Opinião

Quando a Suprema Corte dos Estados Unidos legalizou o aborto

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15 de maio de 2021, 18h15

Aborto, do latim ab-ortus, significa a privação do nascimento. Dados da OMS apontam que entre 2010 e 2015 foram realizados 55 milhões de abortos em todo o mundo. Mas, se é tão frequente, por que o aborto é sempre uma temática tão polêmica? Basta compreender as diversas esferas em que essa pauta está inserida, como religião, política, jurídica, constitucional, filosófica e saúde, sendo esta a última a ser devidamente analisada. O caso Roe v. Wade foi o primeiro a decidir que a mulher seria quem deveria ter o direito a escolher sobre a continuidade ou não de sua gravidez nos Estados Unidos. Esse poder de escolha conferido à mulher impactou a sociedade da época.

Nas décadas de 1950 e 1960, nos Estados Unidos o aborto era ilegal, as mulheres para realizar esse procedimento buscavam clínicas clandestinas e médicos dispostos a ajudá-las, e as que possuíam boas condições financeiras iam para outros países e efetuavam o aborto. As mais pobres, principalmente as negras, eram as que mais sofriam com essas restrições legislativas; sem amparo financeiro, suas vidas ficavam vulneráveis às inseguranças dos meios de efetuar o aborto ilegalmente. Muitas jovens tentavam abortar por conta própria, com cabides, facas e outras ferramentas. Em 1965, 350 mil mulheres tiveram complicações ao tentar abortar e, dessas, cinco mil morreram no país.

Em 1968, Ronald Reagan, então governador da Califórnia e membro do Partido Republicano, aprovou a Lei do Aborto Terapêutico. Posteriormente, Nova York aboliu por completo a lei sobre aborto do século 19 e no estado o procedimento se tornou legal até o segundo trimestre da gestação, sendo que o único requisito era a escolha da mulher. No dia primeiro de julho de 1970, em Nova York, abriu a primeira clínica legal de aborto dos Estados Unidos. Entretanto, essa era a realidade de apenas dois dos 50 estados do país; nos estados mais conservadores, como Texas, Oklahoma, Kansas e Arizona; o cenário era ainda mais difícil para as mulheres.

O caso Roe v. Wade se sucede logo em um dos locais mais conservadores do país, na cidade de Dallas, no Texas. Em 1969, Norma L McCorvey, aos seus 21 anos, descobriu a gravidez de seu terceiro filho, ela já não detinha a guarda dos outros dois por inaptidão, era usuária de drogas, não tinha um trabalho fixo e já teria sido moradora de rua, além de ser uma mãe solteira e não ter uma família, ou seja, não possuía qualquer condição para criar seus filhos de uma maneira minimamente adequada. Decidida a abortar, Norma, com esperanças de acreditarem no seu relato, disse que foi estuprada por uma gangue, já que, no Texas, era permitido o aborto somente em casos de risco à vida da mãe, de estupro e incesto. Contudo, seu depoimento não foi suficiente e ela não pôde realizar o aborto por falta de evidências sobre o falso estupro. Então, Norma buscou uma clínica ilegal em Dallas, mas esta havia sido fechada pela polícia e sua condição financeira não possibilitava que ela fosse a outro estado em busca de outra clínica clandestina. Foi aí que ela foi encaminhada para as advogadas Linda Coffee e Sarah Weddington, recém-formadas, ambas à procura de uma mulher que se propusesse a entrar em juízo contra as leis do Texas que limitavam a realização do aborto.

No meio de 1970, as advogadas entraram com uma ação na Corte Distrital dos Estados Unidos para o Distrito Norte do Texas em nome de Norma McCorvey, utilizando o pseudônimo de Jane Roe, uma espécie de Maria da Silva no Brasil, para preservar sua identidade. A ação foi proposta contra o promotor Henry Wade, que representava o estado do Texas. Nesse contexto, Jane Roe não alegava mais que tinha sido vítima de estupro. Na primeira instância federal do Texas, foi requisitada pelas advogadas a interrupção da gravidez e a revogação das leis penais restritivas ao aborto. Primeiramente, Henry Wade negou o pedido de mudança da legislação texana sobre o aborto e argumentou sobre a proteção do direito do feto e que o aborto era equivalente ao assassinato.

O polo ativo era composto por Jane Roe, por todas as mulheres que viviam em situações semelhantes e por um médico conceituado do Texas que se voluntariou visando à saúde das mulheres. As advogadas buscavam por um efeito erga omnes da decisão, com o qual obtivessem efeito para todo o país.

Posteriormente, a ação foi encaminhada para o tribunal distrital e, por decisão unânime, foi declarada a inconstitucionalidade das leis do Texas que tratavam do aborto. Foi alegado que a lei violaria o direito à privacidade da mulher prevista na 9º e na 14º Emendas. Ademais, foi utilizado o caso Griswold v. Connecticut como precedente, nesse caso de 1965 a Suprema Corte americana declarou que a Constituição dos Estados Unidos, por meio da bill of rights, resguardou o direito fundamental à privacidade. Entretanto, a decisão teve efeito restrito a Jane Roe, diferentemente do que as advogadas buscavam.

As advogadas, o médico voluntário e Henry Wade apelaram para a Suprema Corte. Além disso, um caso paralelo também entrou como interessado, o Doe v. Bolton, no qual tratava-se de um casal da Geórgia que também teve seus nomes preservados com pseudônimos, em que Mary Doe ajuizou uma ação contra o procurador-geral da Geórgia, Arthur K. Bolton, pelo direito de abortar, caso necessário, já que Mary não podia tomar contraceptivos.

O caso chegou à Suprema Corte e, com o tempo que foi passado durante os trâmites dos processos, Jane Roe já havia dado luz à sua filha e esta foi encaminhada para a adoção. Ainda que não houvesse mais o interesse específico de Jane, ainda havia o interesse de todos os outros estados sobre a decisão acerca do aborto. As advogadas — Sarah Weddington foi a advogada mais jovem a arguir na Suprema Corte, com apenas 26 anos  sustentaram na Suprema Corte sobre a equidade de gênero, o direito à privacidade proposto na 14º Emenda. Ainda foram utilizados cerca de 230 depoimentos médicos para suscitar a questão da saúde também crucial no caso.

A decisão da Suprema Corte ocorreu no dia 22/1/1973. Foram sete juízes favoráveis contra dois divergentes, Biron White e William Rehnquest. A resolução foi que a mulher era quem deveria decidir em continuar ou não com a gravidez. O juiz Harry Blackmun, relator da decisão escreveu que a grande maioria das leis contra o aborto nos Estados Unidos restringia o direito constitucional à privacidade previsto na 14º Emenda do bill of rights. A resolução do caso tornou-se emblemática por despenalizar o aborto nos 50 estados dos Estados Unidos. Toda a legislação que penalizava ou restringia o aborto da época teve de ser modificada. Posteriormente, nenhum estado poderia aprovar leis que restringissem totalmente o aborto nos dois primeiros trimestres de gestação. A decisão também foi aplicada para o caso Doe v. Bolton apresentado anteriormente.

No contexto da Suprema Corte do ano de 1973, a decisão foi extremante improvável, os juízes estavam bem polarizados sobre o caso. Ademais, havia o fato de que na época a corte era composta por quatro juízes indicados pelo então presidente Richard Nixon, que seguia uma linha de pensamento mais conservadora. A corte era formada por nove homens de meia idade ou idosos. A resolução foi pioneira e até adiantada para a época. Posto que, ao se fazer uma comparação com o Brasil, no ano de 2021, quase 50 anos depois, ainda se discute a ADPF 442 proposta pelo Psol, que busca o debate dos artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro, que criminalizam a interrupção da gravidez de maneira voluntária.

Vale ressaltar que, quando a decisão foi proferida nos Estados Unidos, o aborto não era uma pauta partidária, nem estava em voga, como hoje é citado, a bandeira feminina. Tanto que o Partido Republicano, mais conservador, na época era pró-escolha, ou seja, acreditava que cabia somente à mulher decidir sobre a continuidade ou não de sua gravidez, pois acreditavam que essa decisão não deveria ser tomada pelo Estado.

Ainda que no primeiro momento a decisão não tenha sido tão acatada pela perspectiva de gênero, como era o desejo das advogadas do caso, tratou-se de um grande marco do constitucionalismo feminista. Nesse cenário, o movimento feminista nos EUA estava em grande ascensão. A revolução sexual que ocorreu nos anos 60 deu os primeiros passos para a emancipação da mulher com o advento das pílulas anticoncepcionais. No âmbito intelectual, duas obras que almejavam desconstruir o papel da mulher na sociedade tiveram grande destaque, "O Segundo Sexo", de Simone Beauvoir, e "A Mística do Feminino" de Betty Friedan. Nas décadas de 1960, 1970, o feminismo se consolidou como um movimento político. As feministas reivindicavam igualdade entre homens e mulheres, principalmente no âmbito profissional, lutavam pela mesma faixa salarial entre os gêneros. Uma de suas pautas principais era sobre as mulheres terem direito sobre seus próprios corpos, e não esse ser um direito do Estado, o de controlar os corpos femininos. O que era o caso do aborto, em que as feministas se declaravam pró-escolha. Assim, a decisão de Roe v. Wade, embora não tenha sido tão baseada na pauta de gênero, foi um grande marco para o movimento feminista.

Em 2018, a Netflix lançou um documentário sobre o caso, o "Reversing Roe" (a tradução seria "Revertendo a Roe"), que expõe como eram realizados os abortos de forma ilegal antes da decisão do caso, como as mulheres arriscavam suas vidas, e retrata os desdobramentos após a resolução. Deveria haver uma espécie de final feliz para aquelas mulheres, mas a produção retrata o grande movimento existente para a anulação do Roe v. Wade. Vale ressaltar que a indignação vem principalmente por ter dado a liberdade de escolha à mulher, essa liberdade que causa, mesmo que de forma implícita, um grande incômodo na parte mais conservadora da sociedade.

 

Referências bibliográficas
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Reversing Roe. Diretores: Ricki Stern e Annie Sundberg. Estados Unidos: Netflix, 2018. Documentário (120 minutos).

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TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2. ed. Trad. Neil Ribeiro da Silva. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977.

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