Opinião

O papel da Suprema Corte dos EUA no 'caso McCulloch versus Maryland'

Autor

21 de maio de 2021, 22h00

A organização política de uma sociedade de massas moderna depende da criação de regras que delimitem o poder de cada autoridade em sua esfera de atuação. Caso contrário, decisões conflitantes sobre o mesmo assunto serão tomadas e os cidadãos ficarão sem saber qual norma devem cumprir.

O "caso McCulloch v. Maryland" é um marco do Direito Constitucional estadunidense e mundial, pois introduziu duas figuras centrais que estão presentes no cotidiano dos tribunais até hoje: a imunidade tributária e a teoria dos poderes implícitos. Ambas foram extremamente importantes para a coordenação das autoridades em um Estado federalista que acabara de nascer, tendo um papel central na estabilização política norte americana após a revolução.

Nos primórdios dos Estados Unidos, o debate público se polarizou entre os federalistas, que defendiam um poder central forte, e os antifederalistas, que sustentavam a necessidade de se conferir maior autonomia aos estados. Nesse contexto, em virtude da instabilidade econômica causada pela guerra, em 1791 é criado o primeiro Banco Nacional, instituição vinculada à União, cuja finalidade era o controle da inflação e o fornecimento de crédito. Entretanto, não constava na Constituição que a União poderia instalar tal banco.

Isto se tornou um problema jurídico e político, pois, na Convenção da Filadélfia (evento no qual foi elaborada a constituição norte americana), muitos estados da então confederação resistiam à criação de um poder central por temer a formação de um centro decisório que estaria distante daqueles submetidos às suas decisões, de forma que um de seus efeitos poderia ser a falta de controle das autoridades federais por parte dos cidadãos.

A solução encontrada foi a enumeração de todas as competências do Congresso Nacional, dispondo-as no artigo I, Seção 8, da Constituição. Assim, seria possível que qualquer pessoa submetida ao poder central conseguisse fiscalizar se sua atuação estaria dentro dos limites definidos pela Lei Maior.

Contudo, o final da seção instituía a cláusula do necessary and proper, segundo a qual o Congresso poderia editar todas as leis que reputasse apropriadas e necessárias ao exercício de seus poderes, do governo federal e dos seus departamentos e funcionários.

A criação do banco foi realizada com base nessa cláusula, alegando as autoridades legislativas que ele seria um meio de exercício das prerrogativas de emissão de moeda e fornecimento de crédito. Formulou-se, portanto, a tese dos poderes implícitos, segundo a qual os órgãos de Estado poderiam utilizar quaisquer meios que entendessem como necessários para o exercício de suas atribuições, observando-se os limites da lei. Seu principal defensor era Alexander Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos e líder dos federalistas nos primórdios da República.

Os antifederalistas se contrapunham a essa tese sustentando que a União só poderia adotar as medidas inequivocamente necessárias para o cumprimento de suas competências. Caso contrário, inflaria seus poderes sem respaldo legal, o que ensejaria a concretização da ditadura temida pelos que se opunham à criação da federação.

O Primeiro Banco Nacional durou de 1791 até 1811, com uma carta de autorização que permitiu sua atuação por 20 anos. Contudo, o Congresso não a renovou e ele foi extinto. Aproveitando o vácuo do mercado, os estados criaram diversos bancos públicos para fortificar sua autonomia administrativa. Entretanto, eles eram extremamente mal regulados e a ausência de regras unificadas nacionalmente ensejou uma atuação descoordenada e desorganizada que tornou o setor bancário norte americano disfuncional.

Porém, os Estados Unidos novamente se envolveram em uma guerra com a Inglaterra, o que causou grande desequilíbrio econômico e descontrole das contas públicas. Nesse contexto, o Congresso aprovou uma nova autorização para que o presidente James Madison fundasse o segundo banco dos Estados Unidos, acarretando a revolta dos poderes locais contra o governo central. As respostas foram múltiplas e diversos estados proibiram que a instituição instalasse filiais em seus territórios. Foi o caso de Indiana e Illinois, por exemplo. Outras unidades federativas adotaram a estratégia de tributar o banco, restringindo sua capacidade financeira de disputar o mercado em suas respectivas regiões.

O estado de Maryland decidiu combinar a tributação com a aplicação de uma penalidade de cem dólares para a emissão das notas que não fossem acompanhadas do pagamento da taxação.

James McCulloch, funcionário da filial do banco no estado, se negou a obedecer tais disposições. Em retaliação, Maryland propôs uma ação de cobrança, que, pelas regras processuais norte americanas, deveria ter como réu o indivíduo que descumpriu a norma, não a instituição financeira enquanto pessoa jurídica.

No judiciário estadual, a resposta foi unânime em todas as instâncias. Os juízes entenderam que McCulloch deveria ter pago os valores cobrados pelo estado, condenando-o mesmo após as suas tentativas de reverter a decisão através de recursos. Utilizando sua última arma processual, o bancário leva o caso até a Suprema Corte, sustentando que as leis que instituíram os tributos e penalidades seriam inconstitucionais, em virtude da cláusula do necessary and proper, que interpretava tal qual os federalistas. O caso concentrou as atenções da opinião pública norte-americana, pois reunia em partes contrárias da ação os representantes das correntes que polarizavam o cenário político da época.

Os antifederalistas argumentavam que toda medida não contida expressamente na lista de competências da União e de seus órgãos seria inconstitucional, apoiando-se nos escritos dos founding fathers. Eles sustentavam que o precedente da criação do primeiro banco em 1791 não se aplicaria ao caso, já que naquela época as circunstâncias econômicas do país impunham uma atitude mais intervencionista do governo, o que não ocorreria no período do segundo banco.

Outro ponto levantado foi o poder de tributar do estado, sem o qual seu funcionamento seria inviabilizado. Alegavam que tal poder seria ilimitado, e não haveria qualquer justificativa para a inaplicabilidade da tributação ao banco, sobretudo porque a União já havia taxado as instituições financeiras estaduais. Portanto, a solução seria a mútua confiança entre os entes federativos, a qual não dependia da inconstitucionalidade dos tributos instituídos.

Em contraponto, os federalistas defendiam, conforme dito anteriormente, que a cláusula do necessary and proper abarcava todos os meios que o Congresso julgasse como necessários e apropriados para o exercício de uma competência. Desse modo, existiriam poderes constitucionais implícitos que incluiriam os instrumentos utilizados para alcançar as finalidades impostas pela Constituição, cuja aptidão para levar aos efeitos desejados não seria passível de julgamento pelo Judiciário.

Além disso, sustentavam que já se encerrara o debate sobre a constitucionalidade da criação do banco, pois sua legitimidade era unânime entre todos os poderes da República. Sobre o poder de tributar dos estados, alegavam que, caso fossem ilimitados, implicariam a capacidade de destruir, comprometendo a potência da União no exercício de suas prerrogativas. Por fim, contestavam o argumento do poder recíproco de tributação, devido ao fato de o poder central representar o povo em sua totalidade, enquanto os estados representavam somente uma parcela dessa unidade.

Chegado o momento do julgamento, o presidente da Suprema Corte, John Marshall, redigiu a decisão do tribunal. Ele é lembrado até hoje como um dos principais magistrados que já passaram pela instituição e foi um dos responsáveis pelo fortalecimento das autoridades centrais em detrimento das locais, possibilitando a formação de um federalismo minimamente funcional nos primórdios dos Estados Unidos.

De início, levantou o consenso formado entre os poderes da República segundo o qual a criação do banco seria constitucional, principalmente porque o Legislativo e o Judiciário se omitiram sobre a questão em ocasiões anteriores, o que implicaria uma concordância implícita com a legitimidade de sua existência.

Posteriormente, explicitou sua visão sobre as instituições políticas norte-americanas, defendendo que a União era um ente superior aos estados, visto que sua criação decorreria da vontade do povo como um todo, enquanto as demais unidades federativas não possuiriam tal privilégio. Portanto, o poder central, não obstante sua atuação somente nas matérias enumeradas pelo texto constitucional, nelas poderia agir livremente, sendo supremo dentro de sua esfera de decisão.

Segundo o magistrado, a Constituição, por sua própria natureza, tem conteúdo aberto, sendo função de seus intérpretes a atribuição de um significado mais preciso às normas instituídas. Portanto, a partir de um texto amplo, as pessoas deveriam deduzir quais são as regras escondidas que se aplicam aos casos concretos, pois, restringindo-se a investigação das disposições constitucionais ao que está expresso e visível, suas aplicações seriam demasiadamente limitadas. Com efeito, acolheu a tese dos poderes implícitos defendida pelos federalistas, impondo uma derrota à corrente contrária.

Quanto ao poder de tributação, expôs que, exercido sem restrições, poderiam atribuir aos estados a capacidade de destruir a própria federação, de forma que a União não poderia ser impedida, retardada ou controlada ao exercer suas prerrogativas. Portanto, fixou-se o princípio da imunidade tributária recíproca, segundo o qual os entes federativos não podem taxar patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros.

O tribunal foi unânime em julgar a causa a favor do réu McCulloch, decretando a constitucionalidade da criação do banco e a inconstitucionalidade dos tributos e penalidades instituídos pelo estado de Maryland. Uma decisão tão consensual não era prevista pela sociedade civil, pois os federalistas não haviam indicado a maioria dos juízes.

O julgamento foi entendido por muitos como um excesso da corte, que teria agido fora de suas competências constitucionais. Parcela significativa da população acreditava que o Judiciário estava usurpando o poder do povo de alterar a constituição, pois estaria criando regras que não estavam contidas em seu texto.

O caso se insere em uma sequência sucessiva de decisões favoráveis à União nos conflitos contra os estados. Os cidadãos que temiam o agigantamento do poder central avaliavam negativamente o papel da corte nesse processo.

Em 1832, o Congresso aprovou novamente a autorização para que o Banco Nacional atuasse. Entretanto, o presidente à época, Andrew Jackson, a vetou, dando fim à instituição. Ao fim e ao cabo, as doutrinas dos poderes implícitos e da imunidade tributária foram o grande legado do caso McCulloch v. Maryland, que é aplicado como precedente judicial até os dias de hoje.

No Brasil, essas teorias têm sido utilizadas pelo Supremo em diversos julgamentos. O mais notório deles foi o proferido no RE 593.727, no qual reconheceu-se que o Ministério Público tem o poder implícito de investigar, já que a constituição lhe confere a competência de atuar como acusador na maioria dos processos criminais. Dessa forma, da finalidade de oferecer a denúncia na ação penal pública, deduziu-se que o órgão poderia valer-se do meio da investigação.

Os Estados Unidos atualmente se encontram no rol de democracias mais estáveis do mundo. Contudo, a construção de suas instituições políticas foi lenta e gradual. No início de sua história, a tensão entre União e estados foi uma constante no debate público, dividido entre aqueles que defendiam o direito de autonomia dos poderes locais e os que sustentavam a necessidade de um governo central forte.

O caso McCulloch v. Maryland foi importante, pois nele a corte forneceu alguns parâmetros para a resolução de tais conflitos, fortalecendo a União no modelo de Estado federal instituído. A doutrina dos poderes implícitos e a teoria da imunidade tributária tornaram-se regras de definição da extensão e dos limites dos poderes conferidos à cada autoridade pela Constituição,

Dessa forma, não obstante a permanência de tais disputas até os tempos atuais, a interação entre os entes federativos passou a ocorrer de modo mais organizado. Ademais, a imposição de limites ao poder de tributar dos estados permitiu que o governo atuasse de maneira funcional, sem que um órgão anulasse as medidas adotadas por outro.

A racionalização da dominação estatal é uma das principais características da modernidade, segundo o sociólogo Max Weber. A consolidação da ideia de supremacia das leis em detrimento da autoridade pessoal implica o fortalecimento do Poder Judiciário. Nos primórdios de sua República, os norte-americanos ainda estavam aprendendo essa lição, e a decisão da Suprema Corte proibindo a tributação estadual do Segundo Banco Nacional gerou enorme desconforto.

Contudo, com a passagem do tempo o tribunal teve seu papel de principal árbitro do jogo federativo reconhecido de maneira quase unânime pela opinião pública. O caso aqui narrado demonstra como as instituições políticas se formam dentro de um processo histórico de longo prazo. Por isso, é necessário que os apreciadores do fenômeno jurídico se atentem para a dinâmica de formação do que hoje aparece como natural, de forma a estudar o passado para construir um melhor Direito no presente e no futuro.

 

Referências bibliográficas
CASAGRANDE, Cássio Luís; BARREIRA, Jônatas Henriques. O caso McCulloch v. Maryland e sua utilização na jurisprudência do STF. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 56, n. 221, p. 247-270, jan./mar. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/56/221/ril_v56_n221_p247

RODRIGUES, Lêda. A Corte Suprema e o Direito constitucional americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. 407 p.

THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Max Weber: o processo de racionalização e o desencantamento do trabalho nas organizações contemporâneas. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro , v. 43, n. 4, p. 897-918, Agosto de 2009 .  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122009000400007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 08 de Maio 2021. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-76122009000400007.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!