Opinião

Improbidade administrativa: um overrulling sobre a competência federal

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19 de maio de 2021, 7h12

Recentemente, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu à unanimidade acórdão estabelecendo que a Justiça federal não é competente para processar e julgar ação apenas porque a demanda foi proposta pelo Ministério Público Federal [1].

Até então, entendia o tribunal que o simples fato de o Ministério Público Federal ajuizar a demanda significava, automaticamente, que existia naquele caso o interesse da União e, por via de consequência, fixava-se a competência do juiz federal para julgar a causa.

Essa interpretação colocava a jurisprudência da corte em posição destoante da boa técnica jurídica, pois identificava o representante (Ministério Público Federal) com o interesse representado (interesse da pessoa do ente federado lesada pela conduta reprimida), adotando-se uma lógica invertida, na qual o Parquet autor da demanda se fundia com o direito ou interesse a ser protegido e, em última análise, autorizava o MPF a defender interesses que não os da União.

A hipótese fática em julgamento foi a seguinte: determinado estado recebeu verba da União (Ministério do Turismo) e o acusado, na qualidade de servidor estadual responsável pela licitação para aquisição de serviços com aquela verba, teria cometido ato de improbidade consistente em dispensa indevida de licitação. Ocorreu que a União não sofreu prejuízo, pois o estado lhe devolveu integralmente a verba. Entretanto, o Ministério Público Federal insistia na ação perante a Justiça federal em Pernambuco (JFPE), buscando a condenação do funcionário estadual pela violação de princípios da Administração Pública.

A turma rejeitou a tese do MPF, pois considerou que, como a União, por meio da Advocacia-Geral, não havia manifestado interesse na causa, pois, afinal, inexistiu lesão ao erário federal, falecia competência à Justiça federal para processar e julgar a ação, ainda que o seu autor fosse o Ministério Público Federal. Nas palavras do relator: "calha acrescentar que, diferentemente do que defende o Parquet federal, ainda que os atos de improbidade administrativa previstos no artigo 11 da Lei 8.429/1992 tenham natureza autônoma em relação àqueles elencados nos artigos 9º e 10 do mesmo diploma legal, não há se falar em interesse remanescente da União no feito, tendo em vista ser incontroverso que a eventual ofensa a princípios da Administração Pública, se ocorrida, vincula-se ao suposto desrespeito às regras de processo licitatório realizado no âmbito da Administração Pública do estado de Pernambuco".

Em seu voto, o relator destaca que o STJ entendera em julgados anteriores que a simples presença do MPF na causa seria suficiente para atrair a competência da Justiça federal, como, segue o ministro, pode se verificar do AgRg nos EREsp 1.249.118/ES, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Corte Especial, DJe 19/4/2017, e do REsp 1.513.925/BA, relator ministro Herman Benjamin, 2° Turma, DJe 13/9/2017. Inclusive, em relação a este último, encontramos bem explícito na ementa o posicionamento de então, o qual, segundo o relator, foi superado:

"(…) 1  Na origem, trata-se de Ação de Improbidade Administrativa ajuizada pelo Ministério Público Federal contra ex-prefeito municipal, funcionário público e particular em razão de alegadas irregularidades na gestão de recursos transferidos pelo Fundo Nacional de Educação, à conta do Programa Nacional de Alimentação Escolar nos exercícios de 1997 a 2000.
O AJUIZAMENTO DE AÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL POR SI SÓ ATRAI A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL, PODENDO-SE COGITAR APENAS DE EVENTUAL FALTA DE ATRIBUIÇÃO DO PARQUET FEDERAL 2 
 Sendo o Ministério Público Federal órgão da União, qualquer ação por ele ajuizada será da competência da Justiça Federal, por aplicação direta do artigo 109, I, da Constituição. Todavia, a presença do MPF no polo ativo é insuficiente para assegurar que o processo receba sentença de mérito na Justiça Federal, pois, se não existir atribuição do Parquet federal, o processo deverá ser extinto sem julgamento do mérito por ilegitimidade ativa ou, vislumbrando-se a legitimidade do Ministério Público Estadual, ser remetido a Justiça Estadual para que ali prossiga com a substituição do MPF pelo MPE, o que se mostra viável diante do princípio constitucional da unidade do Ministério Público (…)". 

Apreciando esses precedentes, o relator assegurou que "tais julgados não mais refletem o posicionamento deste Superior Tribunal acerca da referida questão sub judice, pois hodiernamente prevalece a compreensão no sentido de que o simples fato de a ação de improbidade administrativa ter sido ajuizada pelo Ministério Público Federal não atrai, automaticamente, a competência da Justiça Federal, haja vista que esta deve ser examinada à luz do que dispõe o artigo 109, I, da Constituição Federal".

Destacando o overrulling ocorrido [2], temos, na própria ementa do acórdão objeto deste artigo:

"2  Hodiernamente prevalece a compreensão no sentido de que o simples fato de a ação de improbidade administrativa ter sido ajuizada pelo Ministério Público Federal não atrai, automaticamente, a competência da Justiça Federal, pois esta deve ser examinada à luz do que dispõe o artigo 109, I, da Constituição Federal.
 A Primeira Seção desta Corte firmou o entendimento de que, 'nos termos do artigo 109, I, da CF, a competência da Justiça Federal é ratione personae', de modo que 'a fixação da competência em favor da Justiça Federal ocorre apenas nas causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes (CF, artigo 109, I)" (AgInt no CC 168.577/TO, relator ministro Francisco Falcão, 1° Seção, DJe 4/6/2020).

Portanto, parece-me não constituir heresia concluir que, pelo menos no âmbito da 1ª Turma do STJ, foi superado o posicionamento anterior e, com isso, consagrado o entendimento de que a competência da Justiça federal não se fixa com base na natureza do órgão representante (o Ministério Público Federal), mas, sim, no interesse ou direito representado.

  


[1] AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1625401 – PE (2016/0199607-7), publicado em 26/04/2021, relator ministro Sérgio Kukina.

[2] Emprego este termo porque, embora os precedentes superados não fossem normativos-vinculantes (artigo 927 do CPC), detinham tamanha força que invariavelmente eram adotados até então pelas Turmas do STJ e pelos Tribunais inferiores.

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