Peixe podre

PGR diz que Cabral mente na delação, Fachin recua e acaba negando pedido da PF

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15 de maio de 2021, 7h27

Em nova manifestação nesta sexta-feira (14/5), a Procuradoria-Geral da República informou ao Supremo Tribunal Federal que a delação premiada de Sérgio Cabral dá mostras de "falta de boa-fé e de lealdade ao apresentar, mais de um ano após a homologação de seu acordo, os novos relatos que a PF denominou de narrativas complementares". "O método adotado permite o surgimento de novas narrativas quando o colaborador julgar oportuno." 

Alex Ferro/ Rio 2016
O ex-governador Sérgio Cabral (MDB-RJ)Alex Ferro/Rio2016

A peça, assinada pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, destaca também a inconveniência da possibilidade de a polícia firmar acordos de colaboração sem a anuência do Ministério Público, único órgão capaz de propor ações penais.

Tudo isso depois que, também nesta semana, o delegado Bernardo Guidali Amaral, da Polícia Federal, pediu ao STF a abertura de um inquérito contra o ministro Dias Toffoli, integrante da Corte, pelo suposto favorecimento a prefeitos fluminenses em troca de R$ 4 milhões. A iniciativa é baseada exclusivamente em relatos do ex-governador do Rio de Janeiro.

No fim da noite desta sexta-feira, porém, o ministro Edson Fachin, do Supremo, recuou e determinou "que a autoridade policial se abstenha de tomar qualquer providência ou promover qualquer diligência direta ou indiretamente inserida ou em conexão ao âmbito da colaboração premiada em tela até que se ultime o julgamento antes mencionado".

Preso desde novembro de 2016 e condenado em 13 ações penais cujas penas somadas ultrapassam os 300 anos de reclusão, a delação de Cabral é marcada por idas e vindas e cada vez mais faz água. Na acusação contra Toffoli, por exemplo, sustenta que teria ouvido dizer que o ministro, quando atuava no Tribunal Superior Eleitoral, topou vantagem ilícita.

A informação foi desmentida nesta quinta-feira (13/5) por Hudson Braga, ex-secretário de Obras do Rio de Janeiro e que teria sido, na palavra do ex-governador, o intermediário nos supostos acertos com o ministro. Os trechos da delação que citavam Toffoli já haviam sido arquivados pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, por falta de elementos comprobatórios contra o ministro do STF.

Na primeira tentativa de fechar um acordo de delação com o Ministério Público, Cabral chegou a enviar um lote de 20 relatos em que afirmava ter conhecimento de supostos crimes cometidos por autoridades e empresários. A proposta foi recusada pela franquia fluminense da "lava jato" porque os procuradores acreditavam que o político ocultava fatos e patrimônio.

Cabral então tentou fechar um acordo com a Polícia Federal e acabou tendo "mais sorte". A delação foi homologada pelo ministro Edson Fachin, relator da finada "lava jato" no Supremo. A PGR apresentou embargos de declaração, que devem ser julgados pelo Plenário virtual do STF a partir do próximo dia 21. Dos 20 anexos iniciais oferecidas ao MP, a estimativa é que a delação de Cabral alcance mais de 80 anexos cujos relatos chegam a milhares de páginas.

O atual PGR, Augusto Aras, sustenta que existem "fundadas suspeitas" de que o ex-governador continua ocultando o paradeiro de valores recebidos de forma ilícita ao longo do funcionamento do "esquema criminoso que vem sendo desbaratado desde 2015".

Para Aras, "é inconciliável que alguém ostente a condição de um colaborador ao tempo em que continua ocultando produto do crime [tipo penal previsto no artigo 1º, caput da Lei 9.613/1998]".

Além das alegações da PGR, as delações de Cabral têm sido marcadas pela fragilidade probatória. O próprio ministro Dias Toffoli — agora alvo do delator — já havia arquivado 12 inquéritos envolvendo ministros do Tribunal de Contas da União, do Superior Tribunal de Justiça e deputados federais.

Em artigo publicado na ConJur, o advogado Aury Lopes Jr. escreveu que o caso do ministro Toffoli "remete a um elemento ainda mais estarrecedor: é uma delação de 'ouvi dizer'". "Ora, se a testemunha de 'ouvi dizer' (hearsay) deveria ser vedada, de proibida admissibilidade, o que dizer de uma delação a partir do que o "delator-ouviu-dizer"? Além da absoluta falta de credibilidade e, principalmente, valor epistêmico, a questão já foi tratada pelo STF no Inquérito 4.244 e merece análise à luz dos últimos acontecimentos", sustenta.

Outros especialistas ouvidos pela ConJur compartilham do mesmo estranhamento. "Há muito tempo temos chamado a atenção para o fato de que a delação premiada passou a ser um instrumento de ataque contra alvos pré-definidos. É uma ferramenta para a prática do lawfare. O material que levamos ao STF na Reclamação 43.007 é prova disso", disse à ConJur o advogado Cristiano Zanin, em referência aos diálogos entre procuradores do Paraná e o ex-juiz Sergio Moro.

O jurista Lenio Streck, colunista da ConJur, afirmou que a Polícia Federal desrespeitou hierarquias institucionais ao enviar o pedido ao Supremo. "O delegado ultrapassou o Rubicão. Foi longe demais. Passou por cima do procurador-geral da República, o que não é pouca coisa. Pegou uma xepa de delação rejeitada do MP. Grave. Ele não atinge o ministro Dias Toffoli. Parece que seu alvo é o STF", pontuou.

O advogado Pierpaolo Cruz Bottini, por sua vez, lembra que investigações não podem ser tocadas apenas com base na palavra do delator, conforme a jurisprudência do Supremo e a lei "anticrime" (Lei 13.964/2019).

Para o criminalista Alberto Zacharias Toron, o STF sofre uma campanha de descrédito, "que vem agora coroada com essa ideia de se investigar um ministro com base em declarações desacreditadas — até pelo próprio MP, que se recusou a celebrar o acordo de delação com o ex-governador do Rio de Janeiro". "Agora, a PF assumiu esse encargo e fez o pedido esdrúxulo de investigar um ministro do STF", diz.

Delação pela polícia
A Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) permitiu que, além do Ministério Público, delegados de polícia façam acordos de delação premiada e peçam que o Judiciário diminua penas ou conceda perdão judicial a investigados.

Em abril de 2016, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu que o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade dos trechos do artigo 4º, parágrafos 2º e 6º, da Lei das Organizações Criminosas, que conferem à polícia judiciária o poder de firmar acordos de colaboração premiada.

Segundo Janot, a delação só pode ser firmada pelo MP, uma vez que é este órgão que detém o poder de mover ou não a ação penal. Além disso, o PGR opinou que a cooperação feita com a polícia viola o direito de defesa do acusado, pois aquela corporação não é parte do processo.

A Advocacia-Geral da União avaliou a questão de forma diferente. Em manifestação naquela ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.508), a procuradora federal Maria Carla de Avelar Pacheco entendeu que a delação é só mais um meio de obtenção de provas. Por isso, seu uso pela polícia não pode ser impedido. Caso contrário, o combate ao crime organizado ficaria prejudicado.

Mesmo com a ADI em curso, a Polícia Federal firmou alguns termos de delação, como os com o publicitário Marcos Valério e o marqueteiro Duda Mendonça. Diferentemente das delações celebradas pelo Ministério Público, os acordos dos dois não estabeleceram benefícios. Os compromissos apenas determinaram que o juiz poderia, depois de ouvir o MP, conceder perdão judicial ou reduzir a pena em até dois terços, como previsto no artigo 4º da Lei das Organizações Criminosas.

A notícia de que a PF havia firmado acordos de delação premiada levantou dúvidas sobre a eficácia dessa transação, que, na operação "lava jato", vinha sendo conduzida apenas pelo Ministério Público Federal. Por um lado, delegados afirmaram que essa forma de colaboração não difere da outra, e é prevista na Lei das Organizações Criminosas. Por outro, procuradores da República disseram que tal via não dá segurança jurídica ao criminoso confesso, pois não impede o MP de mover ação penal.

Em meio à disputa entre Ministério Público e Polícia Federal ou Civil, advogados cobraram que esses órgãos lutassem para que a Lei das Organizações Criminosas fosse reformada para incluir dispositivo estabelecendo que representantes das duas instituições participem das negociações de compromissos desse tipo. Na visão deles, a medida diminuiria conflitos entre as corporações e aumentaria a segurança jurídica. Além disso, deixaria os delatores mais tranquilos por saberem que estão lidando com autoridades que trabalham em conjunto.

O Supremo, em junho de 2018, decidiu que a polícia pode firmar acordo de colaboração premiada com investigados. A Corte, seguindo o voto do relator, ministro Marco Aurélio, considerou que a medida está de acordo com a Constituição e com as funções da polícia judiciária. Especialmente porque é o Judiciário que decide se o compromisso de colaboração tem validade ou não. Para o ministro Gilmar Mendes, por exemplo, o juiz pode reconhecer a colaboração do réu até mesmo sem acordo com o MP ou com a Polícia — já que cabe a ele conceder os favores da lei.

Mas como o exercício da ação penal pública cabe ao Ministério Público, não há muitos benefícios que a polícia pode oferecer ao acusado. Dessa forma, esses compromissos seriam limitados e ineficazes, avaliaram especialistas.

Como a Constituição estabelece que só o MP pode mover ação penal pública, a polícia não participa da persecução penal. Sendo assim, não tem o que negociar. Além disso, o MP não pode ser obrigado a aceitar os termos de compromisso firmado pela polícia e investigado que lhe impeça de exercer seu poder de acusar, disseram advogados.

Conforme procuradores da República, a polícia poderia apenas dispor de pontos que titulariza, como a organização do andamento da investigação (perícias, depoimentos e outros procedimentos), eventual condução coercitiva, indiciamento etc. Mas jamais dispor da ação penal, de atribuição de penas e da forma de cumprimento delas.

Delação de Palocci
Além de Sérgio Cabral, outra delação problemática firmada pela Polícia Federal é a do ex-ministro Antonio Palocci. O acordo foi firmado com a PF após recusa do Ministério Público Federal.

Mensagens trocadas por integrantes da força-tarefa da "lava jato" no Paraná indicam que Sergio Moro, ex-juiz da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, tinha interesse na celebração de certos acordos de colaboração, como o do ex-presidente da OAS Léo Pinheiro e o de Palocci. O intuito era ter fundamentos para condenar o ex-presidente Lula. Vale lembrar que juiz não pode participar das negociações de termo de delação.

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Delação de Palocci teve sigilo levantado pelo ex-juiz Sergio Moro às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018
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Na delação, Palocci acusou Lula de corrupção. Às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018, Sergio Moro levantou o sigilo de um dos anexos da delação. As informações foram usadas na campanha eleitoral para atacar o candidato do PT a presidente, Fernando Haddad, especialmente por seu oponente no segundo turno, Jair Bolsonaro — que venceu a disputa. Até procuradores da "lava jato" consideraram que a divulgação do documento por Moro foi uma tentativa de influenciar as eleições.

O Conselho Nacional de Justiça pediu a Moro explicações sobre a publicidade da delação de Palocci. Em resposta ao CNJ, Moro afirmou que não 'inventou' a fala do ministro ou os fatos ali descritos. Ele afirmou ainda que não podia interromper os seus trabalhos apenas porque havia uma eleição em curso.

Quatro dias após o segundo turno das eleições, Moro aceitou convite do recém-eleito presidente Bolsonaro para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Em 2020, um inquérito concluiu que os únicos elementos de corroboração de um anexo da delação produzida por Palocci são notícias de jornais que, na coleta de provas, não se confirmam. Os anexos tratam de acusações em torno do Fundo Bitang — que envolvia pessoas como Lula, o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e André Esteves (BTG), entre outros.

O episódio que ensejou o relatório da PF refere-se à suposta tentativa de petistas e empresários de "operar o Banco Central". A PF concluiu que esse episódio, narrado por Palocci, não aconteceu.

A "operação" do Banco Central teria ocorrido em meados de 2011: o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, teria informado ao banqueiro André Esteves — do BTG Pactual — que, diferentemente da expectativa do mercado, a taxa Selic seria reduzida. O Comitê de Política Monetária (Copom), na reunião de 31 de agosto de 11, reduziu a Selic de 12,5% para 12%.

Para Palocci, o repasse dessa informação privilegiada teria feito a fortuna do fundo Bintang, administrado pelo BTG e cujo gestor é Marcelo Augusto Lustosa de Souza.

Após o depoimento de Palocci, a PF foi investigar se a narrativa dele se sustentava. Para tanto, ouviu os personagens citados pelo ex-ministro e colheu provas. Concluiu que não há motivos para a continuidade da persecução penal.

O relatório da PF afirma que as assertivas de Palocci, ao que tudo indica, foram retiradas de pesquisas na internet e não acrescentam elementos novos — apenas notícias de jornais. Notícias que não foram confirmadas pelas provas produzidas.

Os advogados de Palocci Tracy Reinaldet e Matteus Macedo divulgaram nota na época sobre o caso.

"É natural que investigados neguem o fato delatado, como já ocorreu em diversos inquéritos da operação Lava Jato. É importante dizer que há na investigação da PF prova pericial que comprova a veracidade da colaboração de Palocci. Além disto, existem outros fundos indicados pelo colaborador que ainda não foram investigados pela PF e que confirmam a versão do ex-ministro. De outro lado, os elementos de corroboração fornecidos por Palocci, como agendas e contratos, nunca tiveram sua autenticidade contestada. Pelo contrário."

Nesta semana, um outro episódio pode enterrar de vez o acordo que Palocci havia fechado com a Procuradoria-Geral da República.

Um áudio gravado pelo fundador e ex-presidente da operadora de planos de saúde Qualicorp, José Seripieri Junior, mostra que Pedro, irmão do ex-ministro, antecipa detalhes da delação premiada. Diz que a acusação é mentirosa e, em resposta, oferece o contato do advogado "que pegou todas as informações".

Com isso, o procurador-geral da República, Augusto Aras, deve pedir o arquivamento da delação de Antonio Palocci.

PET 8.482
Clique aqui para ler a decisão de Fachin

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