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O autoritarismo de Francisco Campos

22 de maio de 2021, 8h03

Por Danilo Pereira Lima

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No século XIX, Tocqueville já destacava que ao lado de um déspota sempre há um jurista disposto a colaborar com um regime autoritário. Foi assim com Alfredo Rocco, no tempo do fascismo na Itália; com Carl Schmitt, na Alemanha nazista; Joseph Barthélemy, no regime colaboracionista de Vichy; e tantos outros casos que poderiam ser lembrados. Fato é que, por convicção ou oportunismo  — ou pelas duas razões ao mesmo tempo  — parcela importante da comunidade jurídica sempre se fez presente em regimes de exceção.

No Brasil, a atuação de Francisco Campos durante o Estado Novo (1937-1945) e nos momentos iniciais da ditadura militar (1965-1985) é um grande exemplo de uma vida inteira dedicada ao autoritarismo. Campos foi o artífice de duas obras jurídicas de peso no século XX: a redação da Constituição de 1937 e a criação do Ato Institucional como principal instrumento normativo da ditadura militar. Foi por essa razão que o cronista Rubem Braga certa vez afirmou que "toda vez que acende a luz do senhor Francisco campos há um curto-circuito na democracia".

Ao contrário de certos procuradores da República, membros da AGU e ministros de Tribunais com pouca capacidade de formulação jurídica  — para a nossa sorte!  — e grande vocação para a bajulação, a atuação de Campos não se resumia a citar passagens bíblicas para agradar o presidente da República. Como um intelectual de grande erudição, sua atuação estava a serviço do poder, de modo a garantir que o Direito fosse utilizado como um instrumento do autoritarismo. Ou seja, para Campos a noção de um Direito limitando o poder estava descartada. Tanto na obra de 1937 quanto na obra de 1964, o constitucionalismo liberal foi descartado e o Direito foi utilizado para fortalecer as engrenagens do poder.     

É verdade que as duas ditaduras tinham características bem diferentes. Nos anos 1930, o constitucionalismo liberal estava sob ataque e o mundo se deparava com a ascensão do nazifascismo na Europa. A tripartição dos Poderes, o Parlamento e a autonomia funcional do Poder Judiciário eram abandonadas em nome do fortalecimento do Executivo. A centralização do poder era vista como a resposta mais adequada para os problemas políticos, econômicos e sociais. Tanto é que, a respeito da situação do Brasil, Campos afirmava que "esclarecida e edificada pelas vicissitudes dos últimos tempos e pela grave lição do mundo contemporâneo, a opinião já se convencera de que nos velhos moldes e através das antiquadas fórmulas institucionais seria impossível assegurar a existência e o progresso da nação […]"[1].

Além dos ataques ao constitucionalismo liberal, também era muito comum a propagação de discursos racistas. No fascismo tupiniquim, representado pelo integralismo, uma figura como a de Gustavo Barroso se destacava no meio intelectual pelo seu antissemitismo raivoso. Também era muito comum a crítica à miscigenação racial no Brasil, como acontecia nas obras de Oliveira Vianna. Algo que somente começou a ser revisto a partir de Gilberto Freyre e de seu elogio à miscigenação racial.

Havia no Brasil, entre intelectuais como Campos e Vianna, a percepção de que o constitucionalismo liberal não era adequado à realidade brasileira. As fragmentações políticas da Primeira República, o risco de divisão do país e a dificuldade de fazer com que o Estado nacional se consolidasse serviam como base para criticar as importações de instituições jurídicas liberais dos EUA e da Europa. Nesse sentido, segundo Campos, "as experiências impostas pelo fetichismo das teorizações obsoletas custaram tão caro à nossa terra e à nossa gente, que por elas se firmou o consenso de que, sem a reforma corajosa e salvadora, agora, felizmente, executada, mais cedo ou mais tarde, teria de sucumbir a maravilhosa resistência do organismo nacional"[2]. Isso ajuda a compreender a posição de Campos de que a instauração do Estado Novo havia realizado os verdadeiros ideais da revolução conservadora de 1930.

A obra maior de Campos nos anos 1930 foi a Constituição de 1937. Por meio dela, o jurista mineiro consolidou em termos jurídicos a centralização do poder nas mãos do presidente da República. Encontramos na Constituição redigida por Campos a defesa da delegação legislativa ao Executivo e o controle político da Jurisdição Constitucional. O interessante é que, mesmo com seu caráter autoritário, a Constituição de 1937 não chegou a vigorar. Vargas simplesmente ignorou o artigo 187 da Constituição estadonovista que determinava a sua submissão a um plebiscito. Diante dessa situação, e com o Congresso Nacional fechado de 1937 a 1945, Vargas governou o país por meio de decretos-leis, enquanto seu ministro da Justiça, Francisco Campos, organizava a codificação do Direito Brasileiro. Era a modernização autoritária.

Após o Estado Novo, Campos começou a se afastar do estatismo econômico e paulatinamente passou a flertar com o liberalismo econômico. A mudança de posição econômica não alterou sua posição política autoritária. O que no caso não acarretou nenhuma contradição ideológica, até porque o liberalismo econômico sempre se relacionou de forma contingencial com a democracia[3]

Durante a crise dos anos 1960, a defesa do autoritarismo assumiu outros contornos políticos. A demofobia e a histeria anticomunista continuavam muito presentes, tanto é que a defesa do voto dos analfabetos pelos trabalhistas era encarada como uma medida subversiva tanto por conservadores quanto por liberais.

No entanto, a conjuntura internacional não sofria mais com as ameaças do nazifascismo. Apesar das tensões da Guerra Fria, o autoritarismo brasileiro procurava dissimular suas reais intenções com um verniz de democracia liberal. Desse modo, mesmo diante de uma situação de golpe de Estado e de implantação de uma ditadura militar, ainda assim era importante sustentar que o autoritarismo era aplicado em defesa da democracia, e não em oposição à democracia liberal como aconteceu nos anos 1930.

A preocupação com a defesa da narrativa de que a deposição de Goulart era um ato de defesa da legalidade democrática fez com que mais uma vez o trabalho de Campos fosse requisitado. Poucos dias após o golpe civil-militar, Campos elaborou aquele que se tornou o principal instrumento normativo da ditadura militar: o Ato Institucional. Por meio desse instrumento jurídico, Campos elaborou uma legalidade autoritária responsável pela consolidação de um regime que mantinha um disfarce liberal  — com a manutenção apenas formal da tripartição dos Poderes e a implantação do bipartidarismo  — para realizar seu projeto de poder. A receita de Campos se baseou na conexão entre as teorias da revolução e do poder constituinte, ao afirmar que, como revolução vitoriosa, a ditadura se auto-investia na condição de poder constituinte permanente. Mais uma vez Campos ofereceu ao Brasil a base jurídica para a implantação do autoritarismo.

De 1937 a 1964, Francisco Campos foi um dos grandes nomes do pensamento jurídico autoritário. Com toda a sua erudição, motivo pelo qual era chamado de Chico Ciência, Campos trabalhou incansavelmente contra a democracia e o constitucionalismo. Algo que precisamos investigar melhor para compreendermos os fundamentos políticos e ideológicos do pensamento autoritário que Campos tanto ajudou a difundir pelo país. Afinal, se não faltaram percalços ao Estado de Direito ao longo da história constitucional do Brasil, também é importante recordar que nunca faltaram juristas como Campos para empurrar o constitucionalismo no abismo com suas teorias, técnicas, doutrinas, pareceres e decisões judiciais.  


[1] CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 40.

[2] CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 40.

[3] LYNCH, Christian. Nada de novo sob o sol: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro. Disponível em: https://inteligencia.insightnet.com.br/nada-de-novo-sob-o-sol-teoria-e-pratica-do-neoliberalismo-brasileiro/. Acesso em: 21/05/2021.