Público & Pragmático

Uma nova coluna para um novo Direito Administrativo

Autor

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

16 de maio de 2021, 8h02

A coluna Público & Pragmático nasce com um firme propósito, assumidamente auspicioso: aproximar cada vez mais nosso Direito Administrativo do cotidiano da gestão pública, das relações público-privadas e das ações mais incandescentes da sociedade civil brasileira contemporânea. Sob minha liderança, esta coluna contemplará semanalmente um artigo jurídico, assinado por mim e por integrantes de uma equipe de jovens juristas altamente especializados [1], que analisará de modo pragmático temáticas variadas e atuais de Direito Administrativo e de Gestão Pública.

Indubitável que, em si, o pragmatismo jurídico no Brasil ainda é uma grande novidade, a qual para além de provocar muita curiosidade, quando aplicada à gestão pública e ao Direito Administrativo acaba por renovar e, de certo modo, ampliar as fronteiras e os contornos já bastante extensos do que compreendemos como "público". E isso não é pouco, sobretudo em uma sociedade como a brasileira, ainda muito demarcada e impregnada por entulhos patrimonialistas e clientelistas, os quais insistem em permanecer nas entranhas do setor público, do mercado e da própria sociedade; acaba-se muitas vezes por se confundir os limites do público e do privado até não poder mais, com isso causando inúmeros prejuízos a muitos e muitas riquezas a poucos.

Cara leitora e caro leitor: o que você responderia hoje, no limiar do século 21, sobre o real significado do que é "público" no Brasil? O "público" é lugar de ninguém, de poucos ou de todos? O "público" há de ampliar acessos ao espaço e patrimônio públicos, ou trata-se de terreno de influência exclusiva daqueles que ascendem e detém circunstancialmente o poder? As riquezas geradas pelo "público" devem ser repartidas igualmente entre segmentos diversos da sociedade ou assumidas e aproveitadas monopolisticamente por determinados segmentos? O "público" produz em maior quantidade equidades, corporativismos ou iniquidades? O que a aplicação do pragmatismo jurídico pode impactar na concepção do "público" e da sua eventual ressignificação?

Spacca
Gustavo Justino de Oliveira

Eis uma agenda de debates que pode representar um interessante pontapé inicial para nossas reflexões, e que almejamos compartilhar com todos nossos leitores e leitoras, em um esforço de interações tão permanentes como multilaterais, sempre voltado a promover inovação do conhecimento jurídico aplicado ao Direito Administrativo.

Exemplificando, o enfrentamento jurídico da pandemia da Covid-19 tem se revelado um desafio dos mais intransponíveis que já se teve que assumir no contexto global, e não está sendo diferente no Brasil. Sem desprezar as críticas das ações e omissões que acabaram se instalando nesse cenário, envolvendo todos os poderes públicos — e que a CPI da Pandemia, em trâmite no Senado Federal, visa a registrar, investigar, reconstruir e eventualmente propor soluções e encaminhamentos punitivos —, parece de uma clareza solar que as soluções encontradas pelos entes públicos, pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, pelo mercado e pela sociedade civil devem, sim, estar apoiadas em um olhar pragmático e que procura ter em conta as especificidades e impactos que uma crise sanitária, econômica e político-institucional sem precedentes geraram na realidade da vida dos cidadãos.

Ora, a pandemia nada tem de abstrato e tudo tem de real: exige-se que sejam tomadas decisões e providências pragmáticas em todos os campos, mas apoiadas em evidências científicas e indícios fáticos os mais precisos possíveis, desencorajando sobremaneira soluções públicas e privadas que não estejam fundamentadas em critérios técnicos e tomadas a partir de parâmetros que não considerem o direito à vida e à saúde como prioritários. Originou inclusive o "Direito Administrativo de emergência", enormemente apoiado em enfoques pragmáticos para enfrentamento jurídico dos problemas que emergem cotidianamente com a pandemia.

O que pretendo sustentar é que uma situação como a pandemia da Covid-19 obrigatoriamente demanda reações adequadas e informadas por forte pragmatismo, afastando soluções apoiadas em retóricas vazias, teses e juízos abstratos que nada mais provoquem senão perpetuação ou piora do caos sanitário, sem assegurar melhorias significativas dos prejuízos sofridos por todos.

Inclusive, a compreensão do que se espera do gestor público e privado em contextos de crise como este — decisões fundadas em pragmatismo e não em legalismo — vai necessariamente pautar eventuais discussões acerca da responsabilização destes por eventuais danos causados a terceiros, em decorrência de suas ações e omissões. Eis uma aplicação prática do que desejamos trazer semanalmente em nossa coluna Público & Pragmático: quais os reais impactos do pragmatismo jurídico na solução dos problemas e conflitos públicos hoje no Brasil?

Nossa intenção é refletir e debater sobre este novo e riquíssimo momento do Direito Administrativo, no qual: 1) teorias históricas e institutos clássicos são revisitados num esforço contínuo de aprimoramento e atualização; e 2) novos instrumentos de ação pública e formas de compreensão em união à solução de problemas e conflitos públicos são forjados à luz de um pragmatismo cada vez mais dominante, presente no dia a dia da Administração Pública, do mercado e das organizações da sociedade civil, que por seu turno atuam preponderantemente em um contexto de intensas sinergias e parcerias, institucionais e contratualizadas.

A expressão "pragmatismo jurídico" é comumente empregada para compreender o Direito do ponto de vista comportamental, tornando-se desapegado da mera teoria ou de conceitos e meras abstrações. Declarar-se pragmático engloba ser atento às consequências práticas; significa, por exemplo, que o aplicador do Direito, quando a lei permitir diferentes soluções para a mesma controvérsia, deverá basear sua decisão naquilo que irá levar a um resultado prático mais edificante e salutar à sociedade. Por isso, é válido dizer, que o Direito Administrativo Pragmático é o Direito mais próximo dos fatos e das evidências, e por via de extensão, mais próximo dos anseios e das necessidades do cidadão e da sociedade [2].

Dessarte, a presente coluna pretende dialogar semanalmente com nossas leitoras e leitores, de forma clara e concisa, principalmente a respeito das seguintes linhas temáticas, sem prejuízo de outras: 1) governança pública e consensualismo na Administração Pública; 2) Direito da Infraestrutura, regulação de serviços públicos; 3) parcerias do Estado com o mercado e com as organizações da sociedade civil; 4) combate à corrupção, compliance, controle social e participação democrática na gestão pública; 5) sistema de Justiça multiportas e Administração Pública: o papel da negociação, mediação, arbitragem e outros meios na resolução de conflitos públicos; e 6) governo digital, Administração eletrônica e inovação tecnológica no setor público.

Para apreender o pragmatismo no âmbito do Direito Administrativo, mister é entender do que se trata o pragmatismo jurídico e o próprio pragmatismo enquanto teoria da Filosofia.

Pragmatismo pode ser compreendido como uma corrente filosófica datada do século 19, que nasceu da crítica à abstração e à metafísica tradicional. Mais tarde, despontou nos Estados Unidos o movimento conhecido como realismo jurídico ou jurisprudência sociológica, capitaneado por Roscoe Pound, Benjamin Cardozo e Oliver W. Holmes; o realismo jurídico, cujo cerne está na possibilidade dada ao juiz para julgar tendo em vista as consequências da decisão, foi responsável por uma maximização do poder judicial e das decisões invalidadas pela Suprema Corte americana [3].

Esse movimento renasceu nos fins do século 20 sob a denominação de pragmatismo jurídico, dotado de três características fundamentais, quais sejam: 1) contextualismo; 2) consequencialismo; e 3) antifundacionalismo. A primeira significa que toda proposição deve ser julgada tendo como base as necessidades humanas e sociais; a segunda pressupõe o teste de cada proposição mediante a antecipação dos resultados; por fim, a terceira característica é a rejeição à metafísica, à abstração e à imutabilidade do direito [4].

O intérprete ou juiz pragmatista adota um método comparativo-consequencialista, ao comparar as várias alternativas apresentadas como solução a uma lide e optar por aquela cujos resultados representem o melhor interesse possível às necessidades humanas e sociais. Para alcançar esse tipo de decisão, o pragmatista vai além da letra da lei: ele se guia por orientadores éticos e políticos [5], bem como por outras áreas do conhecimento, como a sociologia e a economia.

Não quer dizer que o pragmatista despreze as fontes formais do Direito e a própria lei em si; estes servem, na verdade, como um ponto de partida, mas a finalidade que se almeja alcançar é a satisfação das necessidades humanas e sociais, tendo em vista termos econômicos, sociais e políticos [6].

Embora seja considerado característica ou braço do pragmatismo, o consequencialismo também pode despontar como modelo teórico autônomo, partindo da premissa segundo a qual a avaliação de uma proposição deve levar em conta os resultados práticos produzidos.

Consequencialismo é a teoria segundo a qual as consequências de determinada conduta (ou decisão) constituem a base para que se façam juízos a respeito; diferencia-se, assim, do pragmatismo, que tem o consequencialismo como uma de suas características fundamentais, mas possui compromisso com a razoabilidade [7].

O consequencialismo jurídico foi introduzido formalmente no ordenamento brasileiro por meio da Lei federal nº 13.655, de 25 de abril de 2018, que promoveu alterações na LINDB com objetivo de levar segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do Direito Público, mediante a edição de normas com evidente conotação consequencialista.

A própria novidade legislativa veio fundamentada pela incapacidade da lei em regular toda a vida social por si só, sendo imprescindível sua interpretação e aplicação com a devida observância dos impactos práticos e econômicos no caso concreto [8].

Alguns dogmas referentes ao campo do Direito Administrativo merecem uma releitura sob a ótica do pragmatismo jurídico, a fim de conferir mais flexibilidade, criatividade e eficiência aos atos do administrador. Por exemplo, a concepção mais ortodoxa e formal de legalidade — legalismo, em verdade — ao qual a Administração Pública deve se submeter não corresponde exatamente à realidade e ao cotidiano do poder público, uma vez que, se assim fosse, não sobraria qualquer resquício de criatividade por parte do gestor [9].

Por tudo isso, é possível sustentar que o pragmatismo jurídico é uma tendência que encontra solo fértil junto ao paradigma do constitucionalismo no qual o mundo atual se insere, possuindo reverberação na doutrina e a partir da Lei federal nº 13.655/18, influenciando obrigatoriamente a atuação do Judiciário e demais órgãos de controle externo da Administração Pública no Brasil, além de provocar as releituras de dogmas de nosso Direito Administrativo.

O consequencialismo jurídico, na forma como foi introduzido no ordenamento brasileiro por intermédio da Lei federal nº 13.655/2018 — cujo artigo 20 foi regulamentado pelo Decreto nº 9.830/19 —, pode ser encarado como modelo teórico autônomo, mas também é uma extensão e uma característica fundamental do pragmatismo. Embora próximos, diferenciam-se à medida que o pragmatismo parece ser mais amplo e não se reduz a uma mera análise da consequência dos resultados práticos de uma decisão, mas a uma prática abrangente e interdisciplinar que não deixa de observar a razoabilidade.

 

Público & Pragmático é uma coluna contemporânea e intergeracional, inclusiva e não exclusiva. Aberta, dialógica e dotada de escuta ativa, alinhada aos novos valores de reumanização típicos dos novos tempos, os artigos que integrarão esta coluna têm por escopo precípuo trazer problemáticas atuais acompanhadas de enfrentamentos pragmáticos, sempre voltados à inovação do conhecimento jurídico neste vasto campo do Direito Administrativo. Se você deseja fazer qualquer comentário direto à coluna, ou propor um tema para ser aqui tratado ou mesmo se deseja compartilhar um artigo conosco, envie sua sugestão para [email protected]

Para finalizar, um agradecimento especialíssimo à Conjur, que nos acolhe e nos estimula a trazer o melhor aos nossos leitores e leitoras, um dos grandes propósitos desta empreitada científica e profissional. Até o próximo domingo!

 


[1] Otávio Venturini (Mestre em Direito pela FGV-SP), Gustavo H. Carvalho Schiefler (Doutor em Direito do Estado pela USP), Laura Amando de Barros (Procuradora da Cidade de São Paulo, Mestre/ Doutora em Direito do Estado pela USP), Mariana Carnaes Ferreira Tonetti (Mestre em Direito Administrativo PUC-SP; Doutoranda em Direito do Estado na USP), Wilson Accioli Filho (Mestre em Direito do Estado pela USP), Silvia H. Johonsom di Salvo (Mestre em Direito do Estado pela USP) e Matheus Teixeira Moreira (Advogado).

[2] Cf. nosso Direito Administrativo Pragmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[3] GEN JURÍDICO. Entendendo a Filosofia do Direito — As correntes da filosofia do direito (3/4): O realismo e o pragmatismo jurídico. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2018/04/04/entendendo-filosofia-do-direito-as-correntes-da-filosofia-do-direito-3-4-o-realismo-e-o-pragmatismo-juridico/>. Acesso em: 04 set. 2020.

[4] POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo: Teoria Social e Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.

[5] Ibidem.

[6] POSNER, Richard. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

[7] ARRUDA, Thais de Nunes. Como os juízes decidem os casos difíceis? A guinada pragmática de Richard Posner e a crítica de Ronald Dworkin. 2011. 287 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

[8] DIAS, Felipe Wagner de Lima; NASCIMENTO, Victor Hugo Macedo. O consequencialismo jurídico e o artigo 20 da Lindb. In: CONJUR. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jun-07/opiniao-consequencialismo-juridico-artigo-20-lindb>. Acesso em: 05 set. 2020.

[9] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A releitura do Direito Administrativo à luz do pragmatismo jurídico. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 256, p. 129-163, jan. 2011. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8496/7245>. Acesso em: 07 Set. 2020. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rda.v256.2011.8496.

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