Estado da Economia

O Rio São Francisco, quem diria, acabou no Amapá

Autor

  • Gilberto Bercovici

    é advogado professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito do IDP e da Uninove.

16 de maio de 2021, 8h01

As notícias sobre a distribuição de cerca de R$ 3 bilhões em emendas parlamentares para apoiadores do governo Bolsonaro no Congresso Nacional chamaram a atenção para um detalhe curioso. Um dos órgãos utilizados teria sido a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), que teria sido utilizada para a distribuição de recursos para parlamentares de vários estados, boa parte não compreendida no território irrigado pela Bacia do Rio São Francisco, como o Amapá. O objetivo deste texto é mostrar como foi possível tamanha expansão geográfica, fruto de décadas de falta de uma verdadeira política de desenvolvimento regional no país [1].

Spacca
A Segunda Guerra Mundial influenciou as decisões de criar o primeiro organismo federal de planejamento e coordenação para uma determinada região do território brasileiro: o Vale do Rio São Francisco. O Vale do Rio São Francisco era essencial para as comunicações entre o norte e o sul do país, prejudicadas com o torpedeamento da Marinha Mercante brasileira pelos submarinos alemães. A criação de um órgão federal de desenvolvimento regional não foi, portanto, fruto de aspirações políticas da região, mas de uma visão estratégica nacional [2].

A Comissão do Vale do São Francisco (CVSF) foi, assim, criada pela Lei nº 541, de 25/12/1948, regulamentando o disposto no artigo 29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1946 [3]. É o próprio artigo 29 que determina as limitações ao planejamento na Bacia do Rio São Francisco: a extensão da área (toda a bacia hidrográfica), o caráter essencialmente econômico do seu aproveitamento, a necessidade de um plano global, a duração da intervenção (20 anos) e o limite de recursos a serem empregados (1% das receitas federais) [4].

O modelo da CVSF foi expressamente inspirado na experiência norte-americana da TVA (Tennessee Valley Authority), criada em 18/5/1933, pelo TVA Act. A TVA é uma empresa pública autônoma (government corporation), encarregada do desenvolvimento regional de todo o Vale do Rio Tennessee, no sul dos Estados Unidos. O seu programa e organização diferiam em importantes aspectos dos padrões governamentais então tradicionais: até a sua criação, o conceito de planejamento regional nos Estados Unidos estava ligado ao planejamento urbano, particularmente no setor de transportes [5].

A grande inovação da TVA foi o fato de ser uma agência federal organizada sobre uma área de atuação regional. Ao contrário dos outros órgãos governamentais federais, a TVA não era incumbida de executar uma tarefa específica em todo o país, mas era responsável pelo desenvolvimento global, ou seja, fazia sozinha o que vários órgãos separados e independentes realizavam no resto do país, de uma região específica. Para evitar conflitos ou duplicação de atividades, a TVA buscou harmonizar suas tarefas com as dos outros órgãos federais na região. Além disso, a TVA não precisava respeitar limites estaduais ou departamentais na sua atuação, mas trabalhar o Vale do Tennessee como um todo. No entanto, suas políticas jamais poderiam ser executadas em competição com os estados ou municípios da região, mas em cooperação com estes governos [6]. O planejamento se manifestou como condução e controle dos programas de infraestrutura, construção de barragens, geração de energia e outras atividades, sempre levando em consideração o seu impacto sobre o desenvolvimento de toda a região [7].

Apesar de ter sido inspirada na TVA, a CVSF tinha competências muito mais amplas que a sua congênere norte-americana [8]. A finalidade da CVSF era a de suplementar e coordenar os órgãos estatais que atuavam na região, federais e estaduais [9]. No entanto, o Vale do São Francisco obteve os recursos antes de saber como empregá-los. A falta de um projeto de desenvolvimento definido fez com que os fundos fossem dispersos em uma série de atuações de pequeno porte, conhecida como "grande política de pequenos serviços" [10]: estradas de acesso, pequenos hospitais, fornecimento de água e energia para algumas cidades e outros, definidos por critérios exclusivamente político-partidários dos que controlavam a autarquia. O Plano Geral de Aproveitamento Econômico do Vale do São Francisco só foi aprovado quase sete anos depois da criação da CVSF, pela Lei nº 2.599, de 13 de setembro de 1955. Além disto, a CVSF nunca manteve contato institucional com outros organismos federais que atuavam na mesma área, como o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), para uma atuação conjunta [11].

Com a ditadura militar, houve uma reformulação dos órgãos de desenvolvimento regional. O Decreto-Lei nº 292, de 28/2/1967, extinguiu a CVSF e, em seu lugar, criou a Superintendência do Vale do São Francisco (Suvale). Ao contrário da CVSF, que, desde 1955, deveria executar o Plano Geral de Aproveitamento Econômico do Vale do São Francisco (Lei nº 2.599, de 13/9/1955), a Suvale não era vinculada a nenhuma espécie de plano, limitando-se a promover o aproveitamento econômico dos recursos naturais, criar oportunidades de investimento para o setor privado e disciplinar e regularizar o Rio São Francisco e seus afluentes, especialmente no tocante ao uso da água (artigo 2º do Decreto-Lei nº 292/1967).

Ainda em relação ao Vale do São Francisco, a Lei nº 6.088, de 16/7/1974, autorizou a extinção da Suvale, substituindo-a pela Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco). A Codevasf não era mais uma autarquia, mas uma empresa pública, voltada eminentemente para o aproveitamento econômico dos recursos de água e solo do Vale do São Francisco. O novo órgão ficou responsável pelo Programa Especial para o Vale do São Francisco (Provale), criado ainda em 1972 (Decreto-Lei nº 1.207, de 7/2/1972), que, sob o pretexto de ser um projeto de desenvolvimento da Bacia do Rio São Francisco, incentivou a formação de grandes empresas agropecuárias para a exploração de áreas irrigadas [12].

A Codevasf atua até hoje com o discurso do desenvolvimento dos potenciais das bacias hidrográficas, mas com a mesma lógica da "grande política de pequenos serviços" que caracteriza o órgão desde os tempos da CVSF. A importância dessa política não pode ser menosprezada, especialmente no sistema brasileiro em que o apoio parlamentar às pautas do Poder Executivo depende do atendimento de reivindicações das bases eleitorais dos congressistas. Com a privatização e o desmonte do Estado, as políticas desenvolvidas por empresas públicas como a Codevasf ganharam importância ainda maior.

Não por acaso, houve um fenômeno de progressiva expansão da base de atuação geográfica da Codevasf nos últimos anos, visando a atender mais pleitos de deputados e senadores. A Lei nº 9.954, de 6/1/2000, ampliou a área de atuação da empresa para o Vale do Rio Parnaíba, podendo atuar nos estados de Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Goiás, Distrito Federal, Piauí e Maranhão e a renomeou para Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba. Em 2009, a Lei nº 12.040, de 1/10/2009, incluiu o Ceará na área de atuação da Codevasf. Em complementação a essa expansão, a área de atuação da Codevasf foi ampliada para as os vales dos rios São Francisco, Parnaíba, Itapecuru e Mearim, conforme determinou a Lei nº 12.196, de 14/1/2010. Finalmente, em 2020, o Congresso Nacional expandiu a área de atuação da Codevasf para cerca de metade do país. De acordo com a Lei nº 14.053, de 8/9/2020, a atuação da Codevasf se dá nas bacias hidrográficas dos Rios São Francisco, Parnaíba, Itapecuru, Mearim, Vaza-Barris, Paraíba, Mundaú, Jequiá, Tocantins, Munim, Gurupi, Turiaçu, Pericumã, Una, Real, Itapicuru, Paraguaçu, Araguari (AP), Araguari (MG), Jequitinhonha, Mucuri e Pardo, nos estados de Alagoas, do Amapá, da Bahia, do Ceará, de Goiás, do Maranhão, de Mato Grosso, de Minas Gerais, do Pará, de Pernambuco, do Piauí, de Sergipe e do Tocantins e no Distrito Federal, bem como nas demais bacias hidrográficas e litorâneas dos estados de Alagoas, do Amapá, da Bahia, do Ceará, de Goiás, do Maranhão, da Paraíba, de Pernambuco, do Piauí, do Rio Grande do Norte e de Sergipe.

O Congresso Nacional brasileiro comprovou, assim, que é mais poderoso do que o Parlamento britânico na descrição clássica do livro "Constitution de l’Angleterre", de Jean-Louis De Lolme, publicado em 1771, para quem o Parlamento britânico podia tudo, "menos tornar uma mulher um homem e um homem uma mulher" (no original de 1771: "Le parlement peut tout faire sauf faire d'une femme un homme et d'un homme une femme").

O nosso Congresso demonstrou que pode tudo e um pouco mais: mudar a geografia do país. O Rio São Francisco, assim, parece cumprir seu destino manifesto de "rio da integração nacional" e, ao invés da Greta Garbo da peça de Fernando Mello, não acabou no Irajá, mas, quem diria, foi terminar no Amapá.

 


[1] Sobre a questão de uma política nacional de desenvolvimento regional, vide Gilberto BERCOVICI, Desigualdades Regionais, Estado e Constituição, São Paulo, Max Limonad, 2003.

[2] Lucas LOPES, O Vale do São Francisco: Plano das Obras de Recuperação Econômica do São Francisco – Análise Cultural e Técnica de suas Diretrizes, Rio de Janeiro, Ministério da Viação e Obras Públicas – Serviço de Documentação, 1950, pp. 27-30 e 165-166 e Salomão SEREBRENICK, "A Comissão do Vale do São Francisco – Objetivos e Realizações", Revista Brasileira de Geografia, ano 22, n. 2, abril/junho de 1960, p. 130.

[3] Artigo 29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1946: "O Governo Federal fica obrigado, dentro do prazo de 20 anos, a contar da data da promulgação desta Constituição, a traçar e executar um plano de aproveitamento total das possibilidades econômicas do rio São Francisco e seus afluentes, no qual aplicará, anualmente, quantia não inferior a um por cento de suas rendas tributárias".

[4] Lucas LOPES, O Vale do São Francisco cit., pp. 55-59 e Salomão SEREBRENICK, "A Comissão do Vale do São Francisco – Objetivos e Realizações" cit., pp. 129-130.

[5] C. Herman PRITCHETT, The Tennessee Valley Authority: A Study in Public Administration, 2ª ed., New York, Russell & Russell, 1971, pp. 3-4, 28-30 e 117.

[6] C. Herman PRITCHETT, The Tennessee Valley Authority cit., pp. 3-4, 131-132 e 134-135. O programa e a forma de atuação da TVA tiveram sua constitucionalidade contestada: existiam dúvidas se uma agência federal poderia, de acordo com a Constituição, executar um programa tão vasto, além de operar nos Estados sem estar submetida ao seu controle. Além disto a TVA poderia estar interferindo ilegalmente no poder de polícia dos Estados ao regular taxas, especialmente as taxas referentes à energia elétrica. Em 1939, a Suprema Corte se manifestou pela constitucionalidade da atuação da TVA. Vide C. Herman PRITCHETT, The Tennessee Valley Authority cit., pp. 57-65 e 108-115.

[7] C. Herman PRITCHETT, The Tennessee Valley Authority cit., pp. 119-121. A TVA notabilizou-se pela geração e distribuição de energia elétrica. Vide C. Herman PRITCHETT, The Tennessee Valley Authority cit., pp. 56-57, 65-104 e 115-116. Essa atividade da TVA também influenciaria na constituição da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), criada pelo Decreto-Lei nº 8.031, de 3 de outubro de 1945. A CHESF caracterizou-se pela atuação eficiente, técnica e limitada ao desenvolvimento do potencial hidrelétrico da Bacia do Rio São Francisco. Atividades facilmente incorporadas, posteriormente, ao esforço desenvolvimentista da SUDENE. Cf. Albert O. HIRSCHMAN, Journeys Toward Progress: Studies of Economic Policy-Making in Latin America, Nova York, The Twentieth Century Fund, 1963, pp. 55-58.

[8] Albert O. HIRSCHMAN, Journeys Toward Progress cit., p. 53.

[9] Para Lucas Lopes, que participou da criação da CVSF, a experiência deste órgão de desenvolvimento regional seria inovadora e dinamizaria a organização federativa, com a cooperação e o aperfeiçoamento das relações intergovernamentais. Vide Lucas LOPES, O Vale do São Francisco cit., pp. 21-25.

[10] Cf. Salomão SEREBRENICK, "A Comissão do Vale do São Francisco – Objetivos e Realizações" cit., p. 130. Havia também o entendimento, explicitado por Lucas Lopes, de que a resolução dos problemas do Vale do São Francisco era, basicamente, uma questão de engenharia. Cf. Lucas LOPES, O Vale do São Francisco cit., pp. 166-170.

[11] Lucas LOPES, O Vale do São Francisco cit., pp. 61-64; Salomão SEREBRENICK, "A Comissão do Vale do São Francisco – Objetivos e Realizações" cit., pp. 130-132; Albert O. HIRSCHMAN, Journeys Toward Progress cit., pp. 50-55; Alberto VENÂNCIO Filho, A Intervenção do Estado no Domínio Econômico: O Direito Público Econômico no Brasil, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1968, pp. 306-309; Washington Peluso Albino de SOUZA, "O Planejamento Regional no Federalismo Brasileiro" in Washington Peluso Albino de SOUZA, Estudos de Direito Econômico, Belo Horizonte, Movimento Editorial Faculdade de Direito da UFMG, 1996, vol. 2, pp. 158 e 174-175.

[12] Marcel BURSZTYN, O Poder dos Donos: Planejamento e Clientelismo no Nordeste, Petrópolis, Vozes, 1984, pp. 80-81 e Inaiá Maria Moreira de CARVALHO, O Nordeste e o Regime Autoritário: Discurso e Prática do Planejamento Regional, São Paulo, Hucitec/SUDENE, 1987, pp. 215-216.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!