Opinião

O compliance na nova Lei de Licitações

Autores

  • Ítalo Augusto Mosimann

    é advogado do escritório ‘Mosimann Horn Advogados Associados’ mestre em Ciência Jurídica pela Universidade de Alicante–Espanha (2019) autor da obra “Segurança Jurídica e os Limites da Intervenção Judicial no Licenciamento Ambiental” (Habitus 2020) procurador-Geral do município de Palhoça Santa Catarina (2013-2016) juiz Substituto do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina–TRE/SC (2017-2019) especialista em Direito Imobiliário pela Universidade do Vale do Itajaí–UNIVALI (2006) especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Pelotas–UFPEL (2003).

  • Bruno Teixeira Peixoto

    é advogado do “Cabanellos Advocacia”. Mestre na área de Direito Internacional e Sustentabilidade pela UFSC e especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Cesuc-SC. Possui formação Executiva em Compliance e Governança no Setor Público pelo Insper e em Compliance Ambiental Social de Governança e de Proteção de Dados pela PUC-RJ. Autor de “Compliance no Direito Ambiental: Licenciamento ESG e regulação” (Fórum 2023).

21 de maio de 2021, 6h34

O artigo 37 da Constituição Federal de 1988 define os princípios estruturantes da Administração Pública no Brasil, cuja observância é dever de toda República, no desempenho das funções típicas (administrar, legislar e julgar) e atípicas, quando exercida a função administrativa, inerente ao funcionamento dos três poderes.

Por outro lado, o avanço da corrupção e da complexidade nas relações político-econômicas da atualidade — efeitos da globalização , somadas à crise de regulação do Estado, está a exigir especial atenção da Administração Pública em relação a tais princípios estruturantes, em especial no tocante à impessoalidade, moralidade e publicidade.

Nesse cenário complexo atual, marcado por intrincadas relações públicas e privadas, consideravelmente agravado com a pandemia da Covid-19, cada vez mais se exige do agente público estrita observação à atuação sem fins pessoais, exigindo-se, igualmente, atos honestos, corretos e justos, como instrumentos para a proteção do interesse e patrimônio públicos.

Para evitar questionamentos futuros e valorizar a segurança jurídica, o Estado, por estar incumbido da proteção do interesse público primário, no momento da verificação da necessidade de celebrar contratos com particulares, como regra, há de priorizar a realização de licitação, dispensando-a somente nos casos previstos em lei [1].

A prevenção de riscos, aliás, é inerente às relações do Estado com particulares, sobretudo na proteção ao erário, cujos relacionamentos necessitam primar pela constante cautela e prevenção a prejuízos potenciais ou iminentes. Daí a importância dos programas de integridade ou compliance, como ferramentas aptas hodiernamente a auxiliar na busca desses objetivos.

Justamente pela relevância, o compliance é considerado item da pauta mundial, conforme posicionamento do Banco Mundial em parceria com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE [2]) e a Organização das Nações Unidas (ONU [3]), corroborando a necessidade de implantação de programas estruturais em instituições públicas e privadas, com o fito de conciliar o desenvolvimento econômico ao cumprimento das leis e a complexidade das relações negociais ao interesse da humanidade.

No Brasil, os programas de integridade ganharam projeção com o advento da Lei Anticorrupção (Lei n° 12.846/2013), que dispõe sobre a responsabilização da pessoa jurídica pública ou privada por atos lesivos à Administração Pública, incluindo condutas no âmbito das licitações e contratos, destacando influências do compliance na responsabilidade perquirida em sua dimensão civil e administrativa.

O Decreto regulamentador n° 8.420/2015, sinteticamente, conceituou o programa de integridade como um conjunto de mecanismos voltados ao cumprimento de leis e normas por uma pessoa jurídica, lançando também os parâmetros obrigatórios para a estruturação do instrumento.

A recentíssima Lei federal n° 14.133, de 1º de abril de 2021, dispondo sobre nova Lei Geral de Licitações Públicas e Contratos Administrativos, então, consolidou sistematicamente os programas de compliance e integridade no âmbito das contratações públicas no Brasil.

Antes presentes em leis estaduais esparsas [4], os programas de compliance e integridade agora ocupam quatro pilares estruturantes na nova Lei Geral de Licitações Públicas e Contratos Administrativos do Brasil: 1) obrigatoriedade para contratações de grande vulto; 2) critério de desempate no julgamento de propostas; 3) atenuante em sanções administrativas; e 4) requisito para reabilitação de contratado perante à Administração Pública.

1) Obrigatoriedade em contratações públicas de grande vulto
O artigo 25, §4º, da Lei federal n° 14.133/2021 (nova Lei Geral de Licitações Públicas), prevê que "nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento".

O artigo 6º, XXII, do mesmo regramento, por sua vez, estabelece que contratos de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto são "aqueles cujo valor estimado supera R$ 200 milhões", exigindo a implantação dos programas de integridade e compliance como verdadeira condição para a manutenção do contrato administrativo celebrado pelo licitante vencedor com a Administração Pública.

Não se trata, portanto, de condição prévia à participação no certame, mas, sim, de verdadeira obrigação a ser concretizada após a assinatura do contrato, não havendo vedação na participação de licitações por eventuais interessados, possuindo ou não programas de compliance.

Verifica-se, pois, que a inovação normativa  exigência de efetiva implantação de programa de integridade e compliance em até seis meses após a celebração do contrato , de viés nitidamente contratual [5], não inviabiliza a participação, em licitações públicas, de organizações que ainda não estruturaram internamente programas de integridade.

A existência de mecanismos de compliance, como visto, não seria uma condição para participação na licitação, a ser conferida na etapa de habilitação, e, sim, uma obrigação contratual (posterior) à licitante vencedora do certame.

2) Critério de desempate no julgamento de propostas
Nos termos do artigo 60 da Lei Federal n° 14.133/2021, um dos critérios de desempate entre duas ou mais propostas será o "desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle".

Trata-se de disposição que visa a fomentar o interesse e o compromisso das organizações no combate a fraude e a estruturação de políticas de integridade no âmbito das contratações públicas no país. Clara evidência da importância que o legislador atribuiu aos mecanismos de controle interno e à necessidade de reforço de valores e padrões éticos nos contratos públicos no Brasil [6].

3) Atenuante em sanções administrativas
A nova Lei Geral de Licitações Públicas e Contratos Administrativos, artigo 156, §1º, V, também prevê que na aplicação das sanções serão consideradas "a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle".

Considerando-se que a sanção de pessoas jurídicas por infrações administrativas é lastreada no jus puniendi estatal [7]  e, por consequência, na culpabilidade do agente mediante aferição da responsabilidade subjetiva , os programas de integridade e compliance, quando efetivamente estruturados [8], consolidam-se como instrumentos capazes de atenuar, ou ao menos influenciar, na comprovação do dever geral de cuidado e diligência por parte da empresa que responde ao processo sancionatório.

4) Reabilitação para contratar novamente com a Administração Pública
Por fim, a nova Lei Geral de Licitações Públicas previu que a implantação/aperfeiçoamento de programas de integridade e compliance servirá como requisito à reabilitação do interessado para contratar novamente com o ente público sancionador.

Nesse sentido, conforme estabelecido no artigo 163, parágrafo único, da Lei Federal n° 14.133/2021, "a sanção pelas infrações previstas nos incisos VIII e XII do caput do artigo 155 desta lei exigirá, como condição de reabilitação do licitante ou contratado, a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade pelo responsável".

Portanto, na hipótese de sancionamento administrativo prévio em razão da apresentação de "declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou [por] prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato" ou pela prática de "ato lesivo previsto no artigo 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013 [Lei Anticorrupção]", indispensável será a implantação efetiva de um programa de integridade e compliance pelo interessado, sem o qual permanecerá impedido de participar de licitações públicas no âmbito da Administração Pública sancionadora.

A implantação de programas de integridade ou compliance, com efeito, resultará em maior segurança jurídica tanto para a empresa contratante como para a própria Administração Pública, atenuando os efeitos perniciosos da ampla discricionariedade conferida aos agentes públicos na falta de parâmetros objetivos de controle [9].

Por todas essas perspectivas, o compliance  representado pelos programas de integridade —, por constituir ferramenta indispensável à prevenção e ao efetivo combate à corrupção em suas diversas modalidades, consolida-se, a partir de modernos preceitos constantes na nova Lei Geral de Licitações Públicas e Contratos Administrativos, como instrumento fundamental à concretização dos princípios insculpidos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, atenuando a insegurança jurídica e a prática de atos de improbidade nas contratações firmadas com a Administração Pública.

 


[1] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 200.

[2] OCDE – Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. Anti-Corruption Ethics compliance Handbook. 2013 Disponível em: https://www.oecd.org/corruption/Anti-CorruptionEthicscomplianceHandbook.pdf Acesso em: 19 abr. 2020.

[3] ONU – Organização das Nações Unidas. An Anti-Corruption Ethics and compliance Programme for Business: A Practical Guide. 2013. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Publications/2013/13-84498_Ebook.pdf> Acesso em: 19 abr. 2020.

[4] Além do Rio de Janeiro e do Distrito Federal, os estados do Espírito Santo (Lei 10.793/2017), Amazonas (Lei 4.730/2018), Rio Grande do Sul (Lei 15.228/2018), Mato Grosso (Lei 10.691/2018), Goiás (Lei 20.489/2019) e Pernambuco (Lei 16.722/2019) já promulgaram leis para exigir o compliance nas contratações públicas, inclusive com Projeto de Lei n° 262/2019, em Santa Catarina.

[5] CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de. Exigência de compliance nas contratações com o poder público é constitucional. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-dez-03/pironti-constitucional-exigir-compliance-contratacoes-publicas> Acesso em: 19 abr. 2021.

[6] SCHRAMM, Fernanda dos Santos. A Exigência de Programa de compliance para as Empresas que Contratam com a Administração Pública: o que determinam as leis do Rio de Janeiro e do Distrito Federal. 2018. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernanda-schramm/a-exigencia-de-programa-de-compliance-para-as-empresas-que-contratam-com-a-administracao-publica-o-que-determinam-as-leis-do-rio-de-janeiro-e-do-distrito-federal> Acesso em: 19 abr. 2021.

[7] OSÓRIO, Fábio Medina. Conceito de sanção administrativa: novos paradigmas. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-administrativo-sancionador/sancao-administrativa-novos-paradigmas-29102020 Acesso em 19 abr. 2021.

[8] Aqui o destaque para a Portaria n° 909/2015 da CGU, que dispõe sobre a avaliação de programas de integridade de pessoas jurídicas. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/34001/8/Portaria909_2015.PDF Acesso em: 19 abr. 2021.

[9] SCHRAMM, op. cit., 2018.

Autores

  • é advogado do escritório ‘Mosimann, Horn Advogados Associados’, mestre em Ciência Jurídica pela Universidade de Alicante–Espanha (2019), autor da obra “Segurança Jurídica e os Limites da Intervenção Judicial no Licenciamento Ambiental” (Habitus, 2020), procurador-Geral do município de Palhoça, Santa Catarina (2013-2016), juiz Substituto do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina–TRE/SC (2017-2019), especialista em Direito Imobiliário pela Universidade do Vale do Itajaí–UNIVALI (2006), especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Pelotas–UFPEL (2003).

  • é advogado do “Cabanellos Advocacia”. Mestre na área de Direito Internacional e Sustentabilidade pela UFSC e especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pelo Cesuc-SC. Possui formação Executiva em Compliance e Governança no Setor Público pelo Insper e em Compliance Ambiental, Social, de Governança e de Proteção de Dados pela PUC-RJ. Autor de “Compliance no Direito Ambiental: Licenciamento, ESG e regulação” (Fórum, 2023).

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