opinião

Guerra às drogas e o massacre em Jacarezinho: mais um ato de terrorismo de Estado

Autores

  • Cristiano Avila Maronna

    é advogado mestre e doutor em direito penal pela USP diretor da Plataforma Justa membro da Rede Reforma e do coletivo Repensando a Guerra às Drogas autor de "Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade" (Ed. Contracorrente 2022).

  • Manuela Abreu

    é advogada criminalista e especializada em Processo Penal pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

16 de maio de 2021, 10h08

Em contramão à liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 635, que determinou a não realização de operações policiais em comunidades no Rio de Janeiro durante a pandemia do Covid-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, o governador Cláudio Castro, do Rio de Janeiro, chancelou a operação da Polícia Civil na favela do Jacarezinho, zona norte da cidade.

Reconhecida como a operação policial mais letal já ocorrida na história do município, com 28 pessoas mortas — todos jovens, homens, pobres e negros [1] — teve por motivação o combate ao tráfico de drogas.

As conhecidas operações das forças de segurança pública em nome do combate ao tráfico de entorpecentes na cidade carioca, na verdade, são utilizadas para esconder e naturalizar uma política criminal com derramamento de sangue, conforme afirma o professor e advogado Nilo Batista.

Essa política de extermínio exterioriza a distinção entre inimigos internos e externos, a militarização da vida cotidiana e o exercício de comandos militares para matar qualquer um, em qualquer lugar.

Nesse cenário, o policiamento ostensivo e a militarização do território inimigo, em nome do combate ao tráfico de drogas, instauraram um Estado policial de facto, no qual a presença das forças policiais ou de agentes de segurança pública em comunidades vulneráveis é naturalizado em cenas cotidianas de soldados armados, fardados, com fuzil na mão, caminhando entre crianças rumo à escola.

Diante disso, cria-se um leque de possibilidades de repressão policial, uma vez que a população pobre e negra, que vive nas periferias, esquecida pelo poder estatal, desrespeitada em suas garantias constitucionais, torna-se o alvo da política de guerra às drogas.

Não são poucos os exemplos de ações bárbaras cometidas por agentes de segurança pública carioca, é só lembrarmos de Agatha Félix, Luciano Macedo, Evaldo Rosa dos Santos e Cláudia Silva Ferreira. Elas e muitas outras vítimas do terrorismo de estado.

A guerra às drogas é utilizada como uma espécie de carta branca para a letalidade. Não por acaso, o combate ao tráfico de drogas é o motivo mais recorrente para as operações policiais na cidade do Rio de Janeiro, representando 45,1% das suas motivações. Nessa guerra, como de resto em qualquer outra, os danos colaterais são inevitáveis ("vão morrer alguns inocentes"), mas os protocolos sobre uso da força letal por forças de segurança cedem lugar a uma orientação político-criminal miliciana, que mira "na cabecinha" e alardeia que a polícia "vai atirar para matar". Claro que a ampliação do alcance e da incidência da legítima defesa para situações de confronto envolvendo agentes de segurança está no topo das prioridades da bancada da bala no Congresso e inclusive estava presente no original do pacote "anticrime" apresentado pelo então ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro.

No Rio de Janeiro houve um aumento relevante dos assassinatos cometidos por policiais na cidade: em 2013 a polícia era responsável por 13% dos homicídios na cidade; em 2018, ano da intervenção federal-militar decretada por Michel Temer e da guinada à direita na política nacional, esse número cresceu para 28%, enquanto em 2019 o número subiu para 40% das mortes.

Em relação à distribuição espacial das ações violentas das operações, dentre os cinco municípios com maior número de mortes em operações, encontram-se o Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Niterói, São Gonçalo e Belfort Roxo. Dentre os bairros, os cinco com maior número de mortes foram as favelas da Penha, Maré, Complexo do Alemão, Costa Barros e Santa Cruz.

Esses números [2] demonstram, portanto, que a política de extermínio tem cor, tem lugar e classe social e ela não se dá no "Vivendas da Barra", muito menos na Vieira Souto ou Delfim Moreira. Ela é a continuação das práticas de modelos colonialistas.

A operação no Jacarezinho serve como uma luva para demonstrar como os "velhos-novos" genocídios permanecem e se renovam nas práticas do governo brasileiro. Principalmente, como a noção da colônia como lócus de aprendizado para o massacre, confere atualidade à realidade enfrentada pela população que vive nas favelas.

Muito embora a escravidão e colônia tenha acabado, as relações coloniais permaneceram na modernidade, só que agora em uma nova forma, consistente na formação de Estados racistas.

Uma das características do modelo colonialista é reprimir, massacrar e cometer genocídios. Isso ocorreu na colônia, primeiro com a escravização dos negros. No domínio das repúblicas oligárquicas, com o massacre de Canudos (1896-1897). Na ditadura cívico-militar (1964-1985), com torturas e execuções de adversários políticos. E atualmente, na era da globalização dos mercados e do modelo econômico neoliberal.

Isto porque em uma ocupação colonial primeiramente ocorre a divisão do espaço em compartimentos, de modo que se definem fronteiras internas (favela-asfalto). Os agentes de segurança pública são considerados agentes "intermediários" entre as fronteiras estabelecidas dentro do estado racista. Eles não se preocupam em aliviar a opressão, não disfarçam a dominação, agem puramente na linguagem da força.

É exatamente o que ocorre na favela, um território onde seus moradores são desprovidos de estatuto político, tornando-se o que Giorgio Agamben denominou de campo, o lugar onde se encontra a conditio inhumana, que possui em sua estrutura político-jurídica um estado de exceção permanente, alheio ao estado normal da lei.

Dessa forma, a guerra às drogas na cidade do Rio de Janeiro — e em todo o Brasil — revela-se como uma tática racista de eliminação do inimigo, produzindo fronteiras entre favela e asfalto, em que favela é o espaço onde a norma jurídica não alcança, na qual a soberania é exercida à margem da lei. O direito de matar ampara-se na exceção e na noção ficcional do inimigo, fazendo com que a morte avance implacavelmente sobre a vida.

Luciana Zaffalon demonstra, em "A Política da Justiça", que o sistema de Justiça no Brasil criminaliza os pobres e blinda as elites e de quebra, recebe recompensas remuneratórias. A política criminal de guerra às drogas é a retórica do assassinato de corpos negros e pobres e nós que temos compromisso com a vida, precisamos nos insurgir contra a permanência das relações coloniais que ainda vigem na sociedade. Nós precisamos, sobretudo, desmantelar todas as estruturas nas quais o racismo continua a ser firmado, este é o único caminho para que a justiça e a liberdade alcancem todos os brasileiros.

Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Polen, 2019.

BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 20, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

MBEMBE, Necropolítica. São Paulo: n-1, 2018b.

ZAFFALON, Luciana. A Política da Justiça, São Paulo, Hucitec, 2018.

Autores

  • é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, conselheiro seccional da OAB-SP e diretor da plataforma Justa.

  • é advogada criminalista, membro da Comissão de Política de Álcool, Drogas e Saúde Mental da OAB-SP e coordenadora adjunta do Grupo de Diálogo Cárcere Comunidade (GDUCC-USP).

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