Observatório constitucional

É o fim das políticas públicas baseadas em achismo?

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15 de maio de 2021, 8h00

(Num país tão, tão distante…)

Cena 1: Reunião na sede do Poder Executivo federal. Médicos estranhos aos quadros da Administração Pública participam. Clima de algazarra. Mostram ao diretor de um órgão regulatório a minuta de um decreto presidencial para alterar a bula de um remédio (?). O ministro da Saúde cora. O diretor se revolta e aponta o absurdo da situação. Gritaria, barulho, confusão.

(Corta para a Cena 2)

Cena 2: Numa reunião que discute a compra de vacinas para combater uma doença que já matara milhares de pessoas, entra na sala um vereador que nada entende de políticas de saúde e não tem relação institucional com o tema, e começa a opinar sobre questões técnicas. Alguém tuíta que "a vacina não será comprada". Seguidores regozijam.

(Pano rápido)

Cena 3: Um membro do Ministério Público, alegando independência funcional (precisamos conversar sobre ela…), expede notificações aos órgãos públicos para saber por que eles não adotam um coquetel de combate a uma determinada doença. O coquetel é composto por chá de carqueja, flor de lótus e cravo-da-índia. Desconhece-se a origem da formação médica do membro do Parquet. O chefe do Executivo concorda: "Eu tomei e não morri!", brada, triunfante e orgulhoso da própria descoberta científica.

(Preparação para o ato final)

Cena 4: Os membros da oposição divergem sobre a estratégia de combate aos devaneios do governo. Um deles lembra, com saudade, de quando pessoas com nota zero entravam em faculdades para cursos sem qualquer qualidade e assumindo dívidas impagáveis, sem controle plausível: "Não tem mais isso porque há preconceito!", brada. Outro se recorda de quando sobrava dinheiro para os estudantes irem fazer turismo no exterior com recursos públicos, fazendo cursos de língua estrangeira às expensas do contribuinte, sem qualquer tipo plausível de contraprestação. "É culpa do neoliberalismo", resume. Ouvem-se gritos de "lacrou, lacrou!".

(Ouvem-se sons de choro e lamentação; entra o coro)

Coro: "E eu vou seguir… minha intuição… minha intuição…".

(…)

Essas cenas — obviamente pura ficção, mas que devem se repetir como maldição em algum lugar do globo — ilustram os perigos de se fazer, pensar e acompanhar políticas públicas com base em intuição, feeling, improviso, achismo. Logicamente, esse é um dos problemas que mais afligem o Brasil também.

Temos uma produção científica de respeito em relação a temas como controle (inclusive judicial) de políticas públicas, policy making etc. Mas, na prática, "na ponta", as políticas públicas brasileiras continuam sendo formuladas, implementadas e "controladas" quase da mesma forma como se fazia no século 19: na base da fé e da intuição. É como se fôssemos um comerciante que confia apenas no próprio tino e faro para os negócios, mas competir com a Amazon, seus big data e algoritmos…

Na verdade, a formulação e a avaliação de políticas públicas — sem perder seu evidente aspecto ético e político, no sentido de construção de consensos e respeito ao princípio majoritário — têm como um aspecto essencial, atualmente, o necessário embasamento em evidências científicas. Não se admite mais, em país algum do mundo civilizado, que a formulação dessas políticas seja feita às cegas, sem estudos que embasem as medidas tomadas com um mínimo de eficácia e efetividade esperadas. A importância da política pública baseada em evidências "é reforçada pela necessidade de governança efetiva em sistemas sociais complexos (…) e se constitui como uma crescente e importante base para uma 'governança interativa'" [1]. Reconhece-se que "o processo de busca de evidências e em particular a revisão sistemática de dados científicos é o standard" de qualquer formulação de políticas públicas na atualidade [2]. Essa necessidade de que os programas e até as ações de políticas públicas estejam baseados em dados fiáveis estende-se a todo o processo de policy making [3].

Trata-se, em verdade, de um autêntico direito fundamental: o direito dos cidadãos de saberem quais os problemas que a política pública visa a resolver, quais os objetivos que se busca atingir e quais os custos e impactos da medida proposta. Um verdadeiro "direito fundamental a receber justificativas" [4].

Nesse contexto, a avaliação de prévia de impacto legislativo (avaliação ex ante) mostra-se como uma ferramenta importantíssima para subsidiar a tomada de decisão política com base em evidências, sem prejuízo, claro, da influência de outros fatores na formação da vontade estatal (como questões morais, de justiça, distributivas, políticas em sentido estrito etc.) [5]. Basicamente, a avaliação prévia de impacto legislativo serve para mensurar os custos e os resultados esperados de uma determinada atuação pública sugerida (A1), em comparação a outras opções de atuação (A2, A3 etc.), inclusive em relação à opção de não atuação (A0[6] [7].

Mais ainda: na maioria dos países desenvolvidos, o debate sobre políticas públicas encontra-se em "outro patamar" (para citar o filósofo futebolístico): analisam-se os limites da ideia de políticas públicas baseadas em evidências (evidence based), a fim de dar um passo além. Os programas e ações de políticas públicas devem não apenas ser baseadas em evidências, mas também atender aos anseios da moral coletiva, implementando os valores constitucionais e políticos que permeiam o ordenamento e a sociedade. Avaliações de impacto ex ante são usadas como requisito mínimo para a apresentação de projetos de lei ou de propostas de intervenção — não como fórmula mágica para tomada de decisões automatizadas, mas como subsídio para a tomada de decisão política de maneira informada e ciente de suas opções e consequências.

No Brasil, ainda estamos anos-luz atrás desse estágio de maturidade e responsabilidade institucional. É bem verdade que a última década tem assistido a avanços significativos nessa área. Podem ser citados, por exemplo, o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que determina a obrigatoriedade de que proposições legislativas criadoras de despesa tragam avaliação de impacto legislativo. Essa norma, aliás, foi considerada pelo STF como de observância obrigatória para estados, DF e municípios [8], em decisão bastante discutível do ponto de vista federativo, mas inegavelmente benéfica em relação ao arcabouço institucional das políticas públicas. No campo infraconstitucional, a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20/9/2019) tornou obrigatória a realização de avaliação de impacto regulatório, e o Decreto nº 9.191, de 1/11/2017, trouxe em anexo vários pontos de verificação do conteúdo de minutas de proposições normativas. É melhor do que nada, mas é pouco, muito pouco, ainda mais se levarmos em conta o estágio quase neolítico da institucionalização desse tema no Brasil.

O quadro ainda persistente de políticas públicas improvisadas, que já era claro, ficou ainda mais dramática com a situação de emergência de saúde pública internacional decorrente da Covid-19. Ficou evidente que os efeitos da adoção de políticas públicas baseadas em caprichos, achismos ou meras boas intenções podem ser desastrosos.

Vale lembrar que, em 2009, a OCDE já advertira Portugal da necessidade de adotar um sistema como esse, sob pena de não alcançar o patamar de better regulation [9]. O Brasil, em 2021, conseguirá sanar esse descompasso histórico?

Parece que, em ritmo ainda lento, o legislador nacional atentou-se de vez para a necessidade de que as políticas públicas sejam realmente planejadas, avaliadas e controladas. No dia 15/3/2021, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 109 (derivada da chamada PEC Emergencial). Entre diversas alterações no corpo permanente da Constituição e no ADCT, merece destaque a inclusão de um §16 no artigo 37, a dispor que "(o)s órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei".

Bem se percebe tratar-se, aqui, daquilo que o professor José Afonso da Silva chama de "normas eficácia limitada", isto é, um dispositivo constitucional que depende de regulamentação legal para produzir a integralidade dos seus efeitos. De toda forma, agora se tem um mandamento aplicável a todos os entes da federação, para que avaliem as políticas públicas a seu cargo — afinal, a avaliação é um momento relevantíssimo do chamado ciclo de políticas públicas, pois permite aquilatar os resultados de um programa e continuá-lo, descontinuá-lo ou aperfeiçoá-lo. Mais ainda: impõe-se que o objeto e os resultados da avaliação sejam divulgados. Que tal se — por exemplo — o Ministério da Saúde avaliasse os resultados da distribuição de vermífugos e remédios para malária em Manaus, enquanto pessoas morriam em hospitais por falta de oxigênio?

Espera-se que o Congresso Nacional tenha em breve iniciativa para propor e aprovar rapidamente a regulamentação desse dispositivo constitucional — algo que, por se tratar de lei nacional, não se submete à reserva de iniciativa do presidente da República [10]. Mais ainda: oxalá a regulamentação imponha inclusive sanções aos gestores que se omitirem no cumprimento do dever constitucional de avaliar as políticas públicas a cargo de sua pasta ou entidade, sob pena de tal avaliação cair em descrédito, como mais uma burocracia a ser enfrentada, e não como um poderoso instrumento de governança, transparência, planejamento e controle social das políticas públicas. Veja-se o exemplo da resolução do Senado Federal que obrigou as comissões permanentes da casa a realizarem anualmente a avaliação de uma política pública pertinente ao seu campo de atuação material (Regimento Interno do Senado Federal, artigo 96-B): está prevista na legislação a obrigatoriedade de se avaliar, mas os resultados dessas iniciativas são bastante variáveis por comissão e ao longo do tempo.

De toda sorte, pode ser (espera-se que seja) o fim das políticas públicas baseadas em achismos. Afinal, se há uma coisa que a pandemia nos ensinou é que políticas públicas mal formuladas (ou formuladas com base em intuição) podem trazer resultados desastrosos — e, no limite, deixar rastros de sangue nas mãos dos agentes políticos.

 


[1] SANDERS, Ian. Evaluation, policy learning and evidence-based policy making. In: Public Administration, vol. 80, n. 1, 2002, p. 1.

[2] Young, K., Ashby, D., Boaz, A., & Grayson, L. Social Science and the Evidence-based Policy Movement. In: Social Policy and Society, n. 3, a.1, 2002, pp. 215-224.

[3] Cf. SMITH, Peter C.; NUTLEY, Sandra; DAVIES, Huw T. O. (edit.). What Works? Evidence-based policy and practice in public services. Chicago: Chicago University Press, 2002, especialmente pp. 43 e seguintes.

[4] BARCELLOS, Ana Paula de. Direitos Fundamentais e Direito à Justificativa. Devido procedimento na elaboração normativa. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 92.

[5] MENEGUIN, Fernando B. Avaliação de impacto legislativo no Brasil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, março/2010 (Texto para Discussão nº 70), p. 11. Disponível em: www. senado.leg.br/estudos.

[6] PAGANO, Rodolfo. Introduzione alla legistica: L'arte di preparar ele leggi. Milano: Giuffrè, 2004, pp. 51 e seguintes.

[7] Cf. DUARTE, David; PINHEIRO, Alexandre Souza; ROMÃO, Miguel Lopes; DUARTE, Tiago. Legística: Perspectivas sobre a concepção e redacção de actos normativos. Coimbra: Almedina, 2002, p. 127

[8] STF, Pleno, ADI nº 5.816, Relator ministro Alexandre de Moraes, DJe de 26.11.2019.

[9]  cf. MORAIS, Carlos Blanco de. (org.) Guia de Avaliação de Impacto Normativo. Coimbra: Almedina, 2010, pp. 8 e seguintes.

[10] Cf. TELES, Clay Souza e. Abrangência Nacional e Iniciativa Parlamentar: breves considerações sobre a constitucionalidade formal da Lei Complementar nº 152, de 2015 (aposentadoria compulsória por idade). Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2015 (Texto para Discussão nº 187). Disponível em: <www.senado.leg.br/estudos>. p. 9. Original sem grifos.

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