Opinião

Serendipidade: o encontro fortuito de prova

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

20 de maio de 2021, 9h13

Serendipidade é o encontro fortuito de prova relacionada a fato diverso daquele que está sendo investigado. Doutrinariamente, é também denominada de crime achado e consiste na obtenção casual de elemento probatório de um crime no curso da investigação de outro. A origem do nome remonta à tradução literal da palavra serendipity, termo criado em 1754 pelo escritor inglês Horace Walpole, em alusão ao conto persa "Os três príncipes de Serendip", no qual várias descobertas inesperadas ocorriam no decorrer da estória.

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É o caso, por exemplo, da regular interceptação telefônica em tráfico de drogas, na qual se descobrem aleatoriamente evidências de um homicídio, ou do encontro casual de dinheiro contrafeito no cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar de arma de fogo de calibre proibido.

Sobre o tema, existem duas posições na doutrina:

1) Serendipidade de primeiro grau: exige nexo causal em relação ao crime investigado originariamente, como, por exemplo, a localização do cadáver ocultado, durante a apuração do respectivo homicídio;

2) Serendipidade de segundo grau: a prova descoberta fortuitamente será válida, independentemente de existir ou não conexão com o fato originalmente apurado. Nesse sentido, seria lícita a prova de roubo colhida fortuitamente em uma interceptação telefônica para investigação de estupro.

A primeira posição argumenta pela ausência de autorização judicial específica para restrição de garantia constitucional no caso da nova infração descoberta, que era desconhecida da autoridade. A ordem judicial autorizando a interceptação telefônica ou a busca e apreensão, por exemplo, estava relacionada a outro crime, de modo que qualquer outra prova relacionada a fato diverso considera-se obtida sem respaldo legal. É que o juiz só havia autorizado a medida invasiva ou restritiva para o delito originário. Trata-se de delimitar o âmbito de abrangência da constrição concedida, não sendo possível ampliar a interpretação quando se trata de garantia constitucional, nem tampouco admitir violação de direito constitucional, sem prévio conhecimento e autorização por parte do Poder Judiciário.

Ao cumprir mandado de busca e apreensão na residência do investigado, rompe-se a garantia fundamental da inviolabilidade domiciliar (CF, artigo 5º, XI). De igual forma, na interceptação telefônica avilta-se a proteção constitucional da inviolabilidade do sigilo de comunicação interpessoal (CF, artigo 5º, XII). Por essa razão, a utilização da prova fortuita deve necessariamente guardar nexo de pertinência lógica com o fato originalmente investigado, sob pena de excederem-se os limites constitucionais (odiosa restringenda, favorabilia amplianda).

Sustentando tal posição, Aury Lopes Jr. argumenta: "Em que pese a maior parte da doutrina que trata do tema admitir que a prova obtida (mediante desvio causal) seja o starter de uma nova investigação, há que se ponderar o seguinte: se usarmos a prova obtida com desvio causal, ainda que a título de conhecimento fortuito, estaremos utilizando uma prova ilícita derivada. Isso gera um paradoxo insuperável: a prova ilícita (despida de valor probatório, portanto) em um processo, mas vale (ria) como notícia-crime em outro… Ora, partindo do Princípio da Legalidade, a investigação tem que se iniciar a partir de prova lícita e não de uma prova ilícita, sob pena de contaminarmos todos os atos praticados na continuação" [1].

A segunda corrente defende que o processo penal é informado pelo princípio da verdade real e da livre apreciação da prova pelo juiz (CPP, artigo 155, caput, primeira parte). Estando autorizada a diligência investigatória pelo juiz dentro das hipóteses legais, todo o acervo probatório encontrado é válido, não se podendo argumentar que as garantias constitucionais foram violadas pela descoberta de mais evidências do que as que a autoridade imaginava encontrar, ainda que referentes a outro delito.

Atualmente, está sendo construída uma interpretação intermediária, a qual leva em consideração o momento de sua obtenção. Desse modo, se o encontro da nova evidência ocorrer antes do encontro da prova relacionada ao crime originalmente investigado, a prova será válida, independentemente de se tratar de delito diverso. No entanto, se a obtenção da prova casual ocorrer depois de obtido o encontro e satisfeito o objeto da diligência, a prova será nula, uma vez que, atingido o objetivo indicado no mandado, a busca deve ser imediatamente suspensa.

Adotamos a segunda posição. Descoberta a nova prova durante a diligência investigatória regularmente autorizada por ordem judicial, esta poderá ser aproveitada independentemente de existir ou não nexo de causalidade com o crime originalmente investigado, e mesmo que obtida após o atingimento da finalidade contida na ordem judicial.

Do mesmo entendimento comunga Eugênio Pacelli: "Ora, não é a conexão que justifica a licitude da prova. O fato, de todo relevante, é que, uma vez franqueada a violação dos direitos à privacidade e à intimidade dos moradores da residência, não haveria razão alguma para a recusa de provas de quaisquer outros delitos, punidos ou não com reclusão" [2].

Em recente acórdão acerca do tema, assim decidiu o STJ: "É legítima a utilização de informações obtidas em interceptação telefônica para apurar conduta diversa daquela que originou a quebra de sigilo, desde que por meio dela se tenha descoberto fortuitamente a prática de outros delitos. Caso contrário, significaria a inversão do próprio sistema" [3].

O mesmo entendimento se solidificou no STF: "Nas interceptações telefônicas validamente determinadas é passível a ocorrência da serendipidade, pela qual, de forma fortuita, são descobertos delitos que não eram objetos da investigação originária. Precedentes: HC 106.152, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 24/05/2016 e HC 128.102, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 23/06/2016" [4].

Atualmente, a Suprema Corte também acompanha esse entendimento, sustentando que o encontro fortuito de provas não necessariamente precisa guardar relação com o crime originalmente investigado: "O Colegiado afirmou que a hipótese dos autos é de crime achado, ou seja, infração penal desconhecida e não investigada até o momento em que se descobre o delito. A interceptação telefônica, apesar de investigar tráfico de drogas, acabou por revelar crime de homicídio. Assentou que, presentes os requisitos constitucionais e legais, a prova deve ser considerada lícita. Ressaltou, ainda, que a interceptação telefônica foi autorizada pela justiça, o crime é apenado com reclusão e inexistiu o desvio de finalidade" [5].

A exigência de nexo causal entre o crime original e a nova infração descoberta, com a rejeição pura e simples da prova fortuitamente encontrada, viola o princípio da proporcionalidade por exigir da autoridade investigante um conhecimento prévio que ela não tem condições de possuir. Além disso, haveria proteção deficiente do bem jurídico em relação ao novo delito trazido à luz pelas provas fortuitamente encontradas, pois ignorar sua existência mesmo tendo sua descoberta ocorrido em diligência regulamente autorizada pela Justiça, seria abraçar injustificadamente a impunidade.

 


[1] Direito Processual Penal, 18ª edição, ed. SaraivaJur, 2021, p. 439.

[2] Curso de Processo Penal, 25ª edição. Atlas, 2021, p. 287;

[3] STJ; HC 187189/SP 2010/0185709-1, Rel. Min. Og Fernandes, 6ª Turma, j. 13/08/2013, DJE 23/08/2013.

[4] STF; HC 137438; 1ª Turma; Rel. Min. Luiz Fux; DJE 20/06/2017.

[5] STF, Informativo 869 – HC 129678, j. 13/06/2017.

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