Opinião

A Justiça e o sistema jurídico

Autor

  • João Mestieri

    é advogado doutor em Direito pela PUC-RJ fellow da Yale University (USA LLM Yale Law School USA 1972) membro efetivo da Academia Brasileira de Letras Jurídicas — titular da Cadeira 16 — professor associado da PUC-RJ e membro honorário da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

23 de maio de 2021, 6h05

Diante do cenário jurídico atual é quase inevitável fazermos a anamnese de nossos progressos no terreno do enforcement, especialmente no que se refere ao papel do sistema jurídico como técnica oficial de controle social. Por todo lado, vemos a busca desesperada por justiça, pela proteção das minorias e, muito especialmente, pela adequação da Justiça formal à realidade substancial dos fatos sociais, ou melhor, a luta pelo realismo no Direito. Dois pontos mais salientes são sempre lembrados em nossas críticas: o empírico descaso para com a justiça social e a falência, hoje indisfarçável, do sistema criminal como um todo, seja no definir a política repressiva, seja mais ainda em dinamizá-la, através de penas, que sabidamente nada ou pouco têm a ver com os crimes enquanto manifestação material no mundo social e, pior ainda, com a histórica inadequação para realizar os propósitos ostensivos alardeados pelo sistema, ou seja, prevenção do crime, paz social, ressocialização e fortalecimento dos "laços do bem".

Sendo essa a verdade vivida e sentida por todos, é evidente a erronia da política de exasperar as penas para inibir os criminosos. Como tivemos ocasião de demonstrar ao longo das últimas décadas, o fenômeno do crime é um fenômeno ambíguo e deletério, mas faz parte da evolução da sociedade e assim foi em todas as épocas da nossa evolução, desde a pré-história.

Ainda que seja difícil aceitarmos a nossa pouca percepção da realidade do ser humano e da vida em sociedade, há sinais mais do que evidentes de que não apenas desconhecemos a natureza do ser humano, de modo especial a sua capacidade de entender a verdade, como de orientar o seu comportamento de acordo com a sua consciência e "vontade"; de modo igual, adquirir a percepção do meio circundante, captar e agir de acordo com a realidade do meio social, suas regras e movimentos de desenvolvimento e simetrização.

O apelo para uma volta aos princípios antigos, para uma reformulação do jurídico com base nos valores éticos e morais é sinal positivo de recuperação do prestígio desses valores no meio social, mas demanda, contudo, um posicionamento abrangente da vida de relação. De nada valeria o renascimento de um Direito Penal melhor estruturado em sua formulação exterior, mas de alma, de conteúdo, de base não estruturadas com a mesma elevação e pureza de. A estrutura e princípios sociais formam um todo. Estamos conscientes, mais ou menos intensamente, da realidade de a evolução jurídica formal, lenta, mas inexoravelmente, estar se afastando cada vez mais do dado da moral.

Um retorno às bases antigas, ou seja, o tentar-se reintroduzir ou reaproximar o Direito dos valores morais básicos, não pode consistir apenas em uma atividade intelectual, e menos ainda se identificar com uma interpretação conservadora da realidade dos fatos e, menos ainda, o fazer uso da força bruta para inibir a prática de crimes; isso seria uma alienação absurda, com o risco consciente de, com o uso de medidas absolutas, órfãs de uma base jurídico-filosófica plena, abrir caminho para segmentos de uma política reacionária tópica, que mais comprometem do que solidificam o caminho do desenvolvimento social da verdade, da conviviabilidade irmã e da verdadeira justiça social .

A regra que deve preponderar é: o sistema jurídico, ao se manifestar através das decisões judiciais e de outros canais de expressão, deverá sempre estar em absoluta sintonia com o justo e o equitativo. E o que denomino de consciência jurídica plena, aquela que ao fazer uso do seu poder de império tem a exata e plena consciência que o braço do Estado ao disciplinar certa relação, deverá estar consciente do todo social. Nenhuma manifestação judicial pode privilegiar uma solução dogmática em desfavor de princípios contrários à verdade e ao imperativo do justo. A razão é bastante simples: respeito à harmonia, ao escalonamento das normas de regência da vida em comunidade. Não há princípios religiosos, éticos, morais, jurídicos, ou mesmo de convivência de menor círculo, sem convergência a um princípio de vida social único, apenas expressado em diferentes níveis de condensação. Todas essas expressões comungam de uma única e mesma espinha dorsal. Assim, não pode haver discrepâncias qualitativas entre esses diferentes níveis de expressão da vida social: a regra jurídica, assim, atua em um determinado nível de expressão do justo e da verdade, o de definir e sistematizar os princípios do justo de uma forma bem mais densa, enunciando o dever ser jurídico; mas esse enunciado não deve ser original, ou seja, ele vem de um plano anterior, mais genérico, menos denso, que tem a missão de expressar, pontualmente, as regras do bem viver e do bem conviver.

Podemos idealizar o mundo jurídico como uma estrutura em equilíbrio, para a qual convergem as ações individuais e de grupos, enriquecendo e robustecendo aquela sociedade, organizada, mas em constante movimento.

Autores

  • Brave

    é advogado, doutor em Direito pela PUC-RJ, fellow da Yale University (USA.LLM, Yale Law School, USA, 1972), membro efetivo da Academia Brasileira de Letras Jurídicas — titular da Cadeira 16 — e professor associado da PUC-RJ.

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