Opinião

Apenas algumas questões quanto à chamada reforma administrativa

Autor

19 de maio de 2021, 18h43

Segundo os termos da exposição de motivos da PEC 32/2020, oriunda do Poder Executivo e conhecida como PEC da Reforma Administrativa, ela teria "três grandes orientações: 1) modernizar o Estado, conferindo maior dinamicidade, racionalidade e eficiência à sua atuação; 2) aproximar o serviço público brasileiro da realidade do país; e 3) garantir condições orçamentárias e financeiras para a existência do Estado e para a prestação de serviços públicos de qualidade" (p. 13).

Sigamos as "três grandes orientações" da PEC para verificarmos se seu texto é idôneo para atingir as pretensões enunciadas na exposição de motivos, muitas delas nobres, diga-se de passagem.

Vamos traduzir inicialmente a primeira "grande orientação": a de modernizar o Estado. Modernizar deve significar adaptar o Estado às exigências de nosso tempo. Tornar o Estado dinâmico é permitir que ele possa se adaptar facilmente às constantes mudanças conforme as demandas sociais. A racionalidade nada mais é do que adotar meios adequados aos fins buscados, com emprego da razão e da ciência na solução dos problemas. Buscar eficiência é buscar produzir o máximo de resultados no menor tempo, com a maior qualidade e com o mínimo de recursos, uma vez que estes são escassos.

Ora, mas se a estrutura estatal tende a ser estática, quem é o responsável por editar as normas que a mudam e, portanto, trazem dinamismo ao Estado? Se o Estado não é racional, quem determinaria o fim a ser perseguido? Enfim, os objetivos buscados dependem do servidor público subalterno, que não tem autoridade alguma, ou dos ocupantes dos mais altos cargos de natureza gerencial?

Aliás, já que foram mencionados os altos cargos, é interessante um breve paralelo entre esses cargos que possuem autoridade e os demais, no que diz respeito às condições de acesso e desligamento.

Nota-se na PEC 32/2020 que os cargos em comissão e as funções de confiança serão substituídos pelos cargos de liderança e assessoramento. Para eles, foi previsto um regime jurídico a ser estabelecido no âmbito de cada ente federativo, o que parece remeter à necessidade de mera lei ordinária. Porém, há dispositivo dessa mesma PEC exigindo lei complementar para trazer as regras de ocupação desses cargos. E para completar a confusão, há dispositivo determinando que "ato do Chefe de cada Poder disporá sobre os critérios mínimos de acesso aos cargos de liderança e assessoramento (…) e sobre a sua exoneração". Fato é que, até que o ato necessário à regulamentação seja editado, continuará a ampla liberdade da autoridade superior para a nomeação e exoneração de seus ocupantes.

Enquanto houver cargos com "livre" nomeação, sem critério algum, a tendência será a profissionalização do serviço público ou o aparelhamento partidário e ideológico?

Não seria cabível aproveitar, por exemplo, as exigências aplicáveis para as contratações por inexigibilidade e licitação? Nessas contratações o gestor deve ao menos demonstrar a inviabilidade de competição e que o escolhido é o melhor para atender o interesse público no caso concreto.

Enquanto isso, para os demais cargos, a PEC ao menos manteve a exigência do concurso público. Criou-se, contudo, a figura do "vínculo de experiência", de passagem obrigatória para os servidores que tenham prestado concurso para ocupar cargos com vínculo de tempo indeterminado e para os cargos típicos de Estado. Essa figura irá substituir o período de estágio probatório.

Mas como conciliar a natureza precária do vínculo de experiência com as exigências de independência demandadas para cargos com funções decisórias, como é o caso dos cargos típicos de Estado?

Se a ideia da PEC é que haja uma constante averiguação do desempenho dos ocupantes dos cargos públicos, fato que já flexibiliza a estabilidade, para que haver um período de avaliação ainda mais precário?

Seria para que os gestores responsáveis não tivessem que respeitar o devido processo para apuração adequada da conduta de seus subordinados, seja para verificar seu desempenho, seja para punir suas infrações disciplinares?

Não se pode alegar que haja dificuldades para dispensar os eventuais maus servidores públicos, uma vez que deve ser adotado o procedimento correto e não o mais fácil. Basta ver exemplo recente em que a Controladoria-Geral da União conseguiu promover o desligamento de mais de 500 servidores por ilícitos cometidos [1].

A existência excepcional de maus servidores públicos nos quadros da Administração Pública é causada pela estrutura atual do ordenamento jurídico ou porque os gestores, responsáveis por fiscalizar o serviço e a conduta desses servidores públicos, não apuram suas infrações e não aplicam as normas vigentes?

A precarização do vínculo com o cargo público não ocorre apenas por meio do vínculo de experiência, mas também porque a PEC nitidamente enfraquece o instituto da estabilidade em pelo menos dois pontos.

Em primeiro lugar, onde a Constituição permitia que o servidor estável perdesse o cargo por sentença judicial transitada em julgado, a PEC inclui a hipótese de perda por mera decisão judicial de colegiado. Essa alteração amplia a possibilidade de se criar situações de insegurança jurídica, uma vez que sem o trânsito em julgado o servidor eventualmente dispensado pode voltar a seu cargo em caso de modificação da decisão. Ocorre que a PEC não esclarece como tratar o período em que o servidor ficou indevidamente sem trabalhar e sem receber.

Em segundo lugar, a avaliação de desempenho dos servidores estáveis, que exigia regulamentação por lei complementar, passa a depender de mera lei ordinária. A seriedade desse tema não exigiria um procedimento mais rigoroso para sua aprovação?

Não se pode deixar de mencionar que a estabilidade também é instituto complementar à exigência de concurso público para garantia da qualificação e profissionalização do serviço público. É que, sem a estabilidade, os gestores desonestos poderiam dispensar todos os candidatos selecionados no concurso até chegar na classificação de eventual apadrinhado menos qualificado.

Para resumir o cenário relativo à primeira "grande orientação" da PEC, os cargos de liderança e assessoramento, que deveriam ser ocupados pelos melhores gestores e servir de exemplo para toda a Administração, não possuem critérios de avaliação de desempenho e não dependem de nenhuma exigência de capacitação técnica para serem ocupados. Por outro lado, se esses mesmos cargos de liderança e assessoramento forem ocupados por incapazes, não haverá instrumento para removê-los.

Com isso, enquanto a causa do problema parece estar na cúpula, a PEC 32/2020 busca atacá-lo precarizando o vínculo estatutário da base, de certo modo aproximando a forma de desligamento dos cargos públicos à dos empregos privados. A intenção seria permitir a implantação da dispensa sem justa causa da CLT no serviço público?

E essa aproximação do público com o privado tem ligação com a segunda "grande orientação" da PEC 32/2020, que parte de uma generalização inapropriada. Para resumir, tomemos as três grandes distorções apontadas pela justificativa da PEC: "1) férias em período superior a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano; 2) aumento de remuneração ou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos; e 3) aposentadoria compulsória como modalidade de punição".

Por ignorância nossa, as únicas normas que conhecemos que trazem previsão de férias de sessenta dias são o artigo 66 da Lei Complementar nº 35, de 14/3/1979, que trata dos magistrados, e o artigo 220 da Lei Complementar nº 75, de 20/5/1993, que trata dos membros do Ministério Público da União.

Quanto à aposentadoria compulsória como punição, da mesma forma, conhecemos apenas a norma do artigo 56 da Lei Complementar nº 35, de 1979, também restrita a magistrados.

O pagamento de remuneração ou indenização com efeito retroativo parece ser ainda mais difícil de encontrar no ordenamento. Há, sim, algumas notícias, por exemplo, envolvendo auxílio-moradia a magistrados e membros do Ministério Público, não necessariamente de forma retroativa [2]. Recentemente, é bom ressaltar, CNJ [3] e CNMP [4] consideraram indevida essa prática.

O fato é que, na União pelo menos, os servidores públicos em geral não possuem nenhum desses três benefícios, como se pode ver na Lei nº 8.112, de 11/12/1990.

Então a dita reforma irá corrigir essas alegadas distorções dos magistrados e membros do Ministério Público, não é? Não! Conforme fica claro no parecer do relator Darci de Matos [5]:

"Em relação à ausência dos membros do Poder Executivo, Legislativo, Judiciário e dos Militares, a omissão da proposta em nada viola o artigo 60, IV, da Constituição Federal de 1988, pois, além da diversidade jurídica dos regimes aplicáveis a cada segmento referido, já admitidos pela Carta Magna, competirá a Comissão Especial debater o tema, sugerindo eventuais emendas à Proposta de Emenda à Constituição" (destaque do original).

Se a premissa das distorções é tão alardeada para colocar a opinião pública a favor da PEC 32/2020, não poderiam ao menos indicar quantas e quais são as carreiras de servidores públicos que possuem esses benefícios e que serão afetadas pela reforma, bem como os valores envolvidos e a proporção deles em relação com o total dos gastos com pessoal?

Em suma, se a PEC 32/2020 elenca situações que considera como distorções, por que não as corrige?

Passando à última "grande orientação", ela objetiva garantir recursos financeiros para a sustentabilidade do Estado e dos serviços públicos.

A questão financeira, de forma geral, precisa ter dois enfoques: o do gasto e o da receita.

Quanto ao gasto, em primeiro lugar a sociedade precisa decidir se quer profissionais qualificados ou medíocres. Se preferir os mais qualificados, será necessário pagar o preço que atraia esses profissionais. Se pagar menos do que o mercado, esses profissionais preferirão a iniciativa privada.

E não basta uma remuneração adequada e digna. A deterioração das garantias institucionais dos servidores públicos terá o efeito de tornar o Estado mais moderno e apto a atender os interesses da população ou irá recrudescer o "apagão das canetas" e o cenário do "Direito Administrativo do medo" [6]? A ausência de autonomia e de proteção do servidor público irá torná-lo mais apto a atender as demandas legítimas do cidadão ou irá fazer as dúvidas levarem à negativa das pretensões como forma de evitar responsabilização?

Aqui poderão dizer: tudo bem, a população quer servidores qualificados, com remuneração compatível com essa qualificação, e que possam ser imparciais e independentes em sua atuação. Mas como a população brasileira é pobre em sua maioria, como irá pagar por isso?

Entra em cena o enfoque da receita. Se por um lado é necessário que o Estado demonstre que faz uso eficiente dos recursos públicos, ou seja, que faz o melhor possível com os meios de que dispõe, por outro lado, uma vez esgotados os recursos, é necessário buscar novas receitas, caso a população queira mais e melhores serviços.

Essas novas receitas não necessariamente implicarão majoração da carga tributária. Não seria suficiente uma reforma que tornasse a tributação mais justa, mais eficiente e menos regressiva [7]? Por que os contribuintes com menor capacidade contributiva pagam o mesmo valor de imposto que aqueles com maior capacidade contributiva quando compram seus alimentos? É realmente necessário que lucros e dividendos sejam isentos para estimular a atividade empresarial [8]? O que fazer com a sonegação fiscal?

E se tributar é ruim, por que não permitir que o Estado obtenha recursos por meio do exercício de atividade econômica? Afinal, não é melhor obter recursos trabalhando em vez de tributando [9]?

Mas como tributar é algo que demanda um custo político por desagradar à população e como o STF não permitiu a tentativa de redução da remuneração dos servidores públicos [10], teria a PEC 32/2020 buscado uma forma de reduzir a despesa por meio da facilitação do desligamento dos servidores públicos?

Finalmente, é importante ressaltar que a alegação de que o Estado precisa ser reduzido somente tem sentido se se demonstrar que há algum excesso. Sem critério, não é possível afirmar que o Estado é grande ou pequeno. O que deve ser analisado é se o tamanho do Estado é compatível ou não com o atendimento das demandas que seu povo lhe impõe.

Exceto pelos entusiastas da extinção completa do Estado, todos querem uma Administração eficiente, justa, moderna e dinâmica. O desafio é: como atingir esses objetivos? Quais os meios adequados? São questões nitidamente políticas. E é no campo político que precisarão ser discutidas com profundidade e transparência.

* O autor agradece o amigo Pablo Bezerra Luciano pela gentileza da leitura e das considerações feitas. São de responsabilidade exclusiva do autor as imperfeições que permanecem no texto, que reflete posição pessoal do autor e não tem nenhuma relação com as instituições com as quais mantêm vínculos.

 


[6] SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo. São Paulo: RT, 2020.

[7] PSCHEIDT, Kristian Rodrigo. Sistema tributário nacional: justiça fiscal e comportamental: Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2018. SARAI, Leandro. Uma reforma Tributária para a crise e para o futuro. Jota. 1º maio 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/uma-reforma-tributaria-para-a-crise-e-para-o-futuro-01052020 Acesso em: 14 maio 2021.

[8] Cf., por exemplo, o artigo 35 do Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018.

[9] SARAI, Leandro. Ainda uma reflexão sobre serviço público e atividade econômica. BDA (São Paulo), v. 7, p. 13, 2013. Também disponível em: https://jus.com.br/artigos/26688/mais-uma-reflexao-sobre-atividade-economica-e-servico-publico

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito Político, advogado público federal e representante da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais no Estado de São Paulo.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!