Opinião

O reconhecimento do patrimônio cultural imaterial como competência do Iphan

Autores

  • Vicente de Paula Ataide Junior

    é juiz federal em Curitiba professor da Faculdade de Direito da UFPR nos cursos de graduação mestrado e doutorado professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB doutor e mestre em Direito pela UFPR pós-doutorado em Direito pela UFBA e coordenador do Zoopolis - Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD-UFPR.

  • Giseli Laguardia Cheim

    é advogada animalista especializanda em Direito Animal pela Uninter/Esmafe-PR pesquisadora em Ética Animal pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) coordenadora do Grupo de Extensão em Ética Animal da UFU e educadora animalista e integrante do Programa de Direito Animal da UFPR.

20 de maio de 2021, 18h12

1) Cogitar-se-ia uma lei deferindo um licenciamento ambiental ou registrando uma marca?

Essas hipóteses causam estranheza porque se sabe que a primeira atividade é de competência privativa dos órgãos administrativos ambientais, como o Ibama [1], e a segunda é atribuída ao INPI [2].

Neste pequeno ensaio, demonstraremos que o reconhecimento dos bens que integram o patrimônio cultural imaterial brasileiro também é uma atividade tipicamente administrativa, de competência privativa do Iphan, que realiza o respectivo registro.

2) Segundo o artigo 2º, 1, da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, da Unesco, de 2003, promulgada no Brasil pelo Decreto 5.753/2006, entende-se por patrimônio cultural imaterial: "As práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas — junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados — que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana".

A convenção define como salvaguardas "as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão — essencialmente por meio da educação formal e não-formal — e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos" (artigo 1º, 3).

3) O artigo 216 da Constituição de 1988, por sua vez, faz expressa referência ao patrimônio cultural imaterial, dizendo constituir "patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira" (grifo dos autores).

A Constituição brasileira está alinhada com a Convenção da Unesco quando impõe ao poder público, com a colaboração da comunidade, o dever de promover e proteger "o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação" (artigo 216, § 1º, CF).

Esse dever público, estatal e comunitário, de promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, é distribuído entre as três esferas federativas, uma vez que a Constituição estabeleceu competência material comum entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para "proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos" (artigo 23, III, CF).

Por outro lado, a edição das leis necessárias para viabilizar a "proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico" é de competência concorrente entre a União e os estados (artigo 24, VII, CF).

4) Entre os instrumentos constitucionais de promoção e proteção do patrimônio cultural destacam-se o tombamento (regulado pelo Decreto-Lei 25/1937), para bens culturais materiais, e o registro (regulado pelo Decreto federal 3551/2000), para os bens culturais imateriais.

É quase intuitivo afirmar que, sem reconhecer, não é possível proteger os bens que integram esse patrimônio. O reconhecimento do patrimônio cultural imaterial brasileiro se opera pelo registro.

O registro de um bem imaterial é uma salvaguarda do patrimônio cultural, expressamente acolhida pela Constituição Federal, e se constitui no instrumento pelo qual se reconhece e valoriza o patrimônio imaterial, por meio da identificação e da produção de conhecimento sobre o bem cultural de natureza imaterial "e equivale a documentar, pelos meios técnicos mais adequados, o passado e o presente dessas manifestações, em suas diferentes versões, tornando tais informações amplamente acessíveis ao público" [3].

No plano federal, tal instituto é regulado pelo Decreto federal 3551/2000, o qual instituiu o "Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro" e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.

Nesse decreto, foram estabelecidas quatro categorias ou livros de registros: 1) Livro de registro dos saberes, onde serão inscritos os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades brasileiras; 2) Livro de registro das celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; 3) Livro de registro das formas de expressão, onde serão inscritas as manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e 4) Livro de registro dos lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas (artigo 1º, §1º).

Essa lista de livros de registro não é exaustiva, dado que "outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens culturais de natureza imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se enquadrem nos livros definidos no parágrafo primeiro deste artigo" (artigo 1º, § 3º). A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira (artigo 1º, §2º).

5) Compete ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), autarquia federal criada pelo artigo 46 da Lei 378/1937, receber as propostas de registro, instruí-las, emitir parecer e submetê-las ao seu Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural para deliberação (artigos 3º e 4º, Decreto 3551/2000, e Resolução 1/2006 Iphan). Em caso de aprovação, o bem será inscrito no livro correspondente e receberá o título de Patrimônio Cultural do Brasil (artigo 5º, Decreto 3551/2000).

Como se pode ver, o registro de um bem como patrimônio cultural imaterial brasileiro não é uma escolha política, mas uma atividade vinculada, inerente à Administração Pública federal, constituindo-se em procedimento administrativo técnico de avaliação para a perfeita determinação do que é e do que não é patrimônio cultural imaterial brasileiro, do que deve e do que não deve ser objeto de outras salvaguardas.

Por essa razão é que se pode dizer que o registro dos bens culturais imateriais se situa dentro das atividades tipicamente administrativas, dado que empreende uma investigação concreta, específica e casuística desses bens, o que é incompatível com as características típicas da atividade legislativa (generalidade, abstração e impessoalidade).

Consequentemente, não sendo possível atribuir à lei a tarefa de determinação concreta e específica dos bens que constituem o patrimônio cultural imaterial brasileiro, há verdadeira reserva de administração para tanto, a qual não pode ser violada, sob pena de quebra do princípio constitucional da separação de poderes (artigo 2º, Constituição).

Em outras palavras, o reconhecimento legislativo de um bem como patrimônio cultural imaterial brasileiro é inconstitucional [4].

6) Não é aplicável, para o reconhecimento e registro de bens culturais imateriais, o precedente consubstanciado no AgRg na ACO 1.208, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, no qual se admitiu o tombamento por meio de ato legislativo [5].

A ratio decidendi é diferente.

Esse precedente diz respeito a tombamento de bem cultural material, que implica em restrições à propriedade. O tombamento, ao contrário do registro, é legalmente bifásico, com uma fase provisória e outra definitiva (artigo 10, Decreto-Lei 25/1937). Segundo o ministro Gilmar Mendes, "a fase provisória constitui-se mediante ato de natureza declaratória e ostenta caráter preventivo, de sorte que se consiste em etapa preparatória para sua implementação posterior pelo Poder Executivo, que cientificará o proprietário e dará sequência ao procedimento definitivo, a depender do caso (de ofício, voluntário ou compulsório)", complementando que "é nesse contexto de tombamento provisório que deve ser interpretado o ato legislativo que considera relevante, do ponto de vista histórico ou cultural, determinado bem".

Ao contrário do tombamento, o registro de bem cultural imaterial é unifásico, não havendo uma fase preparatória de caráter provisório, preventivo e declaratório. O registro é definitivo, mesmo em caso de reavaliação posterior do título de "patrimônio cultural brasileiro" (artigo 7º, Decreto 3.551/2000). Essa unicidade procedimental se justifica porquanto, diferentemente do tombamento, o registro não é forma de intervenção na propriedade, sendo desnecessária a "notificação do proprietário" (cf. artigos 9º e 10, Decreto-Lei 25/1937).

Considerando esses aspectos, uma lei que reconhecesse determinado bem imaterial como patrimônio cultural seria constitutiva e definitiva, dada a inexistência da sucessão das fases provisória e definitiva, o que representaria usurpação inconstitucional da competência executiva para reconhecer, por meio do procedimento administrativo de registro, os bens integrantes do patrimônio cultural imaterial do Brasil.

A maior evidência dessa usurpação é a impossibilidade para o Iphan (detentor da competência material, no âmbito federal) revogar ou tornar sem efeito a lei que operou o reconhecimento, especialmente se negasse o registro do mesmo bem imaterial como patrimônio cultural brasileiro. Seria mesmo uma subversão da hierarquia normativa permitir que uma deliberação administrativa tivesse o efeito de revogar uma lei, ainda que esta fosse entendida como "de efeitos concretos" ou "materialmente administrativa" [6].

7) Poder-se-ia objetar que o reconhecimento legislativo de um bem imaterial como patrimônio cultural brasileiro se consubstanciaria em um instrumento atípico de salvaguarda, na forma da parte final do §1º do artigo 216 da Constituição ("outras formas de acautelamento e preservação").

Essa interpretação não é possível. Não se pode simplesmente desconsiderar o princípio da separação dos poderes, cláusula pétrea da Constituição brasileira (artigo 60, §4º, III), dotando o Poder Legislativo de uma atividade que não lhe compete, agindo em casos concretos, coarctando a atividade executiva. Além disso, qualquer medida atípica precisa guardar proporcionalidade com os propósitos preconizados pela norma constitucional, o que não se dá na hipótese, dada a evidente falta de adequação técnica para definir o que é um bem cultural imaterial, com o risco de banalização do reconhecimento de bens ou atividades como patrimônio cultural imaterial brasileiro e de instrumentalização de tal iniciativa como forma de atender a outros propósitos (políticos e econômicos, por exemplo), que não sejam condizentes à finalidade de salvaguarda do patrimônio cultural.

Dois casos servem de ilustração dessas distorções no reconhecimento legislativo de atividades como bens culturais imateriais.

O caso mais marcante é o da Lei 13.873/2019, que alterou a Lei 13.364/2016, para reconhecer "o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas", como manifestações culturais nacionais e "elevados à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro, enquanto atividades intrinsecamente ligadas à vida, à identidade, à ação e à memória de grupos formadores da sociedade brasileira".

O propósito dessa lei foi o de produzir efeito backlash à decisão do STF na ADI 4983 (2016), pela qual a vaquejada foi considerada inconstitucional, por violar a regra da proibição da crueldade contra animais (artigo 225, §1º, VII, CF) [7].

A finalidade da lei não foi de salvaguardar o patrimônio cultural brasileiro, mas de blindar certas atividades (vaquejada, rodeio, laço), altamente lucrativas, porém manifestamente inconstitucionais e proibidas.

Em outro caso, o PL 318/2021, de autoria do deputado federal Paulo Bengtson (PTB-PA), protocolado na Câmara dos Deputados no dia 8/2/2021, pretende reconhecer a criação de animais como patrimônio cultural imaterial do Brasil.

Mais uma vez, o propósito da iniciativa legislativa não é de salvaguardar o patrimônio cultural brasileiro, mas de imunizar a atividade, também assaz lucrativa, de criação de animais contra as resistências e proibições decorrentes da sua consideração como prática cruel.

A ideia por trás desse PL é tentar enquadrar a criação de animais no §7º do artigo 225 Constituição, incluído pela EC 96/2017, pela qual "não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do artigo 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos".

Esses desvios de finalidade no reconhecimento legislativo de bens culturais imateriais banalizam e enfraquecem a proteção do patrimônio cultural brasileiro.

8) Por todas essas razões é que a determinação do patrimônio cultural imaterial brasileiro não pode ser realizada pelo processo legislativo. Não cabe à lei, nem ao Poder Legislativo, definir o que é e o que não é bem cultural imaterial. Trata-se de ato administrativo, realizado, privativamente, pelo Iphan.

 


[1] Cf. Lei Complementar 140/2011.

[2] Cf. Leis 9.279/1996 e 5.648/1970.

[3] SANTA’ANNA, Márcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 55.

[4] Em relação ao tombamento, há precedente do STF nesse sentido: Pleno, ADI 1706, Rel. Min. EROS GRAU, julgado em 09/04/2008, publicado em 12/9/2008.

[5] STF, Pleno, ACO 1208 AgR, Rel. Min. GILMAR MENDES, julgado em 24/11/2017, publicado em 04/12/2017.

[6] "Essa equiparação da lei de efeito concreto com os atos administrativos só tem um ponto de contato, qual seja o de que materialmente ela tem natureza administrativa. Mas a lei de efeito concreto tem uma eminência e uma eficácia que a distancia do simples ato administrativo. O efeito deste é também puramente administrativo, já o efeito da lei, ainda que concreto, não é administrativo, tanto que não pode ser desfeito por ato dessa natureza, e porque, especialmente, a lei de efeito concreto inova a ordem jurídica, o ato administra não." (SILVA, José Afonso. Lei e ato normativo. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, v. 30, n. 3/4, p. 67-70, mar./abr. 2018).

[7] STF, Pleno, ADI 4983, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 6/10/2016, publicado em 27/4/2017.

Autores

  • é juiz federal em Curitiba, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor permanente do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da UFPR, doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR e líder do ZOOPOLIS – Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGD da UFPR.

  • é advogada animalista, especializanda em Direito Animal pela Uninter/Esmafe-PR, pesquisadora em Ética Animal pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), coordenadora do Grupo de Extensão em Ética Animal da UFU e educadora animalista e integrante do Programa de Direito Animal da UFPR.

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