Opinião

Unflip: reversão de flip societário e seus aspectos fiscais

Autores

  • Hermano Notaroberto Barbosa

    é doutor em Direito pela Universidade de Paris (Panthéon-Assas) diretor da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) professor convidado de Uerj FGV e PUC-Rio e sócio do escritório BMA Advogados.

  • Luis Henrique Costa

    é mestre em Direito pela Universidade de Leiden professor convidado do Ibet e sócio do escritório BMA Advogados.

21 de maio de 2021, 16h05

Em artigo recente, tratamos de aspectos fiscais das "inversões societárias", ou flips, que se tornaram bastante comuns recentemente. Nessas reorganizações, as participações societárias de uma sociedade brasileira são transferidas para uma holding internacional, como passo prévio à captação de recursos junto a investidores em operação privada ou oferta pública de ações (IPO) no exterior. Como resultado, a sociedade brasileira se torna subsidiária integral da estrangeira, enquanto os investidores, originais ou novos, passam a deter participação direta em uma entidade no exterior. Naquela oportunidade, analisamos razões possíveis para o flip, os principais aspectos tributários envolvidos na sua implementação, bem como na manutenção da estrutura no exterior ao longo dos anos de maturação do investimento e, finalmente, na etapa de desinvestimento (saída).

No presente artigo, concentramos nossa atenção no processo reverso. Examinaremos quais os principais aspectos tributários da dissolução, parcial ou total, de holding de controle no exterior para que acionistas voltem a deter investimento direto em uma entidade no Brasil (unflip).

Razões da dissolução (parcial ou total).
O flip, notoriamente no caso das startups, busca atender, de um modo geral, aos interesses do investidor estrangeiro (tipicamente, fundos venture capital) de alocar seu capital a partir de estruturas e modelos anteriormente testados e com os quais já estão familiarizados, em prol da celeridade, redução de custos, previsibilidade etc.

Para os sócios fundadores da empresa receptora do investimento domiciliados no Brasil, a estrutura posterior ao flip tende a proporcionar, em seu melhor cenário, uma situação fiscalmente neutra, quer dizer, sem majoração da carga tributária quando comparada à configuração original na qual eram titulares de participação direta em sociedade no Brasil. Há situações, contudo, nas quais a manutenção da estrutura no exterior (flip) pode conduzir a uma tributação mais gravosa se comparada ao desenho societário existente anteriormente ao flip.

Pegue-se o exemplo de operação de venda do controle ou da totalidade do capital da startup a um adquirente ou investidor estratégico localizado no Brasil. A este, não faria sentido adquirir uma holding no exterior quando, na verdade, o que lhe interessa é tão somente o ativo subjacente dessa holding. Nessa hipótese, naturalmente, o adquirente decidiria por comprar apenas a empresa no Brasil. Esse racional traz consigo, ainda, uma preocupação de ordem fiscal de grande relevância para o comprador: o aproveitamento do benefício fiscal do ágio registrado na aquisição. Isso porque a aquisição de uma sociedade no Brasil garantiria, sem ressalvas ou discussões adicionais, que o ágio pudesse ser amortizado para fins fiscais mediante incorporação da startup adquirida na sociedade adquirente (ou vice-versa). Nesse caso, a manutenção da estrutura no exterior faria com que o negócio de compra e venda tivesse como única vendedora da sociedade-alvo no Brasil (startup) a holding no exterior.

A tributação incidente sobre o ganho de capital auferido pela holding no exterior por ocasião da venda de sua investida Brasil ocorreria pelas alíquotas que variam de 15% (ganhos até R$ 5 milhões) a 22,5% (ganhos que excedam R$ 30 milhões) e o responsável pelo recolhimento do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) seria a sociedade adquirente no Brasil, por se tratar de operação com vendedor não residente (artigo 26 da Lei nº 10.833/03). As jurisdições escolhidas para abrigar holdings com investimentos no Brasil normalmente não sujeitariam à tributação o ganho verificado no Brasil. No entanto, no caso dos sócios pessoas físicas (fundadores) residentes no Brasil, a nacionalização do lucro obtido pela holding estrangeira mediante distribuição caracterizaria rendimento tributável, sujeitando-se às alíquotas progressivas do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) de até 27,5% (carnê-leão).

A prevalecer a estrutura pós flip inalterada em uma operação com as características descritas acima (adquirente pessoa jurídica nacional, tendo como sociedade-alvo a investida brasileira da holding estrangeira), os sócios fundadores estariam sujeitos a uma carga tributária que poderia chegar a 50% do ganho auferido no desinvestimento. Efeitos idênticos seriam verificados caso, por questões mercadológicas, se optasse como estratégia de desinvestimento por uma oferta pública inicial de ações (IPO) no Brasil, em vez do mercado de capitais estrangeiro.

Nessas circunstâncias, o movimento com vistas a dissolver a estrutura no exterior (unflip), ainda que parcialmente, isto é, em relação à parcela dos sócios fundadores residentes no Brasil, pode começar a fazer sentido. Por essa e outras razões, tem sido mais recentemente observado na prática.

É interessante observar ainda que os próprios termos comerciais da transação podem requerer que a estrutura seja reconfigurada para retorno ao seu desenho inicial. Não raro em uma operação de compra e venda sócios ou acionistas considerados chave para a continuidade e boa performance do negócio permanecem no quadro societário da empresa após fechamento, alienando apenas parcela da participação societária de que eram titulares e mantendo parcela remanescente para alienação em momento futuro, se for o caso, enquanto outros sócios/acionistas com perfil investidor (e.g. fundos de venture capital) vendem a totalidade da sua participação na sociedade-alvo na ocasião do fechamento. Se mantida a holding estrangeira integralmente, a dita assimetria de tratamento entre, de um lado, sócios fundadores, e, de outro, sócios investidores no contexto da transação de venda, não seria possível. Portanto, também aqui, poderia ser conveniente, ou melhor, necessária, a reversão da estrutura de investimento no exterior.

Dissolução da estrutura no exterior (unflip) e efeitos fiscais no Brasil
A dissolução pode envolver a liquidação total da holding estrangeira, hipótese na qual a participação societária na empresa brasileira seria entregue aos sócios/acionistas na proporção de suas participações no capital da holding. No caso de uma dissolução parcial, na qual a holding estrangeira fosse mantida viva, haveria entrega da participação societária na empresa brasileira apenas a determinado grupo de sócios ou acionistas, também proporcionalmente à participação de cada um deles no capital da holding. Nesse caso, operações equivalentes a uma redução de capital, resgate ou recompra de ações, seriam formas possíveis para implementação da dissolução parcial (com devolução de ativos) em favor de determinados acionistas/sócios da holding estrangeira.

Holding no exterior
Para a holding no exterior, a entrega da participação por qualquer das formas descritas acima caracterizaria alienação (em sentido amplo), o que em tese, dependendo de como for implementada, poderia atrair a incidência do IRRF sobre ganho de capital de não residentes.

Investida no Brasil
A transferência do investimento externo direto da holding estrangeira para seus sócios (no Brasil e no exterior), em princípio, não deveria requerer a execução de operações simultâneas de câmbio, o que eliminaria a incidência do imposto sobre operações financeiras na modalidade câmbio (IOF-câmbio).

Pessoas físicas investidoras no Brasil
Para os sócios pessoas físicas (e.g. fundadores) que recebem de volta o investimento na empresa no Brasil, importa saber por que valor deverão registrar o novo ativo (ações ou quotas de sociedade no Brasil) na declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física (DIRPF), e o impacto tributário correspondente, se existente. De acordo com a lei tributária, as devoluções de patrimônio aos sócios podem ser feitas pelo valor contábil, ou pelo valor de mercado dos ativos, caso em que o ganho apurado deve ser tributado pela sociedade, e não pelo sócio (artigo 22 da Lei nº 9.249/95). Assim, houve regulação legal expressa sobre o tratamento tributário da pessoa jurídica que devolve o patrimônio e da pessoa física que recebe ativos avaliados a mercado. Porém, a lei não previu expressamente qual a tributação aplicável à pessoa física que recebe patrimônio devolvido com base no valor contábil, como seria tipicamente o caso do unflip.

Pragmaticamente, a questão que se coloca refere-se ao tratamento tributário de eventual diferença positiva entre o valor contábil proporcional da participação na startup no Brasil (tal como registrado pela holding no exterior) e o custo de aquisição proporcional mantido pelos sócios/acionistas pessoas físicas em suas DIRPF, ou seja, valor contábil superior ao custo de aquisição em DIRPF [1]. Apesar do silêncio da lei, há argumentos para sustentar que o contribuinte poderia receber os bens devolvidos pelo mesmo valor da participação extinta (isto é, o custo histórico), sem disparar tributação imediata sobre aquela diferença positiva.

Desde 1996, a Receita Federal do Brasil editou quase uma dezena de normativos que regularam, na perspectiva do sócio pessoa física, qual o tratamento tributário aplicável quando seu custo de aquisição da participação liquidada é inferior ao valor contábil dos bens e direitos devolvidos em sua substituição. O primeiro deles corrobora a interpretação acima e não foi revogado (Instrução Normativa SRF nº 11/96, artigo 61), dispondo que o contribuinte teria a opção de declarar os bens recebidos pelo mesmo valor da participação extinta (sem tributação) ou pelo valor contábil dos bens recebidos (com tributação do ganho apurado).

Porém, todos os normativos que se seguiram sugerem que os bens substitutos são recebidos pelo valor contábil, sem referência à possibilidade de registro pelo custo histórico, oscilando, em evidentes contradições entre si, entre considerar referida diferença como ganho tributável ou ganho não tributável para a pessoa física que recebe os bens em devolução. Há, como se nota, verdadeira confusão dentro da própria Receita Federal quanto ao tratamento que deve prevalecer no caso em análise. Na jurisprudência administrativa, em acórdão recente (Acórdão nº 2202­004.849, de 04.12.2018), nas razões do voto do conselheiro relator, admitiu-se incidentalmente o tratamento previsto no artigo 61 da Instrução Normativa SRF nº 11/96, para as hipóteses em que custo da participação extinta é inferior ao valor contábil do bem recebido em substituição. No entanto, existem acórdãos com orientação distinta, de modo que a adoção de qualquer tratamento que implique em diferimento da tributação do ganho (com manutenção do custo da participação extinta) ou sua não tributação (com aumento do custo de aquisição da participação recebida) deve ser analisada com cautela levando-se em conta as particularidades de cada caso.

Pessoas jurídicas investidoras brasileiras
Em razão da dissolução, a extinção do investimento na holding no exterior avaliado pelo método da equivalência patrimonial fará com que eventuais valores a título de ágio, deságio, ganho por compra vantajosa, mais ou menos-valia ou ajuste a valor justo reflexo sejam computados na determinação do lucro real e base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL). Note-se que a variação cambial relacionada ao investimento na holding no exterior comporia automaticamente o custo de aquisição deste e não produziria efeitos fiscais no momento da dissolução (artigo 77, Lei nº 12.973/14).

A participação recebida na sociedade no Brasil deverá ser desdobrada em: 1) valor de patrimônio líquido proporcional à participação; 2) mais ou menos valia (diferença entre valor justo dos ativos líquidos da investida na proporção da participação adquirida); e 3) ágio por rentabilidade futura (goodwill  diferença entre custo de aquisição e somatório de 1 e 2) ou ganho por compra vantajosa (excesso de valor justo dos ativos da investida proporcionalmente à participação adquirida em relação ao custo de aquisição do investimento) (artigo 20, Decreto-Lei nº 1.598/77). A conveniência e necessidade (ou não) de entrega da participação direta na sociedade brasileira a possíveis sócios pessoas jurídicas no Brasil deve ser ponderada caso a caso considerando, entre outros, especificidades quanto ao registro do investimento da estrutura no exterior e perspectiva de ocorrência de eventos subsequentes envolvendo esse ativo (e.g. diferentes tipos de evento de liquidez).

Fundos de investimento brasileiros
No caso de fundos de investimento que, pela legislação e regulamento, estejam autorizados a investirem em participações societárias no exterior, ganhos e rendimentos relacionados à movimentação carteira não são tributados enquanto mantidos no patrimônio do fundo (artigo 14, Instrução Normativa RFB nº 1.585, de 2015). A dissolução da estrutura no exterior, assim, deveria ser neutra do ponto de vista fiscal no Brasil, devendo ser confirmada a compatibilidade, sob a perspectiva regulatória, do ativo recebido em substituição (participação em sociedade fechada no Brasil) com a carteira do fundo em questão.

Investidores não residentes
O recebimento por sócios não residentes de participação societária direta na sociedade no Brasil em substituição à participação de que eram titulares na holding no exterior não atrairia efeitos fiscais imediatos no Brasil. Os pontos discutidos acima (na parte relativa aos acionistas pessoas físicas) quanto ao cômputo do custo de aquisição a ser registrado em relação à participação recebida no Brasil se aplicariam de forma semelhante ao investidor não residente.

Comentários finais
O movimento de inversão (flip) não tem um motivador fiscal. Afinal, na melhor das hipóteses, leva a um resultado tributariamente neutro em relação à situação anterior. Circunstâncias que sucedem a inversão podem sugerir ou mesmo demandar sua reversão às condições passadas, ao menos para parte dos sócios/acionistas do negócio. Tratando-se uma jornada que pode ser de ida e volta, é importante que na definição de estratégias para a ida (flip) já sejam previamente acordados, senão abertos, os caminhos de volta, antevendo, na medida do possível, os potenciais efeitos fiscais aplicáveis a cada tipo de investidor.

 


[1] Como o flip ocorre a valor de custo de aquisição registrado em DIRPF dos sócios/acionistas pessoas físicas, além de ser etapa precedente ao ingresso dos investidores não residentes (fundos de venture capital), cujos aportes costumam basear-se em valuation superiores ao custo de aquisição dos fundadores (ou ao valor patrimonial da startup pré aporte — muitas vezes deficitário), é de se esperar que a dissolução ou unflip (evento posterior ao aporte dos investidores de risco) ocorra com base em valor contábil proporcional superior ao custo de aquisição mantido pelos sócios pessoas físicas em suas DIRPF.

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