Garantias do Consumo

Administração Pública digital e defesa do consumidor

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

12 de maio de 2021, 8h53

A Lei 14.129/21, aprovada recentemente, consolida definitivamente no Brasil a importância dos modelos digitais nas infinitas tratativas humanas nesta etapa contemporânea. Mais especificamente, cuida das relações jurídicas entre o cidadão e a Administração Pública propiciando acesso às informações e prestação de serviços públicos de todas as esferas e unidades federativas, órgãos da Administração direta e indireta, salvante as "estatais" exploradoras de atividade econômica.

Bruno Miragem [1], em texto de aguda percepção, informa que a sociedade vivencia "novo paradigma", de natureza tecnológica, parametrizado pela concorrência e eficiência, com pleno desenvolvimento da informática e das matrizes de informação. E justamente sob tais influências o mercado, enquanto locus empresarial, experimenta a "potencialização da economia em larga escala".

No âmbito privado, foi a economia da informação em rede, contrariamente à anterior economia industrial, que tomou as rédeas desse arquétipo. O que equivale dizer que a "ação individual descentralizada" é catalisada pela tecnologia de fabricação informática transformando-se em rede de "ações cooperativas". Tudo isso configurado na expressão de que o entorno informativo propiciou cidadãos mais livres [2].

Nisso é fácil concluir que a Administração Pública não poderia deixar de atuar também através desse nicho eletrônico informacional, até porque dotada de poderes (polícia disciplinar regulamentar) e deveres (agir eficiência probidade prestação de contas) ínsitos às funções de comprometidas ao interesse público [3]. De gizar: a questão não é escorar na menção ao dirigismo, senão à obvia clareza de que a Administração Pública também exerce papel indispensável para a garantia da liberdade de mercado e para tanto tecnologias compatíveis e dialógicas devem ser compartilhadas e aprimoradas.

Nomeadamente é relevante relembrar que em passos largos o Estado brasileiro vem adotando ferramentas digitais como meio adequado para as diversas atividades as quais está vinculado. Trata-se da marcha eletrônica do "Estado digital" em inúmeras vertentes, através das quais o discurso quanto à eficiência (figura marcadamente econômica) ganhou espaço diretivo no subsistema jurídico [4].

A título meramente exemplificativo e em ordem cronológica são declináveis as seguintes legislações: o processo eleitoral de escolha de representantes (Lei 10.408/2002 urna eletrônica); a contratualização com o setor privado (Lei 10.520/2002 pregão eletrônico); a solução de conflitos sociais (Lei 11.419/2006 processo judicial eletrônico); os deveres de informação (Lei 12.527/11 transparência); o recebimento e atendimento de demandas (Lei 13.460/2017 ouvidorias); o tratamento de dados na órbita pública (Lei 13.709/18 LGPD).

E realmente não há razão para estagnação da Administração Pública, olvidando-se em adequar ao "novo paradigma", já que a era digital está sintetizada em elementos e problemas jungidos à evolução científica humana agora (re)transformados substancialmente. São eles: tempo (velocidade das interações); espaço (amplitude das interações); profundidade (qualidade das interações); acesso (o custo das interações) [5].

As intensas modificações na concepção do Estado induziram sobremaneira as movimentações estruturais, funcionais e axiológicas da Administração Pública. Da concepção atomista do Estado liberal monoclasse (perfilhado pela legalidade estrita e interesse público único), passando pelo Estado social classista (condicionado à legalidade múltipla e interesses públicos tipificados), chegamos ao Estado pós-social setorial, espraiado na legalidade constitucional e no interesse público plural.

Nisso percebe-se que as noções de legalidade [6] e interesse público [7] sofreram deslocamentos quantitativos, qualitativos e imperativos.

De fácil constatação, essa "Administração Pública mutante" é verificável pelo cotejo entre critérios frente às finalidades públicas a serem alcançadas. Essa linha de pesquisa autoriza a destrinça de certa compreensão taxonômica. Aliás, e com conteúdo bem mais científico, a doutrina festejada [8] já se debruçara muito antecipadamente.

Compete descrevê-la pelos critérios e pelas finalidades: 1) soberania (assunção de convenções e tratados relevantes ao contexto administrativo-global, concepção de Estado Federado): Administração Pública cooperativa; 2) funcional: redefinição do papel do Estado, especialmente pela eficiência (Administração Pública gerencial); 3) decisório: processualidade administrativa como meio de legitimação das tomadas de decisões (Administração Pública procedimental); 4) regulatório: agencificação de atividades administrativas (Administração Pública regulatória); 5) interorgânico: atuação conjunta entre os diversos entes federativos para finalidades específicas, inclusive consensualmente (Administração Pública em rede); 6) intergeracional: execução de políticas públicas para futuras gerações (Administração Pública sustentável[9]; 7) informativa: disponibilização dos conteúdos de fatos, decisões, históricos, dados que compõem a estrutura e funcionalidade administrativa (Administração Pública transparente); 8) lealdade: exigente de condutas éticas, códigos de condutas, boas práticas e programas de integridade (Administração Pública proba); 9) deverosidade: efetividade aos deveres fundamentais fixados na legalidade constitucional para proteção dos vulneráveis (Administração Pública promocional). Por fim, o advento da Lei 14.129/21 restou acentuadamente demonstrada outras preocupações importantes: escalabilidade de processos, acessibilidade e virtualidade da relações jurídico-administrativas (Administração Pública digital).

A par da lembrança de que toda classificação só se faz útil à luz dos "interesses protegidos, da natureza das relações reguladas e da finalidade que se colima" [10] calha ainda frisar dois outros pontos de clara mutação da Administração Pública. Tais tópicos se referem à "desconceitualização de conceitos[11].

Em primeiro lugar, a consagração dos direitos fundamentais que descaracterizou o conceito de supremacia do interesse público sobre o privado: tema de dificílimo consenso na dogmática contemporânea [12]. Como já afirmado, se há supremacia essa é da "legalidade constitucional" com sólido alicerce nos direitos fundamentais, entre eles a promoção dos vulneráveis. Por exemplo, a utilização indevida e abusiva por parte do órgão público controlador quando confere finalidade diversa na utilização de dados pessoais ou sensíveis do titular. Os dados pessoais, compondo esfera incindível da pessoa humana, só podem ser coletados e tratados conforme dispõe a legislação regimental (LGPD).

Em segundo lugar, a desconstrução lenta do conceito de "autoridade", isto porque a utilização da "relação jurídica" como estrutura para ligação de sujeitos, objeto, fato e garantia no âmbito do direito administrativo, aos poucos foi adequando à distribuição equilibrada de direitos e deveres entre as partes [13], ao ponto da obtusa sujeição do cidadão ao Estado restar bem mais temperada [14].

Pois bem. A lei 14.129/21, fixando as diretrizes e princípios da plataforma digital da Administração Pública para informação e prestação de serviços públicos, acaba abordando com bastante destaque as figuras da "inovação" e "eficiência".

A inovação vem se afirmando aos poucos como atividade essencial para o atendimento das demandas da sociedade. E a considerar as reconhecidas limitações públicas, as parcerias com a iniciativa privada são cada vez mais necessárias, superando-se, para tanto, as amarras da burocratização [15]. É esse um dos parciais escopos dessa legislação que em pequena parte dá alguma concretude ao disposto no artigo 218 da Constituição Federal.

Em compasso próprio, a eficiência representa o desempenho exitoso para atingimento das finalidades públicas. Cabe enfatizar que é figura de expressiva dimensão em temas da Administração Pública e que nesse formato digital-administrativo ganhou capital importância, como dito, considerando as qualidades reitoras da virtualidade situada (tempo, espaço, profundidade e custo). Não à toa que pioneiramente o CDC (artigo 22) designou referido princípio como marco de obrigação ao serviço público oferecido pelos órgãos estatais e concessionárias ou permissionárias.

Convenhamos, contudo, que os destaques projetados às duas figuras na legislação em comento nem de longe estão autorizados a mitigar ou abalar os direitos dos consumidores ou, mais amplamente, os direitos dos vulneráveis. É que geralmente tais preceitos (inovação e eficiência), mesmo que essenciais às atividades da administração pública, não deslocam a fundamentabilidade dos direitos constitucionalmente reconhecidos dos mais fracos. Daqueles que, se não sofrem com as falhas de mercado, sofrem com a ausência do Estado.

Tanto que as legislações que têm como seletividade a atribuição de adjudicar temas digitais, sempre trazem consigo a promoção a direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade. Basta ver a Lei 12.965/14 (MCI), artigo 2º, inciso II [16]; a Lei nº 13.709/18 (LGPD), artigo 2º, inciso VII [17]; ou a própria Lei 14.129/21 [18].

Nessa perspectiva, acreditamos que a Lei 14.129/21 poderá trazer enormes benefícios à processualidade derivada do Código de Defesa do Consumidor e do Decreto 2.181/97. Para tanto é necessário: 1) investir nos Procons instalando, melhorando e aperfeiçoando as plataformas digitais; 2) capacitar gestores e servidores para atuação neste modelo; e 3) criar ferramentas de ampla proteção aos dados dos consumidores.

Estamos diante de normas-meio (inovação e eficiência) que devem chegar à inexorável norma-fim da Administração Pública: a dignidade humana. Inovação e eficiência são servientes à efetividade de direitos e a efetividade, por sua vez, é a luz da humanidade. Brindemos a Administração Pública digital que deve cumprir o papel de promoção ao sujeito real.

 


[1] Bruno Miragem. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo digital e o direito do consumidor. RDC. v. 125. São Paulo; Revista dos Tribunais, 2019.

[2] Yochai Benkler. La riqueza de las redes: como la producción social transforma. Barcelona: 2015, p. 37.

[3] Lucas Rocha Furtado. Curso de direito administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 555.

[4] Niklas Luhmann. Introdução à teoria dos sistemas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 178

[5] Klaus Schwab. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2018.

[6] Denis Alland; Stéphane Rials. Dicionário da cultura jurídica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 1075. Apresentam importante evolução do princípio da legalidade em França, a saber: legalidade compósita (pela qual não havia discrepância quanto à qualidade da fonte formal, tudo se generalizava em lei); legalidade restrita (fontes se reduziam à lei pelo exercício parlamentar); legalidade múltipla (surgindo o poder regulamentar, especialmente para execução das leis); legalidade adventícia (deriva de consenso, como nos exemplos de tratados internacionais); e, por fim, legalidade constitucional (controle de fundo de todas as disposições com a Constituição – interpretação conforme a Constituição).

[7] Novamente com apoio em Lucas Rocha Furtado, na citada obra: “Como identificar o interesse público? A resposta deve ser buscada no próprio ordenamento jurídico, que se encontra impregnado pelos direitos fundamentais. Toda atividade estatal e todo ato praticado pelo Estado devem-se conformar com a ordem jurídica pelos princípios e preceitos constitucionais”. Também Pietro Perlingieri. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 433.

[8] Ver Juarez Freitas. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, 20. Bruno Miragem. A nova administração pública e o direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 30

[9] Juarez Freitas. Sustentabilidade: direito ao futuro. 3ª ed. Belo Horizonte: 2016, p. 208.

[10] Aloysio Sampaio. O processo do trabalho: objeto e princípios básicos. RDT. v. 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 5-9.

[11] Rui Manuel de Figueiredo Marcos. História da administração pública: relatório sobre o programa, o conteúdo e os métodos de ensino. Coimbra: Almeida, 2011, p. 64. Vale transcrever o respeito aos paradigmas: “O tempo, submisso à abstracção ordenadora que o homem quer dele fazer, torna-se força incoercível de corrosão […] Só que a história, se entroniza representações de índole conceitual, também mercê de golpes oriundos da prática, desconceitua velhos conceitos, causando-lhes deformidades no sentido descaracterizador”.

[12] Ver por todos: Gustavo Binenbojm. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

[13] Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da Silva. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1995.

[14] Roberto Gargarella. El derecho de resistir el derecho. Madrid: Miño y Davila Editores, 2006. Na rica passagem daqueles que estão em alienação legal, abaixo a linha dos direitos fundamentais e a prática do respectivo direito de resistência às forças estatais.

[15] Aroldo Cedraz de Oliveira. O controle da administração pública na era digital. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 23.

[16] "Artigo 2º – A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais".

[17] "Artigo 2º – A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: VII – os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais".

[18] "Artigo 48 – Os órgãos e as entidades a que se refere o artigo 2º desta Lei deverão estabelecer, manter, monitorar e aprimorar sistema de gestão de riscos e de controle interno com vistas à identificação, à avaliação, ao tratamento, ao monitoramento e à análise crítica de riscos da prestação digital de serviços públicos que possam impactar a consecução dos objetivos da organização no cumprimento de sua missão institucional e na proteção dos usuários, observados os seguintes princípios: IV – proteção às liberdades civis e aos direitos fundamentais".

Autores

  • é mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professor adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia, diretor-presidente do Instituto de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), coordenador do Procon-MG no Triangulo Mineiro e promotor de Justiça em Minas Gerais.

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