Opinião

Reprodução de violência contra a mulher em plenário não é técnica defensiva

Autor

16 de maio de 2021, 17h11

Em agosto de 2020, foi publicado na ConJur um artigo de opinião acerca dos impactos acarretados pelos estímulos sensoriais transmitidos ao Conselho de Sentença no curso de uma sessão plenária [1]. O trabalho frisou a forma com que a plenitude de defesa é explorada em especial, como forma de causar uma percepção favorável aos jurados sobre os fatos e o processo, de forma a conduzir a uma decisão favorável.

Para ilustrar, vale mencionar fatos noticiados também pela ConJur, a exemplo de um acusado de matar outro homem que foi absolvido pelos jurados mesmo após a acusação apresentar compatibilidade de DNA e sua confissão. Segundo especulado, a absolvição teria se dado em razão de uma técnica utilizada chamada nerd defense, verificada na apresentação do réu com aparência de intelectual, usando óculos e vestido sobriamente [2].

Ainda nessa perspectiva, já foi mencionada também uma técnica chamada de método réptil, que consiste em estimular uma área do cérebro do jurado chamada Complexo-R, responsável por conduzir à tomada de decisão a partir de impulsos sensoriais que despertam o instinto de sobrevivência. Isso significa que o fato de apresentar o réu como um perverso e cruel assassino pode aflorar o medo nos jurados e, por consequência, levar à condenação [3].

O procedimento especial do Tribunal do Júri promove uma simbiose da racionalidade no exame das provas com os fatores sensoriais que são trazidos pelas partes. Em juramento, de pé e com a mão direita estendida, o jurado promete decidir com imparcialidade, conforme a sua consciência e os ditames da Justiça. E toda a decisão vai ser construída a partir da experiência de vida do cidadão em conjunto com sua percepção do momento.

Isso significa que a essência do Tribunal do Júri está em grande parte na comunicação não verbal, na linguagem corporal dos personagens, nos gestos e no sentimento que tudo isso proporciona. Essa ideia, inclusive, já foi trazida por Ezilda Melo em seu livro "Tribunal do júri: arte, emoção e caos", em que afirma que "cada personagem, antes de ter uma atuação jurídica, tem uma atuação existencial e, em consequência de suas emoções, provoca alguma transformação no mundo" [4].

E por falar transformação do mundo e estímulos sensoriais, no último dia 10 a balança da Justiça se equilibrou após o Conselho de Sentença de Guarapuava (PR) condenar Luis Felipe Manvailer pelo homicídio qualificado da esposa, a advogada Tatiane Spitzner. Ele teve sua pena fixada em 31 anos, nove meses e 18 dias de reclusão, além do pagamento de R$ 100 mil de indenização à família da vítima.

Várias situações chamaram a atenção nesse processo, como por exemplo o sentimento provocado pela divulgação de imagens em que a vítima era violentada pelo condenado e a complexidade da sessão, que perdurou durante sete dias. No entanto, nesse caso, vale dar uma atenção especial a apenas um aspecto, qual seja, a conduta do advogado de defesa que reproduziu a agressão física sofrida por Tatiana com sua colega de profissão.

Em vídeo que foi transmitido pela imprensa, uma advogada da banca defensiva é realmente enforcada e chacoalhada por quase dois minutos pelo advogado Cláudio Dalledone Júnior, chegando, inclusive, a tropeçar e quase cair perante a todos que ali estavam. A "contribuição" da profissional na defesa de Manvailer se esgotou ali, eis que não falou uma palavra aos jurados.

O Tribunal do Júri possui rito diferenciado e garantido pela Constituição Federal e o exercício da plenitude de defesa é reservado. Tanto é verdade que essa "simulação" não foi cerceada. Todavia, avaliando o âmago do Tribunal do Júri e o impacto que as imagens têm na tomada de decisão dos jurados, a performace do advogado pode ter contribuído para a condenação do seu cliente.

Ainda que com o consentimento da profissional, é absurda uma agressão física perpetrada publicamente como forma de retórica. E não se pode falar em simulação, eis que a encenação deixou marcas no pescoço da profissional, as quais foram mostradas para os jurados.

Em um julgamento de feminicídio, a reprodução de lesões, menosprezo e machismo contra a mulher não contribui para que os jurados se sintam confortáveis e confiantes com a postura do profissional, ao contrário.

Atos dessa natureza apenas são capazes de transmitir medo, repulsa e preocupação tanto em relação à pessoa acusada quanto ao advogado. O cérebro humano é naturalmente programado para repelir situações de brutalidade, especialmente contra pessoa vulnerável. É um instinto primitivo se ter aversão a atos estúpidos e grosseiros.

Dessa maneira, como um profissional que se intitula especialista em Tribunal do Júri poderia esperar que um Conselho de Sentença absolvesse seu constituinte após ele mesmo ter reforçado em suas mentes a imagem de medo, abuso e violência? O exercício dessa "técnica argumentativa" parece um tanto quanto autofágica, seja avaliando do ponto de vista estratégico, seja sob o aspecto moral e humano.

Embora essa conduta ainda possa ser questionada na esfera ética, social, moral e até jurídica, do ponto de vista sensorial a reprodução de agressão apenas foi capaz de reafirmar o machismo, que tanto lutamos para combater, e possivelmente foi mais um elemento que conduziu Manvailer ao cárcere por mais de 31 anos.

 


[1] GOMES, Ana Beatriz; ASSAD, Thaise Mattar. O Tribunal do Júri é, antes de tudo, presença. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2020-ago-06/assad-gomes-tribunal-juri-antes-tudo-presenca#_ftn3]. Acesso em: 10/05/2021.

[2] MELO, João Ozório de. Caso nos EUA reaviva discussão sobre jurados tenderem a absolver réu de óculos. [https://www.conjur.com.br/2019-jun-08/eua-reaviva-discussao-juri-gostar-reu-oculos]. Acesso em: 10/05/2021.

[3] MELO, João Ozório de. Consultores explicam como vencer a estratégia do cérebro reptiliano. [https://www.conjur.com.br/2019-mai-05/consultores-explicam-vencer-estrategia-cerebro-reptiliano]. Acesso em: 10/05/2021.

[4] MELO, Ezilda. Tribunal do júri: arte, emoção e caos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 126/127.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!