Opinião

É constitucional o diferencial de alíquota devido por empresa do Simples Nacional

Autor

  • Deonísio Koch

    é advogado tributarista professor de Direito Tributário ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.

18 de maio de 2021, 18h24

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 970.821, repercussão geral, Tema 517, reconheceu a constitucionalidade do diferencial de alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) exigido pelo recebimento de mercadorias ou de serviços de outros estados, ou Distrito Federal, por contribuinte optante pelo Simples Nacional, na condição de consumidor final [1], fixando a seguinte tese:

"É constitucional a imposição tributária de diferencial de alíquota do ICMS pelo estado de destino na entrada de mercadoria em seu território devido por sociedade empresária aderente ao Simples Nacional, independentemente da posição desta na cadeia produtiva ou da possibilidade de compensação dos créditos".

Neste artigo se pretende, além de comentar os fundamentos da presente decisão, dar uma maior clareza com relação a toda a matéria relacionada ao diferencial de alíquota do ICMS exigível no regime de tributação do Simples Nacional, segundo o que foi decidido até este momento pelo STF, dando um panorama com relação a essas obrigações tributárias específicas dos contribuintes enquadrados nesse regime tributário simplificado.

Em primeiro lugar, sempre é relevante lembrar das condições materiais para a incidência do diferencial de alíquota, que podem ser assim resumidas: a) operação ou prestação interestadual; b) mercadorias ou serviços destinados ao consumo final; e c) diferença entre a alíquota interestadual e a interna do estado de destino. Caso o destinatário não seja contribuinte do ICMS, a responsabilidade pelo recolhimento é do fornecedor (EC nº 87/15); sendo contribuinte, que é o caso da decisão em análise, a obrigação pelo recolhimento é do destinatário ao estado de sua localização. É uma forma de tributação parcial no destino, com relação à diferença entre a alíquota interestadual e a interna vigente no estado de destino. 

Para a configuração do critério material de incidência, portanto, é imprescindível que a mercadoria ou serviço sejam destinados ao consumo final, critério esse não captado pelo relator da decisão na fixação de sua tese, ao desconsiderar como determinante para a incidência a posição da sociedade empresária na cadeia produtiva ou da possibilidade de compensação dos créditos para justificar a cobrança do imposto. Ora, necessariamente, a microempresa deve receber as mercadorias ou serviços na condição de consumidora final. Caso contrário, não estarão presentes os pressupostos da incidência do diferencial de alíquota. Ou seja, na hipótese de as operações ou prestações forem vinculadas a novas operações ou prestações subsequentes, aplica-se o regime normal de tributação do imposto, em observância ao princípio da não cumulatividade, com crédito na entrada e débito pela venda, situação excludente da incidência do diferencial de alíquota. Inapropriada também a referência ao crédito na redação da tese, visto que o Simples Nacional não se rege pelo regime de compensação. A redação da tese se ajustaria mais ao conteúdo da decisão com redução de texto dessa parte final. Escreveu-se mais do que devia.

Outro ponto a ser lembrado é que o diferencial de alíquota devido pela empresa enquadrada no Simples Nacional tem previsão na LC nº 123/06, artigo 13, §1º, XIII, "g", impondo o seu recolhimento fora do regime simplificado de tributação, satisfazendo o requisito da exigência de lei complementar, nos termos do artigo 146, III, "a", da Constituição Federal. Portanto, na questão formal não haveria matéria controvertida sobre a constitucionalidade da exigência.

Na discussão da não cumulatividade do imposto, o relator ministro Edson Fachin salientou que a exigência da diferença de alíquota não estaria violando o princípio, por conta do artigo 23 [2], da LC 123/06, o qual veda expressamente a apropriação e a compensação de créditos no regime do Simples Nacional.

Essa fundamentação não parece consistente. O disposto no artigo 23 da mencionada lei tem aplicação no regime tributário do Simples Nacional, em que o valor do ICMS devido é calculado a partir do faturamento da empresa, não sendo aplicado o princípio da não cumulatividade, não fazendo sentido em se falar de crédito para compensação. Na verdade, o dispositivo é redundante, pela simples inaplicabilidade da técnica de compensação nesse regime tributário simplificado. Ocorre que a diferença de alíquota é uma exigência tributária que se faz fora desse regime especial de tributação. É uma exceção ao sistema do Simples Nacional e a cobrança segue o regramento do regime normal de tributação, da mesma forma como ocorre com as operações regidas pelo regime de substituição tributária e as vendas sem emissão de notas fiscais [3] [4], hipóteses em que o direito ao crédito é reconhecido. Daí mencionar o artigo 23 que é impeditivo para o crédito com relação às operações abrangidas pelo regime do Simples Nacional, não faz sentido para justificar a não violação do princípio da não cumulatividade do diferencial de alíquota.

Dessa forma, não é o citado artigo 23 que fundamenta a não violação do princípio da não cumulatividade, mas a simples condição de consumidora final da empresa destinatária das mercadorias ou serviços, na posição da cadeia produtiva. A não cumulatividade não opera na operação destinada ao consumo final. Portanto, decisão acertada por fundamentação equivocada.

Concluindo, então, esta primeira abordagem adstrita à decisão mencionada, frisa-se que ficou determinada a obrigatoriedade do recolhimento do ICMS na modalidade de diferencial de alíquota, no estado de destino, pelo contribuinte do ICMS, enquadrado no Simples Nacional, que receber mercadorias ou serviços de outros estados ou Distrito Federal, destinados ao consumo final.   

Conforme alertado no início deste texto, pretende-se deixar registrado um panorama com relação às obrigações tributárias relacionadas ao diferencial de alíquota do ICMS atribuídas ao contribuinte do Simples Nacional, abrangendo as situações em que este opere na condição de destinatária ou fornecedor das mercadorias ou serviços, de acordo com as decisões proferidas pelo STF até o momento, visando a afastar qualquer percepção nebulosa sobre o tema.   

Na decisão acima identificada, e objeto de análise neste trabalho, a empresa do Simples Nacional está na condição de destinatária da mercadoria e contribuinte do ICMS, que as adquire como consumidora final, sendo, portanto, declarada constitucional a exigência do imposto na modalidade do diferencial de alíquota.

Na outra situação, o contribuinte optante pelo Simples Nacional opera na condição de fornecedor das mercadorias ou serviços, em operações ou prestações interestaduais, para não contribuintes do ICMS, cabendo a ele a responsabilidade pelo recolhimento do imposto ao estado de destino, exigência implantada no sistema através da EC nº 87/15.

Essa matéria foi objeto da decisão, também do STF, no RE 1.287.019, repercussão geral, com a fixação da seguinte tese: "A cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais". A decisão se ampara no regramento constitucional descrito no artigo 146, III, "a".

Essa decisão sofreu modulações para postergar os efeitos para janeiro de 2022, excluindo dessa modulação as empresas enquadradas no Simples Nacional, para as quais a decisão já está produzindo seus efeitos, inclusive com retroatividade à data da concessão da medida liminar nos autos da ADI 5.464, de 12/02/2016, não lhes cabendo o recolhimento do diferencial de alíquota nas vendas interestaduais para não contribuintes do ICMS, até que venha ser editada lei complementar para implementar esta exigência.

A mencionada ADI nº 5.464 também já foi julgada procedente, declarando inconstitucional as cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª e 9ª do Convênio n° 93/2015. A cláusula 9ª se refere ao diferencial de alíquota devido pelo Simples Nacional, excetuada da modulação dos efeitos da decisão, conforme já mencionado. Logo, enquanto não houver lei complementar que venha a dispor sobre o diferencial de alíquota com relação às operações e prestações interestaduais com destino a não contribuinte do ICMS, promovidas por empresas optantes do Simples, esses contribuintes estão desobrigados ao recolhimento desse imposto.

Segue um resumo explicativo de interesse para os optantes do Simples Nacional, com relação ao diferencial de alíquota com base nas recentes decisões do STF:

1) A empresa enquadrada no Simples Nacional é contribuinte do ICMS e destinatária das mercadorias ou serviços de outro estado ou Distrito Federal na condição de consumidora final: há incidência da diferença de alíquota, que deve ser recolhido, nos termos da legislação vigente no estado de destino (RE 970.821, Tema 517).

2) A empresa optante pelo Simples Nacional é fornecedora das mercadorias ou serviços em operação interestadual para não contribuintes do ICMS, nos termos da EC 87/15: não há obrigação de recolhimento do diferencia de alíquota até que seja editada lei complementar nacional que defina essa exigência (RE 1.287.019 e ADI 5.464).

Por fim, uma vez editada a lei complementar exigida pela decisão do STF para legitimar a cobrança do diferencial de alíquota, nova discussão poderá ser suscitada para discutir a constitucionalidade dessa cobrança das empresas enquadradas no Simples Nacional, ancorada em outros fundamentos não relacionados à necessidade de lei complementar.

 


[1] Consta no artigo 155, §2º, VII e VIII, da Constituição Federal a previsão de uma forma de tributação no destino, com relação à diferença de alíquota entre a interestadual e a interna do Estado de destino.

[2] "Artigo 23 – As microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional não farão jus à apropriação nem transferirão créditos relativos a impostos ou contribuições abrangidos pelo Simples Nacional".

[3] Artigo 13, §1º, XIII, "a", da Lei Complementar n. 123/06.

[4] Artigo 13, §1º, XIII, "f", da Lei Complementar nº 123/06.

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    é advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de SC (TAT) e ex-auditor fiscal do Estado.

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