Trabalho Contemporâneo

Remuneração da gestante durante a pandemia: de quem é este filho?

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18 de maio de 2021, 8h00

A nova Lei 14.151, publicada em 13 de maio de 2021 e com vigência imediata, determina o afastamento das empregadas gestantes do trabalho presencial durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus, colocando-as à disposição do empregador para, em domicílio, empreender teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância.

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O objetivo da lei é evidente: reduzir a possibilidade de contaminação das gestantes, grupo de risco como evidenciado pelas estatísticas, preservando sua renda integral. Tanto que o legislador, ainda que de forma simplista, criou a regra para que a gestante pudesse deixar de conviver com outras pessoas no ambiente de trabalho e, além disso, permanecer em seu domicílio (residência), sem deslocamentos desnecessários.

Existem alguns questionamentos acerca na nova legislação, principalmente sobre a fonte de custeio para manutenção do salário, pois não há previsão legal de nenhum benefício previdenciário ou assistencial, enquadramento do fato como incapacidade para o trabalho ou algo similar, o que faz recair, em princípio, sobre o empregador, este custo social.

Se a gestante puder ficar em domicílio trabalhando, menos mal. Mantém-se o equilíbrio contratual.  Agora, se a atividade da empregada não for compatível com trabalho em seu domicílio, parece injusto exigir esse ônus do empregador num dos piores cenários econômicos experimentados pelo mundo.

E exatamente neste ponto retornamos a uma das temáticas mais interessantes do Direito do Trabalho atual: a escolha do legislador não parece ter sido a melhor possível.  Isso a torna inconstitucional?  Deve o intérprete do Direito buscar uma construção principiológica ou convencional capaz de repassar o custo para o Estado?

A meu ver, não.  Comungo com o sentimento de que o ideal teria sido atribuir à sociedade como um todo, e não apenas ao empregador, o ônus da manutenção dos salários das gestantes impedidas de trabalhar pela nova lei (ou seja, aquelas cuja atividade não se afigurar compatível com o trabalho a distância em alguma das suas modalidades).

Aliás, a própria Convenção 103 da OIT, ao tratar do salário maternidade, dispõe neste sentido, para evitar a criação da odiosa discriminação às mulheres, protegendo sua inserção no mercado de trabalho e, assim, a própria isonomia com os homens.  Entretanto, não se pode instituir um gasto público sem a fonte de custeio, muito menos por analogia ou interpretação extensiva, quiçá com suporte em valores abstratos previstos em princípios constitucionais.

Sem regra específica não se pode interpretar que eventual afastamento da gestante do trabalho seria uma espécie de antecipação do salário maternidade, a ser pago pelo empregador para compensação futura, nem hipótese de auxílio-doença, já que por ora não há enquadramento do fator de gravidez como tal.  Repito, o ideal seria a mudança da legislação para, com recursos públicos, todos assumirmos este custo social, mas até agora regra neste sentido não há.  Fica a sugestão: reconhecer como incapacidade para o trabalho a gravidez durante a pandemia quando impossível o trabalho em domicílio, o que asseguraria o auxílio-doença, nos moldes do que ocorre com as aeronautas.

A escolha do legislador, então, parece ter levado em conta caber ao empregador assumir, por ora, o encargo de fazer cumprir um dos valores mais importantes da Constituição: o direito à vida.  No caso, não apenas da empregada, mas do nascituro. Está lá no texto constitucional o direito social da proteção à maternidade, claramente concretizado pela nova Lei 14.151 em contexto de emergência pública decorrente da pandemia do coronavírus.

Surge, portanto, um novo direito à gestante, de caráter emergencial, a ser observado imediatamente e custeado pelo empregador.  Direito de ordem pública, que restringe a possibilidade de escolhas individuais e, a meu ver, também coletivas ou por trabalhadoras hipersuficientes, já que se insere dentro das normas trabalhistas de saúde, segurança e higiene, conforme art. 611-B, XVII da CLT.

E por qual motivo a nova lei indica o custo do afastamento para o empregador?  Primeiro porque não há fixação de incapacidade para o trabalho, o que poderia atrair a percepção de auxílio-doença.  Há, a bem da verdade, um impedimento para o trabalho presencial e, não, uma doença incapacitante.  São situações diferentes.

O caso da aeronauta acima citado, vale lembrar, parte do pressuposto de não ser possível o atendimento da exigência legal do certificado de capacidade física para o trabalho, havendo regra especial neste sentido, conforme se observa da decisão em sede de mandado de segurança coletivo da 22ª Vara Federal Cível da SJDF nº 1010661-45.2017.4.01.3400.

Se o trabalho no domicílio do empregado não se afigurar possível na atividade original, pode-se até cogitar de alteração emergencial de função sem rebaixamento, mas soa inequívoco o direito, em qualquer caso, de manutenção do emprego e da remuneração ainda que impossibilitada a continuidade do trabalho.  Prevalece o direito à vida e a proteção à maternidade em detrimento do custo empresarial.  Por escolha do legislador.

Aliás, a antiga MP 927 de 2020 e a atual MP 1046 de 2021 indicam, para o teletrabalho emergencial, que em caso de não haver recursos necessários para viabilizar tal modalidade de labor, o empregado será considerado à disposição do empregador, obviamente percebendo a remuneração integral.  Não se pode imaginar tratamento diverso para a gestante.

A mesma solução foi dada pela nova lei ao dispor que a empregada gestante permanece à disposição do empregador, o que configura tempo de serviço remunerado, conforme determina o art. 4º da CLT.  Não soa razoável, portanto, a criação de qualquer exceção à regra geral celetista sem previsão legal.

Por outro lado, a aplicação da Lei 14.151/21 é imediata e não retroativa, vale dizer, afeta todos os contratos de trabalho em curso, não se podendo invocar o ato jurídico perfeito contido no art. 5º, XXXVI da Constituição.  Como já ensinava Délio Maranhão, na obra clássica Instituições de Direito do Trabalho, “as leis de proteção ao trabalho são de aplicação imediata e atingem os contratos em curso”.

Explica-se.  O contrato de trabalho é formado a partir de uma situação jurídica primária, composta por normas cogentes, imperativas, que atribuem aos trabalhadores, considerada esta condição peculiar, direitos mínimos que não são objeto de negociação, ou seja, institui-se um estatuto legal obrigatório.  Trata-se do simples cumprimento daquilo que foi instituído pelo legislador, por normas coletivas ou pelas decisões das autoridades competentes (art. 444 da CLT).

Para além destes direitos mínimos, há o contrato, uma situação jurídica secundária, constituída sobre a base primária.  Há de se distinguir, portanto, quando o trabalhador recebe direitos cogentes simplesmente por possuir tal condição, de quando ele legitimamente pode ser considerado como um contratante, negociando seus interesses.  Daí ser lição clássica que qualquer modificação no estatuto legal incide de forma imediata, ainda que o contrato tenha sido celebrado anteriormente, lembrando que tais mudanças podem ser benéficas ou prejudiciais.

O advento da Reforma Trabalhista em 2017, para se exemplificar, afetou os contratos em curso quanto ao pagamento de horas in intinere devidas por força da legislação anterior.  Ainda que a alteração tenha sido prejudicial, a incidência foi imediata porque simplesmente houve modificação do estatuto legal.  Agora, trata-se de alteração benéfica, há um novo estatuto legal para a empregada gestante, concedendo-lhe o direito de laborar em domicílio ou, se não for possível, interromper seu contrato de trabalho (não trabalhar, mas perceber a remuneração), ficando à disposição do empregador.

Inviável, assim, a adoção de interpretações que restrinjam tal direito ou atribuam o custo para outros atores sociais, criando obrigações sem regras específicas para tal.  Inviável, também, a adoção de suspensão do contrato de trabalho por força da MP 1045/21, já que em tal caso a gestante estaria sem perceber sua remuneração, o que viola a nova lei.

Pode soar agressiva a defesa da fixação do custo social da remuneração das gestantes ao empregador, bem como pouco criativa a solução simplista adotada a partir de uma legislação igualmente simplificada.  O justo e ideal seria a criação de regra jurídica para que toda a sociedade repartisse este encargo social.

A questão é que não podemos realizar construções interpretativas para “acertar” as más escolhas do legislador, até porque nós, intérpretes e aplicadores do ordenamento jurídico, sequer possuímos todas as informações e recursos necessários para determinar escolhas diferentes, supostamente melhores, sem ferir o Estado Democrático de Direito.

Da mesma forma que justificamos, até aqui, restrições a direitos trabalhistas para enfrentar a pandemia, como a negociação individual para redução de salários e suspensão dos contratos, chegou a hora de utilizamos do mesmo raciocínio para defendermos uma restrição ao direito dos empregadores, qual seja, de receber energia de trabalho como contraprestação à remuneração.

De tudo isso fica clara a lição de que o intérprete deve partir do pressuposto da constitucionalidade das leis, respeitando as escolhas do legislador, possuindo apenas uma única ideologia: o respeito à Constituição e às leis do país.  E o aplicador do Direito, principalmente o magistrado, deve realizar a ideologia da imparcialidade.

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