Opinião

Plano previsto na nova Lei de Licitações pode ser facilitador de carteis

Autores

  • Luiz Guilherme Ros

    é doutorando em Direito Econômico pela Universidade de Brasília mestre em Direito Constitucional pelo IDP advogado sócio do escritório Silva Matos Advogados consultor do Programa das Nações Unidas perante o Cade no projeto Control of Data Market Power and Potential Competition in Merger Reviews secretário da Comissão de Defesa da Concorrência da OAB-DF e membro da Comissão de Direito Regulatório da OAB-DF.

  • Marlus Santos Alves

    é sócio do escritório Silva Matos Advogados vice-presidente Brasília da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial — Brasil (Camarb) vice-presidente da Comissão de Arbitragem da OAB/DF mestrando em Direito Comercial Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro da Comissão de Direito Administrativo da OAB/DF.

22 de maio de 2021, 6h04

Desde a aprovação da Lei nº 12.529/2011 (nova Lei de Defesa da Concorrência ou Lei Antitruste), o Brasil passou a deter um novo marco legal para a defesa do ambiente concorrencial. A nova legislação, assim como a anterior, busca coibir e dissuadir, entre outras condutas, o principal ilícito econômico: o cartel.

Carteis são acordos entre concorrentes, cujo objetivo é reduzir a produção de determinado bem ou serviço a determinado nível, ou comercializar produtos em um preço acordado, que normalmente se assemelha aos preços praticados por empresas monopolistas [1]. Significa dizer que os carteis atuam por meio da fixação das mais diversas condições comerciais [2], não somente o preço dos produtos, mas também os clientes e a qualidade do produto importam em diversas ineficiências para o mercado [3] [4].

Em virtude disso, carteis são considerados os principais ilícitos existentes no Direito Antitruste e os que têm maior potencial de lesar os consumidores. Considerando o nocivo efeito da prática, os carteis são a principal fonte de preocupação das autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo, como salientado pela OCDE (1998). Não foi por outra razão que optou-se por considerar no território nacional a prática de cartel como um crime.

A operação "lava jato" indicou que existiria no Brasil um sistema de rodízio entre as principais empreiteiras para obtenção de obras públicas. Esse sistema consistia no seguinte: as empresas se organizavam com base nas informações públicas existentes para dividir as obras que viriam a ser licitadas pelo governo. Evidentemente, todas as empresas tinham interesse em um quinhão das licitações, razão pela qual se estabelecia um sistema de compensações e apresentação de propostas de cobertura.

Inegável, pois, que deve ser uma preocupação central dos certames a inexistência de conluio entre as empresas. A nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), como era de se esperar, se preocupou de maneira expressa sobre esse tema, tendo estabelecido no artigo 5º [5] que um dos princípios que deveriam ser observados pelos entes licitantes era o da "competitividade".

Ocorre que se de um lado se verifica na novel legislação um interesse legítimo de proteção ao ambiente concorrencial, também é possível verificar que a nova lei estabeleceu certas obrigações ao Estado, que tem o condão de facilitar a adoção de condutas colusivas entre os agentes. Nesse sentido, cita-se o plano de contratação anual, previsto no artigo 12, VII da nova lei, vejamos:

"Artigo 12  No processo licitatório, observar-se-á o seguinte: (…) VII – a partir de documentos de formalização de demandas, os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias".

Todavia, ainda que o objetivo desse plano de contratação anual seja racionalizar as contratações dos órgãos e das entidades que estão sob a sua competência, garantindo, assim, o alinhamento com o planejamento estratégico e subsidiando a elaboração de leis orçamentárias, é importante pontuar que, de certa forma, esse plano tem o condão de estimular a prática de carteis.

Explica-se: a partir do momento  em que as empresas detiverem uma estimativa das licitações que serão conduzidas pelos entes públicos, tornar-se-á mais fácil a colusão entre os agentes, que poderão, de maneira racionalizada, e com base em um plano disponibilizado pelo próprio governo, organizar-se no sentido de dividir as licitações.

Assim, ainda que louvável a adoção do referido plano, é importante que a sua utilização seja feita de maneira a não facilitar a adoção de condutas cartelizadas entre os agentes.

Um primeiro aspecto que merece atenção diz respeito a possibilidade de os entes da Administração Pública elaborarem dois planos, sendo um deles público, a ser disponibilizado ao público geral, e um interno, a ser disponibilizado para os órgãos de controle. Assim, enquanto no primeiro plano, isto é, o disponibilizado ao público, as informações sobre quantitativos, qualitativos, valores devem ser suprimidas, dificultando, assim, a organização do mercado, no interno as informações devem ser disponibilizadas para permitir o controle pelas autoridades responsáveis.

Além disso, e como forma de accountability, o plano anual utilizado internamente pela Administração Pública deve ser disponibilizado, ao final de cada ano, para fins de verificação se os objetivos previamente estipulados foram alcançados.

A expressão accountability traz consigo a ideia de responsabilização pessoal pelos atos praticados e explicitamente o dever de prestação de contas, seja em âmbito público, seja em âmbito privado.

De acordo com o Referencial para Avaliação de Governança, accountability engloba aspectos como transparência, responsabilização, comunicação e prestação de contas sistemática; bem como mecanismos de incentivo e sanção aos responsáveis pelo cumprimento dos objetivos de política pública.

Dessa forma, verifica-se uma relação entre a accountability pública e os conceitos de governo aberto, prestação de contas e responsabilização. Enquanto o primeiro está estruturado sob os pilares da transparência, participação e colaboração; o segundo e o terceiro nascem com a assunção por pessoa com responsabilidade delegada, de quem se exige a responsabilização, que pode ou não culminar em responsabilização [6].

Assim, vê-se que outro aspecto que pode ser utilizado diz respeito à previsão, no edital de licitação, de que os diretores que formalizarem a proposta assinem um "termo de independência da proposta", por meio do qual assumem que a referida proposta não foi objeto de qualquer ajuste entre as empresas. Assim, caso posteriormente verificada uma conduta colusiva, tornar-se-ia mais fácil o processamento das pessoas físicas, seja por cartel, seja por falsidade ideológica e fraude à licitação.

 


[1] Tradução livre: "A cartel is an agreement among otherwise competing firms to reduce their output to agreed upon levels, or sell at an agreed upon price". HOVENKAMP, Herbert. Federal antitrust Policy. The Law of Competition and its Practice. Fourth Edition. Editora West. (2011), P. 158

[2] Os carteis podem operar, portanto, por meio: (i) da fixação de preço de bens ou serviços; (ii) da fixação das condições comerciais de venda de determinado produto; (iii) da restrição da capacidade produtiva; (iv) da divisão de mercado ou clientes; ou, ainda, (v) da restrição das fontes de abastecimento.

[3] Assim, carteis buscam alterar artificialmente as condições do mercado em um processo de redução, ou até mesmo da eliminação, da concorrência e, em regra, importam no aumento das barreiras à entrada aos novos concorrentes. Além da alteração das condições comerciais acima aludidas, carteis implicam em três tipos de ineficiências econômicas, quais sejam: (i) ineficiência alocativa; (ii) ineficiência produtiva; e (iii) ineficiência dinâmica. Para maiores informações sobre as ineficiências econômicas, vide: GUNSTER, Andrea et al. Do cartels undermine economic efficiency? American Economic Association Working Paper. 2011.

[4] Segundo MARTINEZ (2013, P. 37 e 38): "A ineficiência alocativa está relacionada a alocação ineficiente dos recursos sociais, essencialmente por conta do aumento de preços e restrição da oferta. (…) A ineficiência produtiva relaciona-se ao fato de os agentes operarem com custos mais altos do que teriam na ausência do arranjo oclusivo. Por sua vez, a ineficiência dinâmica está relacionada à perda de bem-estar social motivada pela redução dos incentivos à inovação – o cartel reduz os incentivos para que os agentes de mercado aprimorem seus processos produtivos e lancem novos e melhores produtos e serviços no mercado."

[5] "Artigo 5º – Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro)".

[6] Julgamento do Acórdão 2513/2019 – Plenário do TCU em 16/10/2019, sob a relatoria relatoria do Ministro Vital do Rêgo. Em pauta encontrava-se a fiscalização do Políticas e Programas de Governo para subsidiar a discussão do Projeto de Lei Orçamentária Anual.

Autores

  • é sócio do Escritório Silva Matos Advogados, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É membro da Comissão de Direito Regulatório e da Comissão de Direito de Defesa da Concorrência da OAB-DF. Foi assistente técnico e coordenador substituto na Superintendência Geral e assessor do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e autor de artigos relacionados à área de antitruste.

  • é sócio do escritório Silva Matos Advogados, mestrando em Direito das Empresas pela Lisbon Business School e bacharel pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Frequentou especialização em Law Enforcement e Compliance pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É vice-presidente em Brasília da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial — Brasil.

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