Opinião

O critério espacial do ISS sobre SaaS e a concentração de renda nas capitais

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14 de maio de 2021, 17h07

No dia 18 de fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal julgou as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 1945 e 5659, por meio das quais se consolidou o entendimento pela não incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre a cessão ou licenciamento do direito de uso softwares e aplicativos. No mesmo passo, foi reconhecida a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

O STF modulou os efeitos da decisão, estabelecendo a impossibilidade de ajuizamento de ação de repetição de indébitos decorrentes do pagamento de ICMS, assim como a impossibilidade da cobrança do mesmo tributo por parte dos estados. A corte fez ressalva às ações judiciais em curso, inclusive de repetição de indébito e execuções fiscais que discutam a incidência do ICMS, bem como às hipóteses de comprovada bitributação, decorrente do pagamento do ICMS e ISS, caso no qual o contribuinte terá direito à repetição do indébito do ICMS.

Conforme elenca o artigo 156, III, da Constituição Federal, o critério material da hipótese de incidência, contida na regra-matriz do ISS, é a prestação de serviço não compreendido na competência tributária dos estados (artigo 155, II, CF), e definido em lei complementar.

Como resultado da terceira revolução industrial, e já correspondendo o início da considerada quarta revolução [1], as relações interpessoais sofreram grandes mudanças e as formas de prestação de serviços seguiram o mesmo caminho, no sentido da digitalização e automação.

Assim surgiram softwares e aplicativos que, de forma totalmente disruptiva, impactaram de forma direta a operacionalização de praticamente todas as empresas, seja por advento da internet ou pela automação do serviço prestado. Não obstante, novos serviços foram criados por intermédio da internet e com características de repetibilidade, permitindo maior ganho de escala pelas empresas do segmento de tecnologia. Entre as empresas desse segmento, destacamos as plataformas de streaming, como Netflix, Amazon Prime, Disney + e Youtube Premium, utilizadas por muitos brasileiros no dia a dia.

Como se sabe, o serviço prestado por essas plataformas consiste na concessão de licença que garantem ao consumidor acesso a filmes, séries e vídeos, por meio de software de computador ou aplicativo de celular. Esse serviço demonstra de forma concreta a mudança elencada anteriormente, sendo um dos motivos para o encerramento das atividades de diversas empresas de locação de DVD [2].

Essas plataformas digitais oferecem serviço repetível e com acesso remoto, desde que o cliente esteja conectado na internet. Assim, é possível reconhecer que o serviço pode ser prestado em locais distintos, a depender de onde o usuário estiver.

Adentrando à hipótese de incidência do ISS, devemos lembrar que o critério espacial do ISS não se confunde com o plano de eficácia territorial, sem prejuízo para os casos que venham  a coincidir [3]. O primeiro tem como função a delimitação do local da ocorrência do fato jurídico tributário (local da prestação do serviço), enquanto a territorialidade delimita o plano geográfico de incidência da lei municipal.

Desse modo, nenhum município pode pretender exigir o ISS sobre fatos ocorridos fora de seu território. Embora isso, o legislador complementar enfraqueceu essa regra, estabelecendo vários critérios que delimitam os critérios espaciais para a incidência do tributo, vindo, inclusive, a permitir que o local da prestação do serviço não seja o mesmo da incidência em determinados casos.

Com o advento da Lei Complementar 116/2003, a regra geral define que o local de prestação de serviço é o do estabelecimento prestador — esteja ele localizado onde for — e, subsidiariamente, o local do domicílio do prestador.

Ainda que com o texto constitucional estabeleça a competência tributária para os municípios instituírem Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza que sejam prestados em seu território, a LC 116/2003 caminha em direção contrária, impossibilitando a instituição do ISS pelos municípios onde a relação jurídica entre o consumidor e a empresa de softwares efetivamente se concretiza, estabelecendo que o local de prestação de serviço é o do estabelecimento prestador, ou seja, a sede destas empresas.

É dizer, ainda que a licença de uso de determinado software se concretize no endereço do consumidor, onde ocorre o uso do software, a LC 116/2003 acaba por afastar a competência tributária do Fisco do município no qual o software efetivamente é operado, para chamar à competência do município no qual o software é materializado.

Como o negócio entabulado com o consumidor é o de licença de uso do software, o nosso entendimento é de que este deve ser considerado o local de prestação de serviços, afastando assim a competência tributária do município em que está localizada a sede da empresa de tecnologia salvo nos casos em que o software for consumido também nesse município.

Assim, ao nosso ver, a LC 116/2003 contraria o texto constitucional no que toca à incidência do ISS nos municípios onde os serviços prestados pelos SaaS são consumidos, concentrando a competência tributária em capitais e grandes metrópoles, nas quais as empresas de tecnologia costumam ter sede.

Não há dúvidas de que essa concentração da competência tributária gera distorções e desequilíbrio do pacto federativo, precarizando a arrecadação de ISS em municípios pequenos, embora parte da renda da população dessas regiões seja direcionada ao consumo de serviços ofertados por empresas de tecnologia na modalidade de software as a service.

Por fim, sem deixar passar em branco, o debate a respeito da localidade da prestação de serviços em empresas de softwares e tecnologia acende nova luz sobre o debate que não nos parece ter sido exaurido: se, ao prescrever a incidência de ISS sobre contratos de licenciamento de software, a LC 116/2003 não amplia o conceito jurídico de prestação de serviços — em uma espécie de interpretação econômica das normas tributárias — para enquadrar novos negócios, como o de licenciamento de software, em hipóteses normativas já pré-estabelecidas (o que encontra óbice no artigo 110 do Código Tributário Nacional [4]). Essa ampliação indevida de conceitos jurídicos acaba por causar distorções, como a refletida neste artigo de opinião.

 


[1] SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. Traduzido por Daniel Moreira Miranda. 1ª ed. p. 24. São Paulo: Edipro, 2016. p.24.

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

[4] Artigo 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

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