Embargos Culturais

'Meu Pai', de Florian Zeller, com Anthony Hopkins

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de maio de 2021, 8h03

Quando um octogenário chora pela mãe nos ombros de uma enfermeira, tem-se inversão do sentido cronológico da vida. Há algo de estranho. Tem-se problema de ajuste da experiência com o tempo. Octogenários, em princípio, choram por filhos e netos, e muitas vezes o estigma do abandono é o motivo da dor. Tem-se uma queda, uma regressão, uma forma de humilhação. É justamente essa cena que marca um dos pontos mais angustiantes do filme "Meu Pai", dirigido por Florian Zeller e estrelado por Anthony Hopkins (o pai) e Olivia Colman (a filha).

Spacca
Legenda

Florian Zeller, francês, nasceu em 1979 e destaca-se também como escritor. No Brasil, a Editora Rocco traduziu e publicou, entre outros, seu "A fascinação pelo pior", um livro sobre o choque de culturas, que deixa um pouco a desejar, com imagens óbvias de um Cairo imaginário. Para um abalizado crítico brasileiro (Joca Reiner Terron), Zeller, como escritor, é um pastiche do Houellebecq. Como diretor, parece-me, saiu-se melhor. Bem melhor.

Anthony Hopkins levou seu segundo Oscar pela atuação. O primeiro fora com "O silêncio dos inocentes". Há uma circunstância simbólica que marca essa última premiação. Hopkins seria o ator mais idoso a levar o prêmio e o filme aborda, de fato, o drama da velhice. E que drama.

"Meu Pai" é um filme que trata do tempo, e da forma como o tempo nos consome. Na opinião de Ovídio, escritor romano que foi expulso da cidade, o tempo é um devorador de coisas e de pessoas. Ovídio viveu no tempo de Augusto. Recentemente, em gesto marcado por intenso simbolismo, a Câmara de Vereadores de Roma revogou o decreto de expulsão de Ovídio, dois mil anos depois. Em Florença, há pouco tempo, revogou-se a expulsão de Dante Alighieri.

Nítida a intenção de se fixar uma linha de continuidade, situação muito propícia na conjuntura política atual. Em tempo: a Igreja perdoou Galileu. Sério: em 1992 Sua Santidade o papa João Paulo II reconheceu os erros da Inquisição nesse tumultuado processo. Às vezes, nem a absolvição resolve. Foucault, um insuspeito pensador francês, nos ensinou que toda absolvição é a confissão de um erro judicial.

O tempo anula, apaga, faz esquecer. Mas, ao mesmo tempo, porque é tempo, o tempo ressurge. É implacável. Hopkins (no filme, Anthony, como na vida real) reiteradamente perde e encontra e perde de novo e encontra de novo seu relógio de pulso. O espectador percebe uma metáfora que é menos do esquecimento do que efetivamente da contagem das horas. Um poeta inglês dizia que devemos cuidar dos minutos, justamente porque das horas e dos tempos maiores o próprio tempo se encarrega de cuidar. No filme, a obsessão de Hopkins com relógios é tanta, que se incomoda com os relógios dos outros também, a exemplo do relógio do genro, que sugere ter sido furtado.

As cenas todas se desdobram em planos intimistas, em um apartamento em algum lugar de Londres (Lauderdale Road, lê-se na placa de rua em algum dos planos) bem em frente a uma loja (real ou imaginária) chamada "Avalon". Os familiarizados com o ciclo de lendas do Rei Arthur reconhecem em Avalon uma ilha lendária, repleta de deliciosas maçãs, uma dimensão do paraíso. Há também uma linda canção dos anos 80 (de Brian Ferry e de sua banda Roxy Music) que explora essa imagem idílica. Avalon, em forma de paraíso, estava bem em frente ao apartamento de Anthony. A partir de um determinado momento do filme a loja não está mais lá. Há um menino na rua, que brinca, numa sequência de quase piruetas que encanta o velho homem perdido nas memórias.

O espectador sente-se tão confuso quanto o personagem central. Até um certo momento, crédulo na sequência linear da narrativa, o espectador acredita efetivamente no que assiste. São poucos personagens, não passam de meia dúzia. Porém, a forma confusa como Anthony os vê exige que o espectador ordene suas ideias. Anthony ilude a todos, e talvez a si mesmo. Tem-se a impressão de que é fiel a seus pensamentos. Não é manipulado por uma realidade que tentam lhe impor, e pode ser o único de todos (incluindo-se todos os espectadores) que realmente interpreta o mundo real. Enganamo-nos.

Há tentação de cair-se no apelo dramático da violência das patologias degenerativas. Tem-se quase sempre uma lembrança familiar. O espectador de algum modo pode hesitar entre solidarizar-se com a dor de Anthony (que é o esquecimento) ou com a dor de sua filha (que sofre com a decadência do pai). Essa imprecisão, penso, é uma das chaves interpretativas do filme. O espectador mais desconfiado coloca em dúvida a honestidade dos propósitos da filha. Há uma cena fundamental, rapidíssima, na qual a filha parece enforcar o pai. No entanto, porque a maioria das cenas pode se revelar como um delírio de Anthony, duvida-se dessa possibilidade. Nesse momento, quem delira é o espectador.

Miguel Reale, em "Lições Preliminares de Direito", livro que é um ritual de passagem, conta-nos que advogou para um casal de idosos em uma ação de alimentos. O demandado era filho do casal, empresário, de grande capacidade econômica. Reale referia-se à velhice, que no contexto de uma compreensão realística da vida seria a pior das enfermidades. Ainda que o demandado tenha se curvado a uma ação de alimentos, restava para os demandantes uma certa humilhação, que talvez nos esclareça os sinistros limites entre o direito e a moral.

"Meu Pai" é um argumento substancialmente moral, de compaixão. É o que sentimos por Anthony, e por todos que estão e que não estão nas cenas tão rápidas. No inconsciente talvez nos perguntemos se o pior seria a degeneração (que talvez não seja perceptível) ou a proximidade com o paciente; isto é, se tomamos a velhice (e a demência) como patologia e a predisposição para o cuidado como um fardo.

A cena final do asilo sugere a ruptura com a família. É o corte, o que talvez explique o choro nos ombros da enfermeira. A ruptura transforma-se em aparente loucura. Na forte imagem do pensador francês acima citado, "a loucura é o exterior líquido e jorrante da rochosa razão". Em "Meu Pai" a razão desassiste a todos. E esse pode ser seu maior encanto.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!