Abrindo a caixa preta

Árbitro que age com dolo ou fraude pode responder a ação indenizatória

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17 de maio de 2021, 19h42

Árbitros que agem com dolo ou fraude podem responder a ação indenizatória. Com esse entendimento, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou sentença e ordenou a produção de provas para avaliar se árbitros do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil Canadá (CAM-CCBC) favoreceram Luiz Eduardo Auricchio Bottura, condenado pelo menos 239 vezes por litigância de má-fé, em disputa societária.

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TJ-SP disse que árbitro que age com dolo ou fraude pode responder a ação indenizatória
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Bottura casou-se, em 2003, com Patrícia Bueno Netto. A empresa do pai dela, BNE Administração de Imóveis, se uniu à SPPatrim (criada por Bottura) para constituir a sociedade em conta de participação Golf Participações, que visava explorar um empreendimento imobiliário na Marginal Pinheiros, em São Paulo.

Com o fim do casamento, a BNE requereu a instauração de procedimento arbitral na CAM-CCBC para liquidar a Golf Participações e apurar os valores a que a SPPatrim tinha direito, bem como suas dívidas.

O primeiro tribunal arbitral, em 2008, estabeleceu critérios para os cálculos e nomeou um perito. A partir de então, Bottura passou a criar obstáculos à produção da prova pericial e apuração dos haveres. Ele perseguiu árbitros, advogados e familiares de seu ex-sogro. Além disso, moveu ações visando suspender o procedimento arbitral fora de São Paulo, como uma em Anaurilândia (MS), em conluio com a juíza Margarida Elisabeth Weiler, que foi condenada à aposentadoria compulsória.

Por causa das perseguições, todos os árbitros do primeiro tribunal arbitral renunciaram. Uma vez que ninguém da equipe da CAM-CCBC aceitou atuar no caso, as partes se viram obrigadas a recrutar árbitros de fora. No fim de 2011, instalou-se um novo tribunal arbitral, composto por Mauro Rodrigues Penteado (presidente), Carlos Suplicy de Figueiredo Forbes e Carlos Olímpio Teixeira.

Três anos depois, o novo tribunal arbitral desrespeitou a primeira decisão, julgou desnecessária a prova pericial e condenou a BNE ao pagar R$ 104.233.896,63 à SPPatrim, sendo que a empresa havia investido R$ 3 milhões no empreendimento.

A BNE apontou aos árbitros a existência de erros materiais nos cálculos dos haveres. Porém, o painel arbitral acabou por aumentar a participação societária da SPPatrim na empresa e, consequentemente, o valor total da condenação.

Dessa maneira, a BNE moveu ação de produção de provas para o Judiciário verificar se há ou não elementos que demonstrem a parcialidade dos árbitros que proferiram a sentença arbitral, de modo a justificar uma eventual ação indenizatória.

O pedido foi negado em primeira instância, mas a empresa recorreu. O relator do caso, desembargador Sérgio Shimura, afirmou que a BNE tem direito à produção de provas que lhe permitirão analisar se é caso de mover ação indenizatória contra os árbitros.

O magistrado apontou que o árbitro é juiz de fato e de direito (artigos 14 e 18 da Lei 9.307/1996). Portanto, aplica-se a ele o artigo 143 do Código de Processo Civil, que autoriza a responsabilização do julgador por perdas e danos quando proceder com dolo ou fraude. A situação se agrava, disse Shimura, quando existe a suspeita de a segunda sentença arbitral ter desconsiderado a coisa julgada anterior, motivada por fraude ou corrupção de um dos árbitros.

O desembargador também criticou a intervenção da SPPatrim no processo. Ele apontou que a empresa não esclareceu porque está participando do feito. A companhia primeiro disse ser "terceira" atingida pela anulação da sentença; depois, assistente dos árbitros; por fim, declarou ser "parte".

Para o relator, a SPPatrim não pode ser considerada "terceira" porque a BNE deixa claro que não busca a anulação da sentença arbitral, que já foi pedida em outra ação, e sim a confecção da prova, com vistas a apurar eventual responsabilidade dos árbitros.

Além disso, Shimura destacou que a empresa de Bottura não pode ser "assistente", "porque, em vez de auxiliar os réus, vem tumultuando o processo, juntando quase 2.000 documentos, totalmente alheios ao objeto principal do pedido de produção antecipada de provas".

E também não é "parte", de acordo com o magistrado, porque, além de não ter sido apontada pela BNE na inicial como litisconsorte passivo, eventual ação indenizatória não seria proponível contra a SPPatrim.

Assim, o desembargador ordenou a exclusão da empresa do processo.

Sem blindagem
Os advogados da BNE no caso, Gustavo Lopes Ferreira, Marcus de Abreu Sampaio e Felipe de Abreu Sampaio, integrantes do escritório Abreu Sampaio Advocacia, afirmam que a decisão, além de processualmente correta, representa importante precedente, no sentido de não mais tratar as câmaras arbitrais e os processos delas como se fossem "caixas pretas", imunes a qualquer tipo de interferência por parte do Judiciário.

De acordo com eles, cabe ao Judiciário avaliar a legalidade e a lisura da atuação dos árbitros. Afinal, a legislação arbitral não pode proteger os árbitros além do que a legislação processual o faz em relação aos juízes togados, apontam os advogados. Eles também ressaltam que os árbitros devem responder pelos seus atos quando agirem com dolo ou fraude.

Anulação da sentença
A 1ª Câmara de Direito Empresarial do TJ-SP irá julgar ação em que a BNE pede a anulação da sentença arbitral que atribuiu à empresa de Bottura crédito indenizatório de R$ 104.233.896,63. 

Hábil no ataque e no contra-ataque, Bottura enfrenta um turbilhão de investigações e processos com bons resultados. O Ministério Público Federal, em 2017, com base em farta documentação, pediu abertura de inquérito policial, por evasão de divisas. Com marchas e contra-marchas, a investigação prossegue com sucessivas prorrogações. O tiroteio é intenso e recheado de provas.

A mais contundente delas é a confissão do próprio advogado que obteve a vitória na CAM-CCBC, Fabrício Gravata. Em depoimento dado em inquérito que corre no 15º Distrito Policial de São Paulo, ele disse que o verdadeiro beneficiário da arbitragem, Luiz Eduardo Bottura, corrompeu um dos árbitros, com quem teve diversas reuniões, para favorecê-lo. A intenção seria fazer com que os valores a receber pela empresa SPPatrim após o fim de uma sociedade com a BNE, do setor imobiliário, fossem multiplicados.

Ainda segundo Gravata, durante o procedimento arbitral, Bottura — que é beneficiário oculto da SPPatrim — entrou com seguidos processos contra julgadores, com o intuito de os tornar impedidos de analisar seu caso. Obtida finalmente a decisão arbitral que queria, foi à Justiça para executá-la.

Porém, os valores arbitrados não foram alvo de perícias, como já havia sido determinado pelos árbitros da CAM-CCBC no primeiro painel, responsável pela fase de conhecimento da causa. Por isso, a empresa BNE tenta anular a execução na Justiça.

Como nas demais centenas de processos nos quais Bottura foi condenado por litigância de má-fé, o caso da arbitragem da CCBC é recheado de manobras. Só no procedimento arbitral foram afastados oito árbitros, após figurarem mais de 150 vezes no polo passivo dos procedimentos judiciais movidos por Bottura contra eles.

Quando o caso chegou à Justiça, foi a vez de os juízes virarem alvos. Pelo menos nove desistiram de julgar o processo. Como as justificativas não são conhecidas, entre as razões pode estar o medo de ser processado por Bottura, que já fez 592 vítimas — o número é tão grande que elas formaram uma associação para se defender. Para que o julgamento tivesse sequência, a cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo teve de designar um juiz.

O Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC) informou, por meio de nota, que não profere sentenças arbitrais, não julga e não estabelece vencedores ou perdedores dos casos, e que, portanto, não responde por acusações de venda de decisões.

Ao responder à reportagem da ConJur que revelou a investigação de suspeitas de parcialidade em uma arbitragem envolvendo Luiz Eduardo Auricchio Bottura, o CAM-CCBC ressaltou que "os responsáveis pelo proferimento das sentenças arbitrais são os árbitros e não as câmaras arbitrais". "O Centro tampouco participa, em nenhuma hipótese, da formação de convicção dos árbitros e/ou da elaboração de decisões proferidas nas arbitragens que administra", afirmou.

Litigante em série
Além do caso da CCBC, Luiz Eduardo Auricchio Bottura é considerado um litigante serial, autor de mais de 2 mil processos na Justiça. Só contra magistrados, impetrou 925 exceções de incompetência, suspeição e impedimento, sua mais frequente tática de intimidação. As investidas deram origem à Associação das Vítimas de Eduardo Bottura.

As táticas de Bottura são conhecidas da Justiça. Em processos contra desafetos, ele simula alterações de endereços dos adversários para que eles não recebam oficiais de Justiça e sejam declarados revéis — muitas vezes, em execuções de cobranças com documentos falsos.

Suas primeiras vítimas foram consumidores na internet. Bottura tem contra si processos e investigações por 16 tipos de crimes e 1.556 reclamações no Procon por vender (e não entregar) produtos.

Mas foi na cidade de Anaurilândia, em Mato Grosso do Sul, que Bottura encontrou a sede ideal para sua fábrica de processos. Lá, conheceu a juíza Margarida Elisabeth Weiler, de quem obteve os despachos mais benevolentes. Flagrada, a juíza recebeu punição máxima do Conselho Nacional de Justiça: sua aposentadoria obrigatória.

Em decorrência disso, as decisões ilegais da juíza foram caindo uma a uma, anuladas pelos desembargadores do Tribunal de Justiça do estado. Em retribuição, Bottura entrou com processos contra cada um deles, com a finalidade de torná-los impedidos de julgar seus processos. A estratégia, se desse certo, "negativaria" os 35 membros da corte, obrigando-a a mandar para o Superior Tribunal de Justiça qualquer simples agravo interposto pelo processador serial.

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1011322-30.2019.8.26.0100

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