Opinião

Colaboração premiada (e remunerada)

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

13 de maio de 2021, 9h05

A operação "lava jato" contribuiu para a popularização de alguns institutos processuais, como a delação premiada, introduzida pela Lei 12.850/13 com o nome de colaboração premiada. Trata-se de negócio jurídico processual celebrado entre Ministério Público/polícia e o investigado, no qual, preenchidos os pressupostos legais, o imputado se beneficia de uma sanção premial, que vai desde a imunidade (não oferecimento da denúncia) e o perdão judicial à redução de pena. Em apertada síntese, "colaboração premiada é um acordo realizado entre o acusador e defesa, visando ao esvaziamento da resistência do réu e à sua conformidade com a acusação, com o objetivo de facilitar a persecução penal em troca de benefícios ao colaborador, reduzindo as consequências sancionatórias à sua conduta delitiva" [1].

O Supremo Tribunal Federal, no leading case sobre o instituto [2], assim o definiu: "(…) A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como meio de obtenção de prova, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal".

O benefício não é inédito, haja vista que o Código Penal e outros diplomas legais já o disciplinavam, embora não previssem a existência de um acordo formalizado. A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), respectivamente em seus artigos 7º e 8º, já havia introduzido uma forma de colaboração nos crimes de extorsão mediante sequestro e associação criminosa. Está também previsto nas Leis 7.492/1986 (Crimes contra o Sistema Financeiro), 8.137/1990 (Crimes contra a Ordem Tributária e Econômica), 9.613/98 (Lavagem de Capitais), 9.807/1999 (Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas) e 11.343/06 (Lei de Drogas). Sobreveio, então, a Lei 12.850/13 (Organizações Criminosas), cujos artigos 4º, 5º e 6º regulam o procedimento e a obtenção de prova na investigação e processo criminal.

O STF, com base na doutrina de Antônio Junqueira de Azevedo, de maneira lapidar, estabeleceu três planos distintos de apreciação do acordo: existência, validade e eficácia. Primeiro, o negócio jurídico tem de existir. Existindo, precisa ser válido. Por fim, para que produza seus regulares efeitos, necessita ser eficaz [3]. Os elementos de existência estão previstos no artigo 5º da Lei de Regência, entre os quais sobrelevam a forma escrita, o relato da colaboração e seus possíveis resultados e as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia.

No plano da validade, há um requisito objetivo e outro subjetivo. Sob o prisma objetivo, o objeto do acordo deve ser lícito, uma vez que foi adotado o sistema da premialidade legal, não se admitindo a liberdade negocial ilimitada, de matriz saxônica. Assim, será nulo o acordo que pretender alterar o regime inicial de cumprimento de pena fixado pelo artigo 33 do CP (Lei 12.850/13, artigo 4º, §7º, II). Subjetivamente, o acordo somente será válido se houver voluntariedade do colaborador, entendida como sua decisão livre e consciente de colaborar em troca do prêmio autorizado em lei.

Finalmente, o acordo existente e válido apenas será eficaz e produzirá os efeitos almejados pelas partes com sua homologação pelo juiz (fase da sindicabilidade) [4]. Esse juízo, de mera delibação, será restrito aos aspectos formais, sem análise do mérito do acordo.

É no plano da validade que importa analisar o requisito subjetivo da voluntariedade na hipótese da delação mediante paga ou promessa de recompensa. O Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública, só pode deixar de propor a ação penal nas hipóteses rigorosamente previstas em lei, sem o que estaria afetado o devido processo legal e o modelo acusatório do processo penal brasileiro.

Um acordo que evite a persecução penal ou afaste as sanções legais só pode ser celebrado nos limites da legalidade estrita, o que não ocorre quando o conteúdo da colaboração é previamente ajustado em bases financeiras entre empresa e funcionário, para só então ser levado à autoridade. Liberdade para transigir dentro da lei não se confunde com vale-tudo negocial. Sendo absoluta a nulidade, por ofensa direta à Constituição, o vício poderá ser reconhecido a qualquer momento, independentemente de requerimento das partes (ex officio).

A exigência da vontade livre, consciente e desvinculada de acertos privados por parte do colaborador está ancorada no princípio da boa-fé objetiva e na credibilidade dos atos oficiais, afetados por um acordo de delação negociado financeiramente entre partes privadas. Não se trata de confundir voluntariedade com espontaneidade, mas de negar valor a ato viciado em sua origem, pela afetação da vontade mediante interferência de outros interesses que não o da sanção premial.

Tais premissas podem ser extraídas do já citado julgamento do HC 127.483/PR, in verbis: "O acordo de delação somente será valido se: 1) a declaração de vontade do colaborador for a) resultante de um processo volitivo; b) querida com plena consciência da realidade; c) escolhida com liberdade e d) deliberada sem má-fé; e 2) o seu objeto for lícito, possível, determinado ou determinável".

Como bem destacou o ministro Gilmar Mendes, em sua sempre louvável preocupação com os desvios funcionais de autoridades púbicas, no voto condutor dos acórdãos nos Habeas Corpus nº 142.205 e 143.427, julgados em 25/8/20, a lógica civilista deve ser lida com cautela na esfera penal, e "não se pode aceitar que o Estado 'incentive' investigados criminalmente com benefícios ilegais ou ilegítimos".

Não nos parece possível falar em boa-fé quando houver anterior acerto econômico entre o delator e a empresa potencialmente atingida pelo conteúdo da colaboração, dado seu interesse direto naquilo que será delatado. Ambos, colaborador e empresa, estariam indo além do desejo de negociar a sanção premial, ao combinarem previamente o preço do conteúdo da delação. O colaborador que recebe pagamento para delatar já sofreu interferência na sua vontade, e a delação nasce sob a sombra da suspeição. O fundado temor de desagradar seus financiadores econômicos interfere em sua decisão de cooperar na integralidade das informações. Nas palavras de Vinícius Gomes de Vasconcellos: "O primeiro requisito da colaboração premiada, por certo, é a voluntariedade do acusado em aceitar o acordo de cooperação com a persecução estatal, afastando-se da sua posição de resistência e aderindo à acusação" [5].

A voluntariedade deve estar ligada apenas a um interesse: o de colaborar com a Justiça para ser premiado. Nada deve interferir na liberdade de decisão do delator, muito menos promessas de vantagens ilegais não contidas no acordo e não oferecidas pela autoridade constituída. Nos casos de acordos de colaboração premiada mediante paga ou promessa de recompensa, o juiz deverá rejeitar o acordo por não preencher requisito subjetivo de validade, ante a presença de elemento capaz de influir na liberdade psicológica do colaborador. A ascensão hierárquica do chefe sobre seu empregado, o colaborador, coloca o conteúdo da colaboração, com o perdão da cártula, em "cheque".

 


[1] SUXBERGER, Antônio. H.G. Colaboração Premiada e a adoção da oportunidade no exercício da ação penal pública. Apud: VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. 3ª edição, ed. Revista dos Tribunais, 2020, p. 64.

[2] STF. HC 127.483/PR, Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27/8/2015, DJe 4/2/2016

[3] STF. HC 127.483/PR, Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27/8/2015, DJe 4/2/2016 

[4] CAPEZ, Rodrigo. A sindicabilidade do acordo de colaboração premiada. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis (Coord.). Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, pp. 201-236.

[5] Colaboração premiada no processo penal. 3º edição, ed. Revista dos Tribunais, 2020, pp. 115 e 163.

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