Trabalho eficiente

Procuradorias dos estados podem prevenir esquemas de corrupção, diz líder da Anape

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15 de maio de 2021, 8h47

Com procuradorias fortes, os estados podem prevenir esquemas de superfaturamento e desvio de dinheiro público, uma vez que os advogados estatais avaliam os contratos antes de eles serem celebrados. E o trabalho preventivo é mais eficaz do que o repressivo na luta contra a corrupção. Essa é a opinião de Vicente Braga, presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape).

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Braga afirma que as procuradorias têm exclusividade na concessão de consultoria jurídica aos estados. Assim, ele critica as tentativas de governadores de atribuir tal função jurídica a outros órgãos. A seu ver, a medida facilitaria o caminho para políticos mal-intencionados promoverem desvios de recursos públicos.

Porém, o presidente da Anape critica a responsabilização de procuradores por pareceres jurídicos. Os advogados estatais só devem responder em caso de dolo ou fraude, opina.

Em entrevista à ConJur, Vicente Braga também defendeu a possibilidade de procuradores exercerem a advocacia privada e ressaltou a importância da autonomia e da unicidade para a categoria.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são as principais preocupações das procuradorias e da Anapee no momento?
Vicente Braga —
Há duas, três grandes preocupações. Podemos citar a questão da unicidade, que é um princípio que o Supremo vem reconhecendo a sua existência no artigo 132 da Constituição Federal, reconhecendo a competência exclusiva para procuradores de Estado exercerem a representação judicial e consultoria jurídica dos seus respectivos estados. Então esse é um dos principais temas nossos, porque com ele nós conseguimos avançar em subtemas. Um deles é a questão do combate à corrupção. A partir do momento que se tem a procuradoria de Estado sendo refeita, a assessoria jurídica dos estados sendo feita por procuradores aprovados em concurso público, rígido, sério, é possível verdadeiramente ter uma advocacia de Estado, e não advocacia de governo. E isso permite que os procuradores tenham condições de, por exemplo, apresentar pareceres em processos licitatórios sem interferência política, sem interferência de gestores que não são bem intencionados com a coisa pública. Acaba sendo a primeira trincheira no combate à corrupção.

A autonomia também é uma bandeira muito importante. A partir do momento que se tem um procurador do estado com autonomia técnica garantida, com a procuradoria com autonomia financeira, autonomia de gestão, acaba se tendo uma maior segurança para a sociedade, uma melhor correição da aplicação da efetivação das políticas públicas. Procurador do estado não escolhe políticas públicas, ele ajuda na sua implementação, mas ele pode muito bem fazer um parecer, dar a sua opinião jurídica e falar para o gestor que tal política pública está equivocada, que não será tão boa para a sociedade.

ConJur — Como as procuradorias vêm atuando na epidemia do coronavírus?
Braga —
Em alguns estados, vêm ocorrendo operações da Policia Federal. Por coincidência ou não, nesses estados a procuradoria tem tido uma atuação mínima nos procedimentos de dispensa de licitação para a contratação de serviços, compras de equipamentos e aí em diante. Temos estado em que o primeiro ato de um procedimento administrativo foi o ato de compra do aparelho, o ato de compra. Isso não existe. Tivemos estados, como já é público e notório no Rio de Janeiro, em que houve compra de cestas básicas durante a pandemia para atender à população mais carente em que foi constatado superfaturamento, desvio de recursos. E esse processo não passou pela procuradoria do estado, quando deveria ter passado. Na maioria dos estados que estão enfrentando problemas, os processos correram frouxos, sem supervisão técnico-jurídica, sem o olho de um procurador do estado buscando dar uma maior qualidade para a contratação. Mas infelizmente nós acabamos tendo memória curta para isso. A "lava jato" não tem dez anos; 2014 foi quando ela começou a estourar, e muitos já não se lembram dela. A pandemia pode muito bem cair no esquecimento. O legado que ela vai deixar pode não ser um legado de aprendizado, mas um legado de destruição do patrimônio público, destruição de uma economia por uma má gestão da coisa pública.

ConJur — Em casos de improbidade administrativa, muitas vezes o procurador que deu o parecer é condenado junto com os gestores públicos. Como evitar que os procuradores sejam responsabilizados por isso? E em que situações eles podem ser responsabilizados por suas opiniões jurídicas?
Braga —
Há as hipóteses legais em que procurador pode ser responsabilizado por sua opinião jurídica. Na visão da Anape, as hipóteses são bem claras: dolo ou fraude. Ocorrendo uma conduta dolosa de um colega procurador na emissão de um parecer, ele deve si ser responsabilizado. Ocorrendo uma fraude, ele deve, sim, ser responsabilizado. O que nos preocupa é querer colocar o erro grosseiro como uma hipótese também. Porque o erro grosseiro é muito subjetivo. O que é erro grosseiro para um não é para outro. Então nos preocupa uma má interpretação do conceito de erro grosseiro, de o que seria erro grosseiro. Porque todos têm o direito a ter uma opinião jurídica. O que hoje não é um erro grosseiro amanhã pode vir a ser, e um colega que deu uma opinião jurídica baseada em um suposto entendimento pode vir a ser prejudicado e ter medo de dar opinião para não ser responsabilizado. Os magistrados e integrantes do Ministério Público respondem por atitudes cometidas com dolo ou fraude, mas não respondem por atitudes cometidas por erro grosseiro. Então os procuradores também não devem responder, pois também exercem funções essenciais à justiça.

ConJur — Procuradores têm exclusividade na consultoria jurídica dos estados?
Braga —
A exclusividade diz respeito apenas às procuradorias de Estado. E tem só no papel, na prática não tem. Quase todos os estados brasileiros tentam usurpar as atribuições dos procuradores. E quase todas as procuradorias já acionaram o Supremo Tribunal Federal para coibir essa prática, que traz um prejuízo imenso para a sociedade. Porque muitas vezes esses cargos são utilizados como cabide de emprego, para beneficiar quadros políticos que têm interesse na manutenção dessa estrutura. Essa é a grande verdade. O Supremo Tribunal Federal já decidiu esse tema mais de dez vezes, reconhecendo a competência exclusiva dos procuradores para representação judicial e consultoria jurídica dos estados. Mas as decisões seguem sendo desrespeitadas.

ConJur — Qual é a intenção por trás dessas iniciativas para atribuir a outros órgãos o poder de dar consultoria jurídica?
Braga —
Para o político mal-intencionado, a intenção é esvaziar as atribuições da procuradoria para que ele não tenha um comando jurídico efetivo e diligente. Para o gestor que não tem compromisso com a coisa pública, que quer praticar atos não republicanos, é muito mais fácil não ter uma procuradoria estruturada, bem aparelhada, que busque coibir de forma preventiva os atos que são praticados por gestores mal-intencionados. E muitas vezes eles querem esses cargos de assessoria para colocar de cabide de emprego, para troca de favor político. Esse também é um dos motivos.

O Tribunal de Contas da União tem estudos que mostram que, de cada R$ 10 de patrimônio público desviado, R$ 0,10 conseguem ser recuperados. E o custo da recuperação desses valores é superior aos R$ 0,10. A Anape vem buscando mostrar que o trabalho repressivo é útil para tentar criar um medo no gestor público, mas a “lava jato” está mostrando que os gestores não aprenderam esse ensinamento. E nós temos mostrado que um trabalho preventivo é muito mais efetivo. Ele traz um índice de retorno para as sociedades muito maior que o repressivo. Ele é muito mais barato, porque evita que o dinheiro saia dos cofres públicos, e depois que sai, para resgatá-lo ou recuperá-lo é difícil demais, se não for impossível. Então o trabalho preventivo é muito mais eficiente, muito mais barato, e tem um retorno muito maior para a sociedade. E esse trabalho preventivo é feito pelas consultorias jurídicas, que devem ser feitas por procuradores do estado.

ConJur — Em diversos estados, procuradores também podem advogar. O senhor é a favor de advogado público também poder atuar na área privada? Ou isso compromete a sua atuação como procurador?
Braga —
Nós chamamos isso de “advocacia plena”. Nós somos advogados antes de qualquer coisa e nos submetemos a um concurso público rigoroso, dificílimo, para podermos também exercer a advocacia em favor do estado. A partir do momento que temos a aprovação, nós temos uma garantia do estado que a gente vai poder ter uma advocacia plena. Não sendo apenas advogados exclusivos do estado, podemos exercer a advocacia em favor de particulares. E isso é uma prerrogativa que é dada por alguns estados para que eles possam segurar bons advogados dentro dos seus quadros. O que seria da advocacia pública sem o ministro do STF Luís Roberto Barroso como procurador do estado do Rio de Janeiro, sem o professor Diogo Figueiredo de Moreira Neto como procurador do estado do Rio de Janeiro, sem os professores José Afonso da Silva e Maria Silva Zanella de Pietro, procuradores do estado de São Paulo na época em que os ocupantes do cargo podiam advogar — hoje não é permitido? Há excelentes quadros na advocacia pública que lá ficaram por terem essa prerrogativa. Caso contrário, não tenha dúvida que eles teriam ido para outras carreiras. Então a Anape defende a advocacia plena como uma forma de se ter bons quadros dentro das carreiras, permitir que um advogado bem sucedido no estado do Ceará queira permanecer como advogado público também e não queira migrar para uma carreira de magistratura pública federal, Ministério Público Federal ou apenas para a advocacia privada.

E não há conflito de interesses, porque há uma vedação expressa de advogar contra o ente que te remunera. Se isso é proibido, o procurador não tem como usar essas informações a seu favor. E se for o caso de o procurador usar essas informações para fins privados, deverá ser investigado pela corregedoria e, se for o caso, demitido.

ConJur — Há quem pense que procurador de estado não deveria poder exercer cargos políticos. O que o senhor pensa sobre esse assunto?
Braga —
Os cargos políticos devem ser exercidos por todo e qualquer cidadão. Nós temos o direito de votar e ser votados. Não seria justo fechar a porta para uma pessoa que tem compromisso com a coisa pública e tem interesse de seguir uma carreira política no sentido de tentar ser eleito para um mandato eletivo. Por que o médico que atua em um hospital público pode ser candidato, um professor de escola pública pode ser candidato e um procurador não poderia vir a ser? Não há motivo para uma vedação.

ConJur — O novo Código de Processo Civil dá bastante ênfase à conciliação e à mediação. Os procuradores dos estados têm autonomia para negociar em cima de dinheiro público?
Braga —
Isso vai variar de estado para estado, de município para município. Via de regra, os estados que estão permitindo, que estão criando as câmaras de conciliação e mediação e até mesmo de arbitragem nas respectivas procuradorias têm editado lei colocando margens de negociação. Se a pessoa ou empresa deve X mil ao estado, a negociação pode ser feita dentro de uma certa margem legal; se deve Y, a margem é outra. Esse é o futuro. Os métodos autocompositivos de solução de conflitos são o futuro. O Judiciário não consegue dar conta dos inúmeros e inúmeros conflitos que surgem diariamente na sociedade.

ConJur — Há quem aponte que as execuções fiscais são as grandes vilãs da morosidade do Judiciário. Tais críticos argumentam que como as execuções fiscais não possuem mais litígio, elas deveriam poder ser resolvidas extrajudicialmente. O que o senhor pensa dessa análise?
Braga —
Eu concordo, desde que essa cobrança extrajudicial seja feita por meio de um procurador do estado, que é quem tem competência para representar o ente na cobrança da dívida ativa. A execução fiscal realmente é um gargalo muito grande na justiça. O índice de congestionamento de execução fiscal é um absurdo. Nos estados, quase 95% das dívidas inscritas na dívida ativa são representadas por ICMS, e quase todas são dívidas irrecuperáveis. Mas é preciso executar. Se não executar, pode ter problema com o Tribunal de Contas. Então acaba abarrotando o Judiciário com dívidas que sabidamente não serão recuperadas. Se você tiver uma melhor gestão de dívida ativa, saber os créditos que podem ser recuperados, é possível conseguir recuperar melhor.

ConJur — Há quem diga que períodos de crise fiscal, como o que o país vem atravessando, fragilizam a defesa de contribuintes, porque os estados buscam arrecadar a qualquer custo. O que o senhor pensa dessa avaliação?
Braga —
Não é dessa forma. A busca em arrecadar o tributo se dá quando se tem a ocorrência de um fato gerador. A partir do momento que se tem um fato gerador, por exemplo, de ICMS, que é a compra e venda de uma mercadoria, o Estado tem o direito de cobrar o tributo, e o contribuinte tem o dever de pagar o tributo. Não existem apenas direitos fundamentais, mas também deveres fundamentais. O cidadão tem que contribuir para que o Estado consiga fazer uma sociedade cada vez mais fortalecida. Então, mesmo em um momento de pandemia, se há fragilidade de um setor econômico, o Estado tem a obrigação, se não for um Estado liberal, se não for um Estado mínimo, se for um Estado social, de socorrer essas empresas, de dar uma ajuda, dar um fôlego para que elas possam passar por um momento de crise e, voltar à sua normalidade, elas possam se recuperar. Ao enforcar ainda mais aquele que já está morrendo, não se consegue nada e acaba matando a empresa, matando o contribuinte financeiramente, e o Estado deixa de arrecadar. É muito melhor dar um fôlego para o contribuinte, para que ele possa se recuperar e depois o Estado possa resolver os tributos que ficaram em aberto. O governo não está ali para sufocar ninguém. O governo está ali para ajudar no que for preciso.

ConJur — O senhor é a favor da PEC da Autonomia, que reconhece a autonomia técnica, administrativa, orçamentária e financeira das carreiras da advocacia pública?
Braga —
Sou 100% favorável. Isso para é fundamental para que nós possamos fazer a defesa da sociedade e da democracia como devemos fazer. A autonomia é uma prerrogativa inerente ao servidor, ao procurador do estado. Não queremos autonomia para dar aumento salarial para procurador. Queremos autonomia para podermos exercer as nossas atribuições de acordo com as nossas consciências, de acordo com o que a legislação determina. Não queremos autonomia para termos privilégios. Queremos autonomia para termos uma prerrogativa de defender a sociedade sem qualquer interferência política externa.

ConJur — Como o senhor avalia a reforma administrativa que está em discussão?
Braga —
A Anape não é contra a reforma administrativa por ser contra. A Anape é contra a reforma administrativa que foi apresentada pelo governo federal, que é injusta em vários pontos. Não se pode precarizar o serviço público, não se pode sucatear o serviço público. Não se pode deixar o serviço público tão desinteressante que ele vai ser exercido apenas por burocratas. Nós temos que ter um serviço público com pessoas qualificadas, interessadas e comprometidas com a coisa pública. Para ter isso, é preciso que o serviço público seja atraente. Se não for, as pessoas vão migrar para o setor privado, não vão ter interesse de ocupar uma função pública, por todos os ônus que ela carrega. Então a Anapee trabalha por uma reforma administrativa justa, que não tire prerrogativas, que não promova retrocessos. As prerrogativas não são do procurador, não são do servidor, são da sociedade acima de qualquer coisa. Nós precisamos de prerrogativas para desempenhar nossas funções sem medo de interferência externa, sem medo de interferência política. Nós acreditamos que o Congresso Nacional, no momento adequado, irá aprimorar essa reforma administrativa, torná-la justa e evitar que o serviço público seja precarizado, seja sucateado.

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