Opinião

A relação entre antitruste e sustentabilidade

Autor

  • Lílian M. Cintra de Melo

    é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP 2018) assessora no Supremo Tribunal Federal no Gabinete do ministro Ricardo Lewandowski foi pesquisadora visitante do Institute for Global Law and Policy da Faculdade de Direito de Harvard (IGLP 2016) e aluna intercambista do Institut d`Études Politiques de Paris (Sciences Po 2009/2010).

17 de maio de 2021, 20h35

A pandemia da Covid-19 expôs diversas fragilidades das sociedades e das economias atuais. Vive-se, hoje, ao mesmo tempo, a crise sanitária, a devastação ambiental, as ameaças à democracia, o consumo excessivo, o aumento da concentração de renda e a consolidação dos monopólios, entre outras.

Os efeitos desse colapso são visíveis: a produtividade em queda, os salários estagnados, a inovação estanque, a escassez de recursos e o aumento das desigualdades, que impactam desproporcionalmente os mais pobres, as mulheres e as minorias [1], e resultam em diferentes formas de discriminação estrutural, erguendo mais um obstáculo para o avanço econômico e social desses grupos.

Nesse contexto, a promoção do desenvolvimento sustentável  nas dimensões econômica, social e ambiental  é, sem dúvidas, o maior desafio do nosso tempo. Com essa finalidade, os Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) adotaram os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a "Agenda 2030", um plano de ação composto por 17 objetivos e 169 metas associadas [2].

Enquanto a regulação do Estado em prol da proteção dos direitos humanos é a opção basilar, atores privados passaram a ter protagonismo e podem igualmente oferecer engajamento para um mundo mais inclusivo e sustentável. Como ensina Enrique Ricardo Lewandowski, em nenhuma relação social justa e bem-intencionada os direitos humanos podem ser ignorados [3]. Ressalta-se, nesse sentido, que a Agenda 2030 prevê a importância de empresas adotarem práticas empresariais mais sustentáveis [4].

Além disso, os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU celebram dez anos. Elaborados pelo professor da Universidade de Harvard John Ruggie, os princípios orientadores estabelecem diretrizes para a responsabilização de empresas em matéria de direitos humanos [5]. Seguindo essa mesma tendência, têm-se também os aclamados valores ambientais, sociais e de governança, referidos pelo mercado como ESG (na sigla em inglês).

Dessa forma, a promoção do desenvolvimento sustentável está presente na agenda de organizações internacionais, dos países e, cada vez mais, de empresas. Dado que a concorrência e a sua regulamentação são variáveis cruciais para a ação privada, em particular, para as ações das empresas, pergunta-se se cabe ao antitruste decidir se e como as empresas devem promover os direitos humanos.

No contexto do debate normativo, prevalece a dissidência entre, de um lado, aqueles que argumentam que essa questão se refere à redefinição dos objetivos do antitruste  e a consequente necessidade de superação do paradigma tradicional focado no bem-estar do consumidor (consumer welfare)  e do outro lado, aqueles que defendem que julgamentos valorativos não devem ser feitos pela autoridade antitruste [6].

Nesse ponto, cabe fazer uma pequena digressão sobre a suposta neutralidade valorativa do antitruste. Como bem define Calixto Salomão Filho, o direito é um corpo de regras organizativas da sociedade, que sofre constante influência e determinação pelas relações de poder e interesse na sociedade [7]. Nota-se, desse modo, que o antitruste tem sido guiado pela retórica econômica neoclássica do ideal de eficiência alocativa em mercados perfeitamente competitivos.

Duncan Kennedy assevera que a análise de custo-benefício que fundamenta a abordagem da eficiência é indeterminada, incoerente, política e implica uma falsa objetividade. A predominância da eficiência alocativa se deve a uma série de escolhas políticas que são necessárias para uma aplicação desta metodologia e suficientes para descaracterizar quaisquer pretensões objetivas, coerentes e determinadas [8]. Logo, ainda que se limite o objetivo do antitruste ao bem-estar do consumidor, mensurado em termos de eficiência alocativa de mercado, não há falar em ausência valorativa.

Os patronos da "neutralidade" do antitruste creem que os custos sociais e econômicos, rotulados como "não econômicos", devem ser matéria de regulamentação especializada (seja tributária, ambiental, trabalhista ou outras). No entanto, como afirma Michelle Meagher, os primeiros modelos antitruste indicam que, se deixado livremente, o poder econômico seria facilmente capaz de escapar ou subverter as outras regulamentações [9]. Nesse sentido, cabe ao antitruste o papel de preencher as lacunas deixadas por outras regulações, capturando precisamente o poder econômico residual que não pode ser confrontado de outra forma.

Eleanor Fox defende a ampliação dos objetivos do antitruste como uma ferramenta para a mobilidade e a erradicação da pobreza inserida em um contexto mais amplo de economias em desenvolvimento [10]. Nas palavras de Fox, "alguns objetivos são mais importantes do que a eficiência. Alcançar uma distribuição mais justa de oportunidades pode ser esse objetivo" [11]. Não significa dizer que o antitruste deve ser a solução para todos os problemas. Cabe ao Direito Concorrencial fazer parte de um arranjo jurídico mais amplo para persecução da redistribuição como um mecanismo para justiça social.

No entanto, a disputa sobre a redefinição dos objetivos do antitruste perde parte da sua relevância caso haja, dentro do arcabouço jurídico, outros dispositivos legais que tratam da questão da sustentabilidade. No caso do Brasil, a proteção dos direitos humanos e a promoção da livre-concorrência estão previstas na Constituição Federal (nos artigos 3º, incisos II e III, 5º e 170, inciso IV). Logo, com fundamento na aplicação sistemática do texto constitucional, o antitruste pode oferecer instrumentos para a promoção do desenvolvimento sustentável.

A pergunta subsequente é como a aplicação do Direito da Concorrência no controle de condutas e estrutura se relaciona com os direitos humanos? Há duas respostas: o antitruste pode atuar, de forma direta ou indireta, na promoção dos direitos humanos, bem como na prevenção e na proibição das suas violações; e o Direito da Concorrência pode operar como limitador de condutas anticompetitivas disfarçadas sob a égide da promoção dos direitos humanos. Julian Nowang, para ilustrar essas situações, alude ao antitruste como "espada" e "escudo" da sustentabilidade [12].

No primeiro, o antitruste, ainda que na sua aplicação tradicional, pode promover os direitos humanos, pois muitas vezes há sobreposição entre esses direitos, a eficiência (produtiva e dinâmica) e bem-estar do consumidor. É possível considerar, assim, a sustentabilidade como parâmetros de qualidade (não-preço) e inovação no controle de estruturas e de condutas.

Para compreensão da segunda hipótese, é fundamental o trabalho de Elinor Ostrom, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia em 1993, sobre a gestão sustentável dos bens comuns (commons goods[13]. Ostrom demostrou que, no ambiente de escassez dos bens comuns, a competição irrestrita por maximizadores de lucro racionais leva a resultados desastrosos e a cooperação pode maximizar os resultados. Dessa forma, há oportunidades para concorrentes colaborarem, especialmente em questões ambientais, desde que não gerem efeitos anticoncorrenciais.

A interface entre o Direito da Concorrência e a sustentabilidade foi discutida recentemente na Roundtable da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) [14]. A União Europeia também debateu o tema em conferências e [15], embora a promoção da sustentabilidade seja uma prioridade, até agora, a Comissão Europeia tem se mostrado cética e defende que os padrões de sustentabilidade devem ser definidos pela legislação específica e aplicados pelos reguladores [16].

Por outro lado, a Autoridade Antitruste Holandesa (ACM) abriu consulta pública, em 2020, referente à "Proposta de Guia sobre Acordos de Sustentabilidade", para permitir a cooperação entre rivais quando os benefícios para a sociedade como um todo superarem as desvantagens de qualquer restrição à livre concorrência para mercados relevantes especificamente considerados [17]. A proposta da ACM fornece a orientação mais completa sobre a aplicação dos princípios antitruste tradicionais para benefícios de sustentabilidade em acordos de cooperação horizontal.

Nos Estados Unidos, a discussão ganhou notoriedade na investigação dos efeitos antitruste do acordo entre BMW, Ford, Honda, Volkswagen e o estado da Califórnia para reduzir voluntariamente as emissões de gases poluentes [18]. Previamente, em 2009, a Federal Trade Commission (FTC) impôs remédios estruturais e comportamentais no "caso Panasonic/Sanyo", pois entendeu que a tecnologia utilizada no mercado de baterias era um fator importante na transição para energia renovável [19].

No Brasil, até o momento, não há clareza sobre como a autoridade encaminhará o tema. Como ensina Calixto Salomão Filho, para transformar a dura realidade brasileira, não devemos focar tão somente em melhorar ou modificar as leis antitruste, é preciso antes torná-las efetivas [20]. Para tanto, cada vez mais, a comunidade antitruste deve se engajar na discussão sobre o efetivo papel que o Direito da Concorrência pode desempenhar na criação de uma sociedade mais igualitária e sustentável.

 

[1] Para uma discussão sobre antitruste e gênero, ver ATHAYDE, Amanda; PICCOLI, Mariana. Gênero e Antitruste: O fenômeno poliédrico da discriminação por gênero e seus impactos na defesa da concorrência Portal Jota, 25/2/2021.

[2] O termo "direitos humanos" é usado de forma abrangente, incluindo o "desenvolvimento sustentável" e questões relacionadas à igualdade de gênero e raça, luta contra a pobreza, proteção do meio ambiente e comunidades indígenas, privacidade e dados pessoais, política anticorrupção, combate ao trabalho escravo e infantil, entre outros.

[3] LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteção dos Direitos Humanos na Ordem Interna e Internacional. 1a. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984. Nesse sentido, Alberto do Amaral Jr., leciona que "o desenvolvimento sustentável busca integrar a conservação e o desenvolvimento, satisfazer as necessidades humanas básicas, realizar a equidade e a justiça social, promover a autodeterminação e a diversidade cultural, bem como manter a integridade ecológica. V. AMARAL JR., Alberto do. O desenvolvimento sustentável no plano internacional. In SALOMÃO FILHO, Calixto (org.). Regulação e Desenvolvimento. Novos temas. Malheiros, São Paulo, 2012.

[4] A Agenda 2030 e os ODS combinam os Objetivos do Milênio e os processos resultantes da Rio+20. O Objetivo 12.6 da Agenda 2030 encoraja as empresas, especialmente as multinacionais, a adotar práticas de negócios sustentáveis e a integrar informações de sustentabilidade em seus relatórios. Disponível em: http://www.agenda2030.org.br/sobre/.

[5] Os Princípios Orientadores introduziram os "parâmetros para proteger, respeitar e reparar". No Brasil, o tema passou a ser tratado pelas Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos (Decreto n. 9.571/2018, regulamentado pela Resolução n. 5/2020).

[6] OCDE. Sustainability & Competition Law and Policy – Background Notes by Julian Nowag, 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP(2020)3&docLanguage=En.

[7] SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria Crítico-Estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 123.

[8] KENNEDY, Duncan. Cost-Benefit Analysis of Entitlement Problems: A Critique, 33 Stanford L. Rev 387, 388, 1981.

[9] MEAGER, Michelle. Powerless Antitrust. Competition Policy International. Antitrust Chronicle, 2019. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3493181.

[10] FOX, Eleanor. Economic Development, Poverty, and Antitrust: The Other Path, 13 SW. J. L. & Trade Americas 211, 212, 2007.

[11] FOX, Eleanor. Equality, Discrimination and Competition Law: Lessons from and for South Africa and Indonesia, 41 Harvard. Int’L L. J. 579, 593, 2000.

[12] OCDE. Sustainability & Competition Law and Policy – Background Notes by Julian Nowag.

[13] OSTROM, Elinor. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action, Cambridge University Press, 1990.

[14] OCDE. Sustainability & Competition Roundtable. Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/sustainability-and-competition.htm. Ainda, em 2016, a OCDE promoveu o fórum de discussão "Promoting competition, protecting human right" (no original, em inglês). Disponível em: https://www.oecd.org/daf/competition/promoting-competition-protecting-human-rights.htm.

[15] UNIÃO EUROPEIA. Conference on Sustainability and Competition Policy: Bridging two Worlds to Enable a Fairer Economy, 2019. Disponível em: https://cor.europa.eu/en/events/Pages/cor-eesc-sustainability-competition-policy.aspx. Conference on Competition Policy and the Green Deal, 2021. Disponível em: https://ec.europa.eu/competition/information/green_deal/index_en.html.

[16] V. MODRALL, Jay. Sustainability and Antitrust – A Course Change for the EU? Kluwer Competition Law Blog. Disponível em: https://perma.cc/37VS-NMVJ.

[17] ACM. Guidelines ‘Sustainability Agreements’. Disponível em: https://www.acm.nl/sites/default/files/documents/2020-07/sustainability-agreements%5b1%5d.pdf.

[18] Disponível em: https://perma.cc/Q239-H8CC.

[19] Disponível em: https://perma.cc/L32D-UX56.

[20] Calixto Salomão Filho. A luta contra monopólios e cartéis: fracassos e perspectivas. Conjur, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-09/defesa-concorrencia-luta-monopolios-carteis-fracassos-perspectivas.

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    é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP, 2018), assessora no Supremo Tribunal Federal no Gabinete do ministro Ricardo Lewandowski, foi pesquisadora visitante do Institute for Global Law and Policy da Faculdade de Direito de Harvard (IGLP, 2016) e aluna intercambista do Institut d`Études Politiques de Paris (Sciences Po, 2009/2010).

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