Diário de Classe

Desvio discursivos (d)e poder: Uma breve reposta a partir da CHD

Autores

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

  • Renata Ceschin Melfi de Macedo

    é pós-doutoranda em Direito Público pela Unisinos; doutora em Filosofia pela PUC-PR; mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR; professora adjunta de Direito Penal e Prática Processual Penal junto na PUC-PR; coordenadora adjunta do curso de Direito da PUC-PR; membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos); e advogada criminalista.

15 de maio de 2021, 8h00

De todo discurso emana poder. E não poderia ser diferente com o discurso jurídico, afinal é através da (des)construção dos argumentos jurídicos que o intérprete do direito define os rumos e as condições materiais da vida social. Compreender isso, garante a justa consideração do caráter político e ideológico do Direito. O problema é que, assim sendo, muitas vezes se sobressai o argumento que é mais hábil em sua capacidade discursiva, repercutindo em razão do poder, restando a ideologia ainda mais em plano secundário[1].

O processo interpretativo depende sempre de um sujeito que se relaciona simultaneamente com os textos jurídicos normativos e os fatos sociais, mergulhado de forma inexorável dentro de uma tradição. Fato é que, não se pode colocar em segundo plano os limites semânticos do texto invocando a justificativa da busca pelo “espírito da lei”, sob pena de um criacionismo individual, que acarreta o retorno ao paradigma da subjetividade.

Para compreendermos essa asserção, temos de saber mais sobre a virada de paradigmas filosóficos, ainda que de forma breve neste momento[2]. O surgimento do Estado Moderno é marcado pelo nascimento da subjetividade na busca da compreensão do mundo e, diante deste contexto, o mundo passa a ser explicado (e fundamentado) pela razão[3], ou seja, o intérprete é o dono dos sentidos.

Ocorre que, no século 20, com a inserção do mundo prático na filosofia, o paradigma subjetivista vê-se esgotado. A partir desta guinada, com a invasão da linguagem no campo da filosofia, transfere-se o próprio conhecimento para o campo da linguagem. Nesse novo paradigma, a linguagem, onde se dá o sentido, passa a ser entendida como condição de possibilidade entre ser e objeto, não mais como uma terceira coisa que se coloca entre eles[4].

A teoria hermenêutica, diante desse contexto, assume, por assim dizer, um papel fundamental enquanto reflexão crítica. Diante da afirmação da existência de uma contextualização do conhecimento, com a celebração dos processos interpretativos enquanto meio para a cognição de um processo complexo, o influxo hermenêutico provoca a reflexão acerca da necessidade de devolver à realidade o sentido, a segurança e estabilidade pretendidos[5].

Não se nega que a linguagem argumentativa, trabalha com a interação entre os sujeitos, com persuasão, e, não raro, tenta impor à sociedade o ponto de vista de grupos hegemônicos; isso porque, como instrumento de comunicação social, pode revelar-se como instrumento de dominação e de opressão[6]. Contudo, devemos clamar por uma linguagem pública reflexiva, cujos desvios epistêmicos sejam possíveis de serem identificados e readequados às práticas democráticas pela contenção de arbítrios e subjetivismos.

É preciso ter claro que o direito no paradigma do Estado democrático de Direito, passa — em razão das contingências históricas — a se preocupar com a democracia e, portanto, com a legitimidade do direito, razão pela qual é preciso lidar com a facticidade e com a problemática da interpretação a partir da adoção de uma abordagem hermenêutica comprometida com a realização de um direito compatível com as demandas desta quadra histórica.

Muito difícil seria pensar este processo de atribuição de sentido, ainda que voltados para uma perspectiva de fim, apartado dos pressupostos da crítica hermenêutica do direito e ainda buscar combater o ativismo judicial de forma coerente. Isso pois, ao se admitir a existência de uma cisão entre a norma e o texto, garante-se a atribuição de sentido a partir da subjetividade do intérprete, que tem livre espaço para dizer o direito e buscar o justo. Dessa forma, a jurisdição seria a representação da subjetividade que existe por si só, independentemente de todo pano de fundo que sustenta a realidade[7].

Ao desprender o intérprete do invólucro legal, a sensibilidade garante uma interpretação da lei segundo, por exemplo, as finalidades para as quais ela foi criada ou mesmo os interesses sociais que levaram à sua edição. E essa postura é muito sedutora aqueles que reivindicam a efetivação do direito de minorias, principalmente sob o pretexto do desvio da formação do discurso inerente as assimetrias de poder[8]. Relembramos: não se está negando a disparidade de participação entre diferentes setores sociais na formação do discurso oficial.

Ocorre que ativismo judicial não é judicialização da política[9] e, apesar de muitas vezes sedutor, o ativismo judicial nunca é positivo, “porque decorre de comportamentos e visões pessoais de juízes e tribunais, como se fosse possível uma linguagem privada, construída à margem da linguagem pública”[10], como bem coloca o prof. Lenio Streck. Ele atenta ao senso de justiça e os valores políticos da democracia e do Estado de Direito, qual seja, de que o governo vai tratar todas as pessoas como iguais[11].

Como alternativa, adotamos o marco teórico da Crítica Hermenêutica do Direito, a partir da teoria de Dworkin, que nos oferece a possibilidade de inserção de um critério baseado no diálogo entre os atores políticos e o Judiciário como forma de combate ao ativismo judicial, vez que é justamente a aceitação dos princípios garantidores de direitos pela comunidade que legitima uma decisão judicial. Mais especificamente, ainda na fase de justificação, diante da impossibilidade de prevalência de uma dentre todas as interpretações de um juiz, Dworkin insere um limite interpretativo inerente à moral política: a estrutura das instituições e as decisões da comunidade[12]

Diante da necessidade de expressar seus valores em termos políticos, demonstrando o melhor princípio ou política a que serve[13], a partir de Dworkin não podemos falar em neutralidade do intérprete, mas sim em um comprometimento com determinada concepção de justiça advinda do valor de sua interpretação[14]. Esse é o ponto do Direito como Integridade no combate a arbitrariedades: compreender que o Estado como agente moral deve guiar-se segundo um conjunto único e coerente de princípios garante que o reconhecimento dos direitos juridicamente tutelados não se dê por um argumento estratégico/político[15] .

[1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O núcleo do problema no sistema processual penal brasileiro. Boletim IBCCRim, nº 175 – junho 2000.

[2] O professor Lenio Streck vem trabalhando essa questão já há muitos anos. Indica-se a leitura das obras O que é isto – decido conforme minha consciência?; Hermenêutica Jurídica e(m) crise, dentre outras obras.

[3] https://www.conjur.com.br/2014-mai-15/senso-incomum-decido-conforme-consciencia-seguranca-alguem.

[4] STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência?. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

[5] AGUIAR E SILVA, Joana. A prática judiciária entre direito e literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 2001

[6] Sobre saber e poder, Michel Foucault (A ordem do discurso. São Paulo : Loyola, 2010, p. 30) assevera que “o poder produz saber (…), não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”. Para o autor, o procedimento de exclusão dos indivíduos ocorre por meio de três grandes sistemas: a palavra proibida (procedimentos de controle, através dos quais as instituições ditam o que pode e o que não pode ser dito); segregação da loucura (separação e rejeição do sujeito de acordo com a classificação “normal/louco” a partir de comportamentos atrelados às normas sociais); vontade de verdade (forma como o saber é aplicado na sociedade).

[7] STRECK, Lenio. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2017.

[8]Ver: https://www.conjur.com.br/2020-dez-19/diario-classe-ativismo-judicial-realidade-obscura-refletida-espelho-inquebravel

[9] Ver: https://www.conjur.com.br/2018-dez-06/senso-incomum-futuro-stf-retranca-toffoli-ou-ataque

[10] https://www.conjur.com.br/2018-dez-06/senso-incomum-futuro-stf-retranca-toffoli-ou-ataque

[11] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[12] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[13] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[14] MOTTA, Francisco Jose Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

[15] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

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    é doutoranda e mestre em Direito Público pela Unisinos (RS), bolsista Capes/Proex e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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    é pós-doutoranda em Direito Público pela Unisinos; doutora em Filosofia pela PUC-PR; mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR; professora adjunta de Direito Penal e Prática Processual Penal junto na PUC-PR; coordenadora adjunta do curso de Direito da PUC-PR; membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos); e advogada criminalista.

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