Opinião

Na ausência do bom senso, a lei

Autores

  • Flávio Henrique Unes Pereira

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais diretor titular do Departamento Jurídico da Fiesp presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal professor do mestrado profissional do IDP (São Paulo) e sócio do Silveira e Unes Advogados.

  • Matheus Jasper Soares Nangino

    é jornalista formado em Comunicação Social pela UFMG acadêmico de Direito do IDP e assessor parlamentar no Senado Federal.

16 de maio de 2021, 9h12

Imaginemos um país envolvido em uma guerra em que cada comandante, de acordo com sua visão, resolve dar uma orientação para seus comandados. A infantaria imagina um cenário, a engenharia pensa uma estratégia diferente, a artilharia avança para um determinado lado, a cavalaria, em sentido oposto. Não há diálogo, nem planejamento conjunto. Os generais não se entendem e, dessa forma, cada qual segue aquilo que considera o melhor para que suas armas vençam as batalhas. Sobram voluntarismo e amadorismo. Faltam planejamento, estratégia, cooperação. Há alguma chance de vitória?

O fato, infelizmente, não é imaginário. O Brasil vem perdendo sucessivas batalhas na guerra contra a Covid-19. Em um só dia, nossa pátria já perdeu dez vezes mais cidadãos do que militares brasileiros em toda a Segunda Guerra. Só nos 12 primeiros dias de abril perdemos mais brasileiros para a Covid-19 do que em toda a Guerra do Paraguai, o maior conflito armado ocorrido na América Latina. Não há precedentes na história do Brasil de um desastre tão grande. Tudo isso porque o inimigo é perigoso e foi subestimado e nossos comandantes não se entendem.

Em uma guerra, é certo que cada um pode ter uma posição ou uma visão diferente sobre que caminho seguir. Mas, quando se traça uma estratégia — temos uma? —, todos devem acatá-la e envidar esforços com toda a tropa para fazer com que ela funcione. Não é o que temos visto no Brasil. Ter um comitê de crise, um centro de comando integrado com representantes do governo federal, dos estados e dos principais municípios brasileiros deveria ser o óbvio para que o comando seja único e as estratégias coordenadas. Não há nada, no entanto. Na falta do bom senso, precisamos de lei.

O Brasil carece de um normativo legal que determine que, em casos como o que temos enfrentado, haja uma coordenação federativa para solução do problema. Naturalmente, lei nenhuma fará qualquer país vencer uma guerra, mas pelo menos ela pode obrigar os comandantes a se entenderem.

Por isso, a iniciativa do senador mineiro Antonio Anastasia ao apresentar o Projeto de Lei Complementar (PLP) 117/2020 foi tão importante. Ele dispõe sobre a cooperação federativa em situações de emergência de saúde pública de importância nacional ou internacional como a que vivenciamos com a Covid-19. O PLP, assim, regulamenta o inciso II do art. 23 da Constituição Federal, que prevê como competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios cuidar da saúde e assistência pública; e seu parágrafo único, que determina que leis complementares fixarão normas para essa cooperação, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

Na prática, o projeto cria a "decisão coordenada de natureza federativa", uma espécie de um grande comitê de crise para planejamento de estratégias conjuntas, concertadas e cooperativas, com a finalidade de unificar e racionalizar as ações mediante participação concomitante dos entes da federação. Pela proposta, participariam desse comitê o presidente da República, o ministro de Estado da Saúde, os governadores dos estados e do Distrito Federal e os prefeitos de capitais, tendo ainda direito a voz os representantes da Confederação Nacional dos Municípios e da Frente Nacional de Prefeitos.

A proposta prevê que a decisão coordenada federativa será tomada por maioria absoluta dos presentes, e pode determinar a adoção de medidas administrativas, trabalhistas, comerciais, econômicas ou tributárias a serem tomadas pelos entes da federação. Eventual dissenso na solução do objeto da decisão coordenada federativa deve ser manifestado durante a audiência, de forma fundamentada, acompanhado das propostas de solução e de alteração necessárias para a resolução da questão.

O projeto determina ainda que as medidas adotadas pelo comitê devem entrar em prática de imediato se tiverem natureza administrativa ou dependerem exclusivamente de ato do chefe do Poder Executivo do ente; ou, se tiverem natureza legislativa, devem ser objeto dos trâmites exigidos para o encaminhamento da proposição ao Poder Legislativo respectivo com a maior brevidade possível. A intenção, dessa forma, é que seja um comitê verdadeiramente integrado e de onde saiam soluções concretas para serem seguidas, de maneira coordenada, por todos os agentes públicos em todos os entes da federação.

Não há, como se observa, nenhuma grande inovação. Mas a aprovação dessa proposta —  apresentada originalmente como PLP 39/2020, no início da pandemia, em março de 2020, e ainda parada no Congresso Nacional — e a consequente criação da decisão coordenada administrativa poderão representar uma virada de chave na forma como o país tem enfrentado a pandemia e suas graves consequências.

A proposta, aliás, é importante não apenas para o momento atual, mas para possíveis outros desafios de saúde pública que o Brasil poderá enfrentar no futuro. Sua análise e aprovação pelo Congresso Nacional já tardam e será, certamente, mais uma importante colaboração que o Legislativo federal dará ao país nesse momento de tantas dificuldades e sofrimento.

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