dessa pendência tecnológica, pululam as indagações, em coro de incertezas: já posso, realmente, aplicar a nova Lei de Licitações? É recomendado fazê-lo, mesmo sem o PNCP? Se sim, como? Existe risco de responsabilização?

A teoria pura do Direito que nos perdoe, mas a dualidade entre o ser e o dever ser não está servindo para resolver as idiossincrasias da nova Lei de Licitações. Em esforço de viés prático, enfrenta-se o problema (a ausência de PNCP para operacionalizar a nova Lei de Licitações) a partir de uma modificação um tanto criativa da referida dicotomia teórica.

O exercício proposto se estabelece sobre o paradigma do agente público que tomará a decisão de aplicar, ou não, a nova Lei de Licitações com base no seu grau de convencimento sobre a vantajosidade, a viabilidade técnica e a segurança jurídica de tal operação. E na formação de seu autoconvencimento, em favor ou desfavor de tal operação, perceberá como útil compreender melhor as variantes contextuais sobre o "problema" da ausência do PNCP, necessário para se cumprir à risca a Lei nº 14.133/2021.

Confortado pelo pragmatismo teórico de Genaro Carrió [1], para quem as classificações não são certas ou erradas, mas, simplesmente, úteis ou inúteis, tomo a liberdade de enfrentar a ausência do PNCP a partir de uma perspectiva em que tal fenômeno é enquadrado e compreendido com base nas seguintes categorias:

1) O ser;

2) O dever ser;

3) O deveria ser;

4) O poder ser; e

5) O recomendado ser.

No âmbito do ser, é incontroverso que a Lei nº 14.133/2021 existe e está em vigor desde a sua publicação, em 1º/4/2021. É também certeza, no mundo real, que existem centenas ou milhares de gestores públicos que querem ou até precisam aplicá-la. Por outro lado, constata-se que, de fato, o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), embora tenha sido virtualmente "criado" pela lei, ainda não existe no mundo real, nem foi implementado, e não há informações definitivas sobre quando isso acontecerá.

No âmbito do dever ser, a Lei nº 14.133/2021 possui disposições que inegavelmente determinam, para a operacionalização dessas novas licitações e contratos, o uso do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).

A título de exemplo, o artigo 94 da nova Lei de Licitações indica que a divulgação no PNCP é "condição indispensável para a eficácia do contrato e de seus aditamentos". O artigo 54, por sua vez, determina que a forma de conferir publicidade ao edital é a "divulgação e manutenção do inteiro teor do ato convocatório e de seus anexos" no PNCP. A regra da lei não é conferir publicidade em Diário Oficial, não é conferir publicidade em sítio eletrônico próprio — é divulgar no PNCP.

A única exceção, sob a perspectiva positivista da lei, destina-se aos municípios com até 20 mil habitantes (artigo 174, parágrafo único), que possuem um prazo de até seis anos para adotar o portal. Em relação a esses, portanto, o problema inexiste. 

Ainda no âmbito do dever ser, destaca-se a regra de que a gestão do PNCP compete ao Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas (artigo 174, §1º), igualmente pendente de constituição. A propósito, seria este Comitê Gestor o órgão responsável por estruturar e implementar o PNCP, ou apenas por geri-lo? Deixemos esta questão para o âmbito do "poder ser".

Na categoria do que deveria ser, cuja perspectiva é sempre opinativa, em análise retrospectiva de um futuro que não aconteceu, mas que, muitas vezes, ainda pode acontecer, é seguro concluir que, se voltássemos no tempo, alguém certamente recomendaria ao legislador que dispusesse uma norma de transição vocacionada a evitar a presente situação. É dizer: a lei deveria ser diferente.

Analisando como a nova Lei de Licitações deveria ser, podemos afirmar que ela deveria conter disposição com uma alternativa temporária dedicada a confirmar e a explicar a aplicação do regime jurídico em caso de pendência de implementação do portal. Se deveria conter, é porque não contém — mas está aí uma possível solução de matiz legislativo.

No âmbito do poder ser, cuja perspectiva é sempre interpretativa, impondo-se furtivamente sobre as indesejadas incertezas do dever ser, reconheço que os argumentos jurídicos mais razoáveis são aqueles que defendem que, sim, é permitido aplicar o novo regime de licitações e contratos desde já, a despeito da ausência do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).

Para tanto, basta que o agente público competente descreva no processo administrativo o atual estado de coisas, motive a decisão com base nos benefícios comparativos deste regime em relação ao regime jurídico anterior (em processo de substituição) e proceda mediante a execução de soluções práticas alternativas ao que, na nova lei, está vinculado ao uso obrigatório do PNCP. Por exemplo, que realize a publicação dos editais e dos contratos em sítio eletrônico próprio e em Diário Oficial, em vez de divulgação no portal, e assim por diante.

Ainda sob a perspectiva do poder ser, a nova Lei de Licitações parece transparecer que, quando confiou a gerência do PNCP ao Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas, concebeu naturalmente a solução, ainda que em competência residual, de que este portal também pode ser instituído por esse comitê. Mas essa não é uma resposta interpretativa desejável. Temos pressa. E, portanto, no mundo real, não seria desarrazoado aceitar que uma primeira versão do PNCP seja implementada pelo próprio Ministério da Economia, já que hoje é o órgão responsável pela gerência dos demais sistemas análogos do governo federal. E depois, quando o comitê gestor for instituído, que implemente sua política. Certo?

Sim, em suma, com a ressaca da promulgação, e a evidenciação do problema, formou-se um paulatino consenso de que é juridicamente permitido aplicar a nova Lei de Licitações antes da implementação do PNCP. De fato, essa é uma solução razoável e proporcional. Num exercício de redução ao absurdo, entender contrariamente significaria defender que, se o PNCP nunca for instituído, e se passarem os dois anos de transição, a Administração Pública brasileira estaria proibida de licitar e contratar. O razoável e o proporcional precisam encontrar amparo no mundo real.

Mas o que dizer sobre o âmbito do que é recomendado ser?

Embora possível, embora permitido, é recomendado aplicar a nova Lei de Licitações sem a existência do PNCP?

No âmbito do recomendado ser, cuja perspectiva é sempre pragmática, costumeiramente temperada por questões de segurança jurídica e pelo receio de responsabilização pessoal, a dúvida ainda persiste.

O peso da caneta, o senso de autopreservação ("estima pelo CPF") e a cultura de desconfianças sobre as contratações públicas costumam evidenciar o abismo pragmático existente entre o que é permitido fazer, por ser teórica e razoavelmente defensável, sobretudo sob a perspectiva do poder ser, e o que é recomendado fazer, em avaliação de segurança jurídica, ou sobre como se deve proceder para se evitar a responsabilização pessoal, ou mesmo a própria necessidade de se defender contra uma eventual tentativa de responsabilização.

Um enredo antigo se repete: estabelece-se na nova Lei de Licitações, dada a ausência do PNCP, o dilema ético entre, de um lado, a adoção de uma postura dinâmica, assertiva, solucionadora e eficiente, e de outro, em contraposição, um comportamento mais conservador, estático e passivo.

É incontroverso que o novo regime jurídico, comparativamente, é mais benéfico, compatível e adequado às necessidades da Administração Pública brasileira que o regime anterior, o da Lei nº 8.666/1993, em processo de substituição. Ou seja, em termos comparativos, o novo regime jurídico é melhor, mais completo e preferível.

Mas resisto à tentação de recomendar aplicá-lo desde já. A resposta à dúvida, sob a perspectiva de avaliação do gestor público, geralmente depende de uma subquestão: é seguro, sob a perspectiva de responsabilidade?

Ainda que convencido de sua viabilidade no âmbito do poder ser, você, na posição de gestor público, de reputação ilibada, lançaria com base no novo regime uma licitação ou assinaria, com seu nome completo e ID funcional, um contrato por dispensa de licitação, descumprindo os comandos formais da lei, que obrigam, em diversas etapas e situações, o uso do PNCP?

Perdoem-me os mais entusiastas. Não consigo recomendar indiscriminadamente, a qualquer gestor, que o faça. É por isso que, nas últimas semanas, nos cursos de licitação, marquei a diferença entre o que está classificado entre o poder ser (juridicamente permitido, por ser razoavelmente defensável) e o recomendado ser (além de juridicamente permitido, também indicado como prática segura a ser exercitada).

Avanço o raciocínio, pois precisamos de uma solução. O que falta para que o juridicamente permitido (poder ser) se transforme em algo seguro para o gestor público (recomendado ser)?

A resposta é simples: precedentes.

Precisamos de precedentes. E quando falo em precedentes, não me refiro necessariamente a precedentes jurisprudenciais, e, sim, mais propriamente, ao precedente como experiência de sucesso, melhor definido como "evento passado que serve de guia para condutas no tempo presente", na letra bem posta pelo amigo Luís Felipe Espíndola Gouvêa [2].

Se, de fato, não temos perspectiva temporal concreta sobre a chegada do PNCP, o que precisamos é que órgãos públicos, de referência nacional, por meio de suas consultorias jurídicas e de seus gestores, assumam o protagonismo que lhes cabe neste momento histórico. E então, como verdadeiros bandeirantes, desbravem, disciplinem, regulamentem e apliquem motivadamente a nova Lei de Licitações nesse vácuo que se formou com a pendência do PNCP (para esses, finalmente, sim, o recomendado ser). Ou seja, precisamos que o exemplo venha de quem é protagonista, que esta solução, tanto ventilada, se apresente a partir das principais instituições do Estado brasileiro.

Depois que existirem exemplos de destaque, e de sucesso, é natural que os gestores de órgãos subordinados, ou mesmo de entes federados com menor estrutura, aproveitem a experiência e usufruam, quase que de "carona", dessa segurança jurídica inerente ao precedente. Precisamos desses primeiros precedentes. Sem eles, persistirá a insegurança. Com os precedentes, poderemos recomendar o uso da nova Lei de Licitações, independentemente do PNCP e sem risco de que alguém interprete a sua aplicação como "erro grosseiro".

Pois bem. Enquanto não chegam os precedentes exitosos, e nem o PNCP, entreguemo-nos, por fim, à imaginação sobre como será o futuro manejo deste desconhecido, mas já estimado, Sistema.

A propósito, no site da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) [3] há informações sobre um projeto do Gnova (Laboratório de Inovação em Governo da Enap), em apoio à Seges, do Ministério da Economia, operando a partir da metodologia conhecida por design thinking, o qual gerou um MVP (minimum viable product[4] do PNCP, contendo nove relatórios públicos, os requisitos dos sistemas, a arquitetura e um protótipo de alta fidelidade, com dez funcionalidades navegáveis e um roadmap de implementação.

Para quem anseia pela chegada do PNCP, já é possível ensaiar alguns cliques nesse protótipo, que inclusive possui um logotipo sugerido:

Reprodução

Se hoje seguimos carentes de uma solução prática e segura, ainda que provisória, para a operacionalização da nova Lei de Licitações, conforta-nos a certeza de que a situação é temporária. Com ou sem o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), o novo regime jurídico se estabelecerá.

Em arremate do exercício de hoje, a conclusão é que a nova Lei de Licitações já vigora entre nós, embora desacompanhada do PNCP (o ser), o qual é previsto, nas regras da própria lei, como elemento operacional indispensável para a sua observância (o dever ser). Lamenta-se que a nova lei não tenha previsto alternativa para este período de transição, pois poderia ter apresentado expressamente uma solução provisória, evitando a insegurança que se estabeleceu (o deveria ser). Isso, no entanto, não impede a imediata aplicação desse novo regime jurídico, já que existem soluções pragmáticas substitutivas que conformam, ainda que provisoriamente, a finalidade essencial do portal na nova Lei de Licitações, e que encontram amparo em fundamentação jurídica (o poder ser).

Embora possível, porque juridicamente defensável, a ausência de precedentes que sirvam como referência para a aplicação da nova Lei de Licitações durante a espera do PNCP inviabiliza, hoje, a sua recomendação indiscriminada (o recomendado ser).

Que venham os precedentes!

 


[1]CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguaje. Buenos Aires: Abeledo — Perrot S.A, 1973, p. 72.

[2] GOUVÊA, Luís Felipe Espindola. Precedentes Vinculantes e Meios de Impugnação no CPC/15. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018, p. 13.

[3] Disponível em: http://repositorio.Enap.gov.br/handle/1/6040. Acesso em: 11/5/2021

[4] Disponível em: https://pncp.herokuapp.com. Acesso em: 11/5/2021.

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