Contas à vista

Regras fiscais ocas propiciam ordenação ilegítima de prioridades

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18 de maio de 2021, 8h01

Na relação entre orçamento e Constituição, é preciso revisitar a noção de senso comum de que os direitos fundamentais definidos constitucionalmente não cabem nos limites fiscais e, portanto, podem ser adiados indefinidamente, esvaziados substantivamente ou simplesmente negados.

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O orçamento público só é legítimo à luz da Constituição, razão pela qual é preciso entendê-lo como o espaço de ordenação de prioridades que operacionaliza — de forma sistêmica  o planejamento das mais diversas políticas públicas.

Cabe, pois, refutar a noção de austeridade fiscal, tomada como um fim em si mesmo, que nega cumprimento ao planejamento setorial das políticas públicas e posterga indefinidamente o cumprimento das obrigações legais e constitucionais que amparam os direitos fundamentais.

O modelo fiscal ideal para nosso país passa pela integração entre planejamento e orçamento, até porque sociedade que não planeja aceita qualquer resultado. Sem diagnóstico claro dos problemas que demandam atuação estatal, sem eleição de prioridades no seu enfrentamento e sem formulação de prognóstico adequado para cada qual daqueles problemas, o gasto público se torna uma opção voluntariosa do governante de ocasião e dos parlamentares da sua base de apoio.

Assim, o curto prazo eleitoral e o trato patrimonialista dos recursos públicos substituem o espaço do planejamento no ciclo orçamentário, em um arranjo político-partidário que se deixa saturar de regras fiscais superpostas, para mais adiante simplesmente burlá-las.

Vale lembrar, por oportuno, que o conceito de responsabilidade fiscal contido no artigo 1º, §1º, da Lei Complementar 101/2000 é exatamente o de "ação planejada e transparente em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio nas contas públicas".

Planejar, prevenir e corrigir são ações de trato contínuo em um ciclo virtuoso de identificação e resolução de problemas sociais eleitos como prioridades estatais. Ora, caminhamos no sentido contrário quando apostamos em regras fiscais que fixam formalmente apenas limites mínimos e máximos.

Nosso contexto fiscal é pouco reflexivo porque vivemos sob a égide de um arcabouço normativo aparentemente forte por fora, mas oco por dentro. Há regras fiscais em demasia no Brasil e elas infantilizam a gestão dos escassos recursos públicos, na medida em que interditam, direta ou indiretamente, o debate orçamentário sobre a ordenação legítima de prioridades, conforme o planejamento setorial das políticas públicas.

Como sempre alerta André Lara Resende, gastar bem é mais difícil do que limitar o gasto em patamares rígidos. Falta-nos monitoramento consistente e concomitante da execução orçamentária conforme o planejamento, para aferir a qualidade do gasto em termos de custos e resultados, bem como à luz do estágio de cumprimento das obrigações constitucionais e legais de fazer que amparam os direitos fundamentais.

Tais impasses, de certa forma, explicam a fragilidade estrutural do teto previsto na EC 95/2016. O novo regime fiscal ali contido, a bem da verdade, não passa de um conjunto de regras ocas e iníquas.

Ao meu sentir, a fixação de limite global de despesas primárias da União conforme o patamar de 2016, apenas corrigido pelo IPCA-IBGE, promove uma iníqua estratégia de ajuste fiscal, na medida em que se omite quanto ao controle das receitas e das despesas financeiras.

Nesse sentido, o teto de gastos dado pela Emenda 95/2016 não enfrenta o patamar elevado de renúncias fiscais, grande parte delas concedida por prazo indeterminado e sem efetivo monitoramento das contrapartidas prometidas no ato da sua concessão; tampouco equaciona o risco moral de se premiar a sonegação tributária por meio de sucessivos programas de reparcelamento de débitos e até mesmo pela prescrição da dívida ativa. A isso se soma a regressiva matriz tributária primordialmente incidente sobre o consumo e a produção, sem correspondente pretensão de se repartir o custo da ação estatal sobre o patrimônio e a renda.

Por fim, mas não menos importante, é necessário questionar a ausência dos limites de dívida mobiliária e consolidada da União, a que se referem, respectivamente, o artigo 48, XIV, e o artigo 52, VI, da Constituição. Caso tivessem sido fixados, como demandam a CF/1988 e a própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o Brasil teria maior clareza sobre a gestão das despesas financeiras que repercutem sobre a dívida pública de forma opaca e ilimitada.

Haveria ajuste fiscal constitucionalmente adequado se tivéssemos clareza das diversas interfaces entre receitas, despesas (primárias e financeiras) e dívida pública. Somente assim podem ser ordenadas legitimamente as prioridades alocativas da sociedade, distribuindo os ônus e bônus da ação estatal conforme uma ação planejada e transparente que, em última instância, deve sempre visar à máxima eficácia dos direitos fundamentais inscritos constitucionalmente.

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    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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