Opinião

Afinal, o que é a educação em direitos?

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13 de maio de 2021, 20h34

"(…) Diante da Lei está parado um porteiro. Um homem do campo chega até esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que ele não pode permitir sua entrada naquele momento. O homem reflete e pergunta, em seguida, se ele poderá entrar mais tarde. 'Até é possível', diz o porteiro, 'mas não agora'. (…) Tais dificuldades o homem do campo não havia esperado; uma vez que a lei deveria ser acessível a todos e sempre ele pensa, mas agora que observo o porteiro em seu sobretudo de pele com mais atenção, seu nariz pontudo e grande, a barba longa, fina, negra e tártara, ele acaba decidindo que é melhor esperar até receber a permissão para a entrada. O porteiro lhe dá um tamborete e o deixa esperar sentado ao lado da porta. E lá ele fica sentado durante dias e anos" [1].

Para além do reconhecimento legal e da própria efetividade do Direito em um sentido processual, têm ganhado terreno as discussões sobre o ensino e o aprendizado jurídico, o que comporta dimensões que extrapolam as demarcações dos bancos (ou das cadeiras gamers, contemporaneamente) universitários.

Sabedor de que existem inúmeras abordagens possíveis para a temática, pretendo neste brevíssimo ensaio tratar sobre a educação em direitos promovida pela Defensoria Pública — o que faço justamente no período em que se celebra o Dia de Santo Ivo, patrono da instituição.

Projetos, ou a própria ideia de educação em direitos, constituem uma das temáticas mais abordadas internamente ou na comunicação com o público externo pelas defensorias em todo o país. Para fins meramente ilustrativos, menciono que a consulta pelo termo na guia de notícias da instituição gaúcha exibe 369 resultados, o equivalente a um terço de pesquisa semelhante com a expressão direitos humanos — outro carro-chefe da atuação defensorial —, ou apenas uma ocorrência a menos que o termo consumidor.

Do ponto de vista normativo, a função de educar em direitos passa a ser prevista na legislação institucional no ano de 2009, a contar da edição da Lei Complementar Federal nº 132, seguindo uma série de reproduções em diversas legislações estaduais e mesmo em atos normativos secundários, como a Resolução nº 04/2019 do defensor público-geral do estado do Rio Grande do Sul.

Fato é que, em que pese todo o debate e enunciação a respeito, ainda é pouco claro, pragmaticamente, em que consiste a educação em direitos no cenário de trabalho da Defensoria Pública.

Pesquisa concluída no ano de 2020, na sequência de estudos que remontam a 2013, demonstra que as iniciativas no campo são ainda muito identificadas a eventos de natureza coletiva. Exemplificativamente, afirmo que no imaginário está muito presente a noção de que educar em direitos é fazer ou estar em uma palestra, em um curso ou em um evento. Seria, então, algo extraordinário em relação à rotina (ao ordinário) do trabalho institucional.

Tenho defendido, entretanto, que há outra forma mais interessante de pensar a educação em direitos. Ela consistiria "em instrumento de inserção tendentemente consciente do cidadão na linguagem do Direito e nos circuitos de poder criados e regulados pelo ordenamento jurídico, de forma que o sujeito possa compreender as possibilidades — e os limites — inerentes a qualquer ordem jurídica ou sistema de solução de conflitos ou reivindicação de direitos, responsabilizando-se, ainda que parcialmente ou em termos, pelos resultados de suas iniciativas" [2].

Nesses termos, deixa-se de ter um evento e passa-se a ter uma abordagem. Deixa-se de ter algo extraordinário ou ocasional e passa a haver uma diretriz cotidiana de trabalho.

Essa dimensão cotidiana de educação em direitos embasa e fomenta uma relação distinta do defensor, servidor, estagiário e do próprio cidadão com o Direito. Implica ou impõe uma metodologia de trabalho que escapa da lógica e do enfoque judicializante e assume uma dimensão comunicativa: em vez de o diálogo/atendimento ser pautado por aquilo que é necessário para se ajuizar ou ganhar uma ação, passa-se a prestigiar a — legítima e efetiva — inserção do cidadão nos variáveis ciclos propiciados pelo sistema de Justiça, que dizem respeito ao entendimento sobre as possibilidades e limites do ordenamento jurídico, não se limitando à alienante [3] lógica estritamente judicial.

É oportuno salientar que ainda que a descrição possa sugerir, para alguns, algo utópico ou, ao menos na contramão da tendência produtivista do sistema de Justiça contemporâneo, assegura-se que não é utópico, nem improdutivo. A abordagem defendida, ao pressupor que a democratização do Direito e do acesso à Justiça exige que os juristas abdiquem de serem os pretensos únicos porta-vozes das leis, possibilita que outros atores — para além do defensor público, no cenário interno — assumam maior protagonismo nas dinâmicas de atendimento e de solução de conflitos, o que viabiliza um ganho de escala significativo.

Dada a brevidade do texto e do veículo amplo em que se dá a publicação, não é viável aprofundar sistematicamente os fluxos de trabalho que podem ser desenvolvidos com a finalidade de concretizar a educação em direitos enquanto abordagem. Porém, é conveniente apontar que, atento aos contextos locais, é algo que já está em curso há bastante tempo e em distintas plataformas, conforme experiências em Caxias do Sul, Santa Vitória do Palmar ou Manaus [4].

Encerro, portanto, com um pedido especial a Santo Ivo: que a educação em direitos desenvolva seu potencial de modificar, ainda que em parte, o cotidiano do sistema de Justiça brasileiro, não sendo apenas um conceito vazio ou um episódio eventual a ser festejado.

 


[1] KAFKA, Franz. O processo. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 246.

[2] GODOY, Arion Escorsin de. Educação em Direitos e Defensoria Pública: ausências e emergências no cotidiano de atendimento dos casos de família prestado às mulheres nas cidades de Santa Vitória do Palmar/RS e Manaus/AM. 2020. 280f. Tese (Doutorado em Educação) — Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, p. 137.

[3] Alienante porque retira do cidadão o protagonismo pela solução daquilo que lhe diz respeito.

[4] GODOY, Arion Escorsin de. Educação em Direitos e Defensoria Pública: ausências e emergências no cotidiano de atendimento dos casos de família prestado às mulheres nas cidades de Santa Vitória do Palmar/RS e Manaus/AM. 2020. 280f. Tese (Doutorado em Educação) — Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.

Autores

  • é defensor público no Rio Grande do Sul, diretor de ensino da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do RS e doutor em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (com e.i. na Universidade de Coimbra).

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