Opinião

A aplicação das dez regras da ética judicial de Ferrajoli na arbitragem

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12 de maio de 2021, 6h35

Recentemente, Luigi Ferrajoli nos brindou com excelente artigo [1] no qual demonstrou que os processos judiciais são decididos não com base na verdade absoluta, mas, sim, em teses empíricas, por meio de verdades factuais argumentadas por evidências e não refutadas por contraevidências. Com isso, o artigo elucidou que a legitimação das decisões judiciais é sempre imperfeita e incerta, já que essas decisões são sempre fruto do saber-poder do julgador ao fazer a cognição do caso — quanto mais próxima do saber, mais legítima é a decisão.

Com base na premissa de natureza cognitiva da jurisdição, partindo sobretudo da ótica do Direito Penal, Ferrajoli cria dez regras da deontologia dos magistrados, com o objetivo de reduzir o poder e alargar o conhecimento, viabilizando decisões cada vez mais legítimas. Neste artigo, as dez regras formuladas por Ferrajoli serão analisadas a partir da ótica da arbitragem e, portanto, restringindo-se a direitos patrimoniais disponíveis (artigo 1º da Lei de Arbitragem — Lei nº 9.307/96).

1) O respeito pelas garantias
Para Ferrajoli, as garantias são categorizadas entre garantias de verificabilidade e falseabilidade em abstrato e na prática.

As garantias em abstrato se referem àquelas previstas pelo Direito material, sendo citados pelo autor como exemplos os princípios da legalidade estrita, da materialidade da ação e da responsabilidade do autor. Por sua vez, as garantias na prática são as de Direito processual, como a publicidade da sentença, o ônus da prova e o direito de defesa.

No âmbito da Lei de Arbitragem, prevê-se que o procedimento arbitral deve sempre respeitar "os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento" (artigo 21, §2º), sendo nula a sentença arbitral que desrespeitar um ou mais desses princípios (artigo 32, VIII). Portanto, para que a arbitragem se sustente como sistema de jurisdição e de solução de conflitos, é imprescindível que haja, também no âmbito arbitral, respeito pelas garantias.

2) A ética da dúvida
Por meio dessa lei, Ferrajoli entende que deve ser rejeitada qualquer arrogância cognitiva por parte do julgador, partindo-se sempre da premissa de que o Judiciário tem uma permanente possibilidade de erro e uma margem irredutível de ilegitimidade, ligada ao caráter imperfeito de sua fonte de legitimação.

No âmbito arbitral, a fonte de legitimação do árbitro tem caráter mais prático do que no Judiciário: neste existe toda uma discussão acerca de legitimidade estatal, ao passo que naquele, por se tratar de meio privado de solução de conflitos patrimoniais disponíveis, basta a existência de convenção de arbitragem validamente pactuada para que o árbitro (independente e imparcial) seja legítimo para decidir o conflito.

Entretanto, não se pode deixar de lado o fato de que também na arbitragem existe uma permanente possibilidade de erro. No Judiciário, os erros puramente materiais — por exemplo, equívoco quanto a uma premissa fática — são remediados por meio dos recursos. Por sua vez, na arbitragem, os erros puramente materiais devem ser resolvidos dentro do próprio procedimento ou, se o caso, por meio de ação anulatória, se houver enquadramento em alguma das hipóteses previstas no artigo 32 da Lei de Arbitragem.

Esse dispositivo traz alternativas para remediar casos em que eventual erro implique afronta ao sistema principiológico da solução de conflitos, por exemplo, quando há violação da vontade das partes em arbitrar, das extensões subjetiva e objetiva da convenção de arbitragem ou dos princípios da Lei de Arbitragem.

3) Ouvir as razões opostas
Há necessidade de contraditório na formação da prova, por meio da disponibilidade dos juízes e promotores (no caso do Judiciário) e dos árbitros (no caso da arbitragem) de ouvirem todas as razões diferentes e opostas, com "a exposição de suas hipóteses à refutação e à falsificação, legal e factual".

Na arbitragem, o princípio do contraditório é um princípio positivado, cujo desrespeito implica nulidade da sentença arbitral. Assim como no Judiciário, o contraditório leva a uma sentença arbitral mais próxima do conhecimento e mais distante de eventual cognição superficial decorrente de exercícios de poder.

4) A imparcialidade de julgamento
Ferrajoli entende que o julgador deve se despir de quaisquer espíritos partidários ou sectários, estando constantemente disponível para renunciar a suas próprias hipóteses, caso sejam negadas pelos elementos dos autos. Também por essa regra, o julgador tem o dever de confidencialidade quanto aos processos que possui, evitando todo tipo de espetáculo ou busca por notoriedade e popularidade, sob pena de se negar o modelo garantista de jurisdição.

Com relação ao dever de confidencialidade, é bastante comum que, na prática arbitral, as partes pactuem o sigilo do procedimento, além de haver determinação expressa na Lei de Arbitragem de que um dos deveres do árbitro no desempenho de sua função é a discrição (artigo 13, §6º).

O mesmo dispositivo também determina que o árbitro deve ser independente e imparcial — o que se relaciona diretamente com o dever de ausência de espíritos partidários mencionado por Ferrajoli. A independência é verificada por critérios objetivos, de modo que o árbitro não pode ter vínculos econômicos, profissionais, morais, sociais ou afetivos ou nenhuma das partes. Já a imparcialidade é mais subjetiva, sendo entendida como a isenção do árbitro, ou seja, sua ausência de interesse no resultado do conflito [2].

Esses princípios são tão caros à arbitragem que o árbitro, antes de aceitar sua função, tem o dever de revelar e ser transparente quanto a qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência (artigo 14, §1º). Se o árbitro não tiver certeza quanto ao dever de revelar determinado fato ou situação, ele deve indagar a si mesmo: se eu fosse parte, gostaria de conhecer mencionado fato? Se a resposta for positiva, é importante que o fato seja revelado às partes [3].

5) A rejeição do criacionismo judicial
A discricionariedade interpretativa no exercício da jurisdição já é bastante ampla, de modo que, para Ferrajoli, não se deve existir uma cultura jurídica que endosse a criação de um "novo Direito" por meio da criatividade julgador, sob pena de violação aos princípios da separação de poderes e da legalidade. Em outras palavras, o autor rejeita aquilo que é comumente conhecido por ativismo ou criacionismo judicial, ou seja, o desenvolvimento de um Direito jurisprudencial desvinculado do Direito legislativo.

Na arbitragem, essa questão tem contornos distintos, especialmente porque, em razão do sigilo/discrição já abordados, o acesso às sentenças arbitrais é bastante restrito, não havendo, por exemplo, um "banco" centralizado que permita o acesso a todos os aplicadores do Direito, o que, consequentemente, ao menos por ora, inviabiliza a consolidação e divulgação de uma "jurisprudência arbitral".

6) A compreensão e avaliação equitativa da singularidade de cada caso
É imprescindível que os juízes avaliem e compreendam as características específicas e singulares dos fatos relativos a cada um dos casos sob sua responsabilidade, utilizando-se da equidade. Para Ferrajoli, a equidade deve ser entendida não como um termo oposto da palavra lei, mas, sim, como uma atividade cognitiva de compreensão das singularidades de cada demanda. Para ilustrar, ele traz que "o furto de maçãs é diferente do furto de um bilhão; o roubo em estado de necessidade é diferente daquele do puro opressor".

Ao tratar de equidade, a Lei de Arbitragem determina que a arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes (artigo 2º), exceto nos procedimentos que envolvam o Estado, que deve sempre ser de direito (artigo 2º, §3º).

Deve-se desde já advertir que o conceito de "equidade" da lei brasileira é completamente distinto do conceito de Ferrajoli e se refere às hipóteses em que o árbitro pode decidir a controvérsia impondo a solução que, no entendimento dele, é a mais justa ao caso, com base na prudência, na consciência e nos princípios morais básicos de convivência social [4]. Ou seja, pela lei brasileira, desde que pactuado pelas partes, o árbitro pode proferir decisão que, no entendimento dele, melhor atenda "aos interesses das partes em determinada situação e com relação a específica relação jurídica", sem a limitação imposta pela regra de direito [5].

Dessa forma, entende-se que a equidade como critério de julgamento (em oposição ao critério de direito, como trazido na Lei de Arbitragem) apenas é aplicável em arbitragens brasileiras se houver expressa previsão pelas partes. Já a equidade de Ferrajoli — no sentido de atividade cognitiva de compreensão das singularidades, de dever do árbitro de se atentar às peculiaridades de cada caso submetido a julgamento — é aplicável a todas as arbitragens, sob pena de violação do princípio do livre convencimento (artigo 21, §2º), pelo qual o árbitro deve avaliar e valorar todas as provas para se chegar à sentença arbitral.

7) Nolite iudicare: Julgamentos sobre fatos, e não sobre pessoas
Essa regra determina que o julgamento deve se basear única e exclusivamente em fatos, sem levar em consideração características dos sujeitos que estão sob julgamento, até porque apenas os fatos — e não a moralidade ou o caráter de quem os realizou — estão sujeitos à prova, à refutação empírica e, consequentemente, ao julgamento.

A sétima regra de Ferrajoli é igualmente aplicável no âmbito da arbitragem, como corolário dos princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento (artigo 21, §2º), os quais sustentam a arbitragem como instrumento adequado e autorizado de solução de conflitos, por meio do exercício da jurisdição por um terceiro (árbitro).

8) O respeito por todas as partes do processo
Essa regra decorre dos princípios da igualdade (entre todas as partes) e da legalidade (ser punido pelo que se faz, não pelo que se é), por meio da qual, segundo Ferrajoli, o juiz deve se colocar no lugar de todas as pessoas que conhece durante sua carreira: autores, réus, testemunhas etc. e respeitá-las indistintamente.

Não há dúvidas de que o respeito por todas as partes também é uma regra no âmbito dos procedimentos arbitrais, não apenas como decorrência do princípio da igualdade (positivado na Lei de Arbitragem), mas também em razão dos diversos princípios que regem o processo judicial estatal, os quais também são aplicáveis ao procedimento arbitral [6]. Entre esses princípios, rememora-se o da cooperação, do qual decorre, entre outros deveres, o de respeito e urbanidade.

9) Os juízes não devem buscar o consentimento da opinião pública, mas apenas a confiança das partes do processo
Ferrajoli entende que, como a fonte de legitimação da jurisdição consiste na devida apuração dos fatos submetidos à sentença, toda condenação deve ser feita com base na cognição de fatos e provas, de modo que um cidadão não pode ser punido apenas porque sua punição corresponde à vontade ou ao interesse do governo, da imprensa, de partidos políticos ou da opinião pública. O juiz apenas necessita da confiança das partes do processo, as quais acreditam em sua imparcialidade, honestidade intelectual, rigor moral, competência técnica e capacidade de julgamento.

No geral, os conflitos submetidos à arbitragem tentem a ter menos apelo popular do que aqueles relativos a Direito Penal (ponto de partida das leis de Ferrajoli), visto haver dever legal de discrição do árbitro, ser usual a pactuação de confidencialidade do procedimento, bem como em razão de seu caráter exclusivamente patrimonial.

De toda forma, o menor potencial de repercussão midiática não exime o árbitro do dever de confiança das partes, o qual, inclusive, é atributo essencial para a nomeação do julgador, nos termos do artigo 13 da Lei da Arbitragem, que determina que "pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes".

10) A rejeição do carreirismo como regra de estilo
Para Ferrajoli, qualquer forma de carreira e avaliação de profissionalismo dos juízes é contrária ao princípio de sua igualdade, mina a independência interna dos juízes e descredibiliza a instituição judiciária. Por isso, segundo o autor, a aspiração dos juízes deve ser ao melhor exercício das funções jurisdicionais, não a cargos de gestão.

Diferentemente do que ocorre na jurisdição estatal, inexiste a profissão de árbitro — ser árbitro é uma condição temporária para que se viabilize resolução de determinado conflito. Desde que tenha confiança das partes e seja capaz (civilmente e, caso pactuado pelas partes, também tecnicamente), qualquer pessoa pode ser nomeada árbitro, tais como professores, advogados, engenheiros, contadores, médicos ou experts em determinado tema.

Portanto, na comunidade arbitral, existe menos espaço para avaliações de profissionalismo ou progressão de carreira, a qual, de toda forma, deve ser evitada, sob pena de ser minada a independência de julgamento dos árbitros — requisito essencial para a validade do procedimento.

Muito embora o Direito Penal e a arbitragem tenham inúmeras diferenças — a começar pela (in)disponibilidade dos direitos envolvidos —, é certo que as regras de Ferrajoli, com algumas adaptações, são plenamente aplicáveis ao procedimento arbitral, de forma a viabilizar e garantir a consecução dos princípios que regem o sistema de solução de conflitos no Brasil, sobretudo daqueles positivados na Lei de Arbitragem — contraditório, igualdade das partes, imparcialidade do árbitro e seu livre convencimento.

 


[2] CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem: mediação, conciliação, tribunal multiportas. 7 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, RB-7.7.

[3] LEMES, Selma Maria Ferreira. O dever de revelação do árbitro, o conceito de dúvida justificada quanto a sua independência e imparcialidade (artigo 14, §1º da Lei 9.307/1996) e a ação de anulação de sentença arbitral (artigo 32, II da Lei 9.307). São Paulo: Revista de Arbitragem e Mediação, 2013, vol. 36, p. 231.

[4] LEMES, Selma Ferreira. A arbitragem e a decisão por Equidade no Direito Brasileiro e Comparado. In: Arbitragem. Estudos em Homenagem ao Prof. Guido Fernando Silva Soares, in memoriam. São Paulo: Atlas, 2007, p. 190.

[5] CARMONA, Carlos Alberto. Julgamento por Equidade em Arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, v. 30, p. 229-244, jul/set, 2011.

[6] DIAS, Feliciano Alcides. A modernização do instituto da arbitragem no cenário contemporâneo sob a ótica do novo Código de Processo Civil Brasileiro. Florianópolis: CONPEDI, 2015. Disponível em: <http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/66fsl345/z90762xj/R45dk82myNo6su4v.pdf>.

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